Mar de lama
Hélio Schwartsman*

 

Já que parece inevitável voltar a discutir a crise política, bastante agravada desde meu último comentário a respeito, "O ocaso do PT", escrito antes das entrevistas do deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) à Folha, proponho que o façamos de modo construtivo, isto é, lançando algumas idéias sobre a reforma política, que vai despontando como tábua de salvação para um governo que se espoja no mar de lama que ele próprio criou – sei que a imagem utilizada é de gosto duvidoso, mas não resisti.

Verdade seja dita, os dirigentes do PT não são piores nem melhores do que todos os que os antecederam. Não foram os petistas que inventaram a corrupção – podem até tê-la tornado mais regular e inventiva – nem serão eles que a sepultarão. O que talvez tenha sido maior foi a decepção com o desvio daquele partido do qual muitos esperávamos uma atitude um pouco mais republicana. O grande pecado do PT é não ter sido "diferente", traindo um discurso forjado em duas décadas de oposição.

Também é necessário observar que, até o momento em que escrevo, tudo o que temos são suspeitas muito bem fundamentadas, mas ainda não provadas. As declarações do deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) são para lá de verossímeis. Vou mais longe e lembro que, se mantidas em juízo, constituem uma prova. Mas, se não forem corroboradas por outros elementos de convicção, preferencialmente documentais, é improvável que resultem numa condenação judicial. Não se manda um parlamentar ou um ministro de Estado para o xadrez com base apenas num testemunho e ainda facilmente desqualificável, por tratar-se de parte interessada. É fundamental, portanto, que se investigue e que se o faça diligentemente, sob pena de condenar mais essa crise ao forno dos pizzaiolos.

Sem procurar atenuar as responsabilidades morais e penais de quem esteja envolvido em mensalões e sabem-se lá quais outros esquemas, é forçoso reconhecer que existe algo na cultura política e nas instituições brasileiras que favorece as, digamos, relações interpartidárias pouco ortodoxas (produzir eufemismos pode ser bastante divertido). Identificar essas fontes de anomalias é um passo necessário, para o aprimoramento da democracia brasileira. Devemos, portanto, persegui-lo. Mas não podemos ser ingênuos a ponto de acreditar que todo o problema esteja "no sistema". Aperfeiçoá-lo não significa de modo algum torná-lo à prova de fraudes. Se fecharmos a porta para uma modalidade de logro, quem queira locupletar-se certamente encontrará uma outra fresta. Níveis civilizados de corrupção – sim, ela existe em toda parte do mundo – até podem ser atingidos, mas esse é um processo lento e dependente de muitas variáveis, coisa para os filhos de nossos filhos. E mesmo eles só verão um Brasil melhor nesse quesito se formos intransigentes com os desmandos e nos esforçarmos por puni-los todos exemplarmente.

Em termos de reforma política propriamente dita, são dois os pontos que poderiam ter um efeito mais direto sobre as relações nebulosas entre Executivo e Legislativo: o reforço da fidelidade partidária e o financiamento público de campanha. Sou, é claro, a favor de medidas que visem a reforçar o caráter ideológico dos partidos – isso é ainda mais importante agora que até o PT se revelou uma fraude. O problema é o grau de comprometimento que vamos exigir. Os mais radicais defendem a perda de mandato para o deputado que trocar de legenda. Outros, um pouco mais liberais, sugerem que, para candidatar-se, a pessoa deve estar filiada à legenda por pelo menos quatro anos antes do pleito. Há quem proponha dois. Atualmente, a fidelidade exigida é de apenas seis meses. De fato, normas dessa natureza tenderiam a diminuir o troca-troca agremiativo – o que é bom. Só que há ocasiões em que é perfeitamente legítimo que o parlamentar troque de partido. Por vezes, como a presente crise o demonstra, é a legenda e não o parlamentar quem traiu o eleitor. Estariam sendo perfeitamente coerentes os legisladores do PT que agora decidissem abandonar a sigla, não havendo razão para puni-los com a impossibilidade de tentar a reeleição em 2006. Como vemos, a reforma política funciona como um cobertor curto demais. Se decidimos abaixá-lo para aquecer os pés, o peito ficará descoberto. 

O mesmo raciocínio vale para o financiamento público. Até podemos ampliá-lo. (Vale lembrar que ele já existe em parte. O chamado horário eleitoral gratuito nada tem de gratuito. TVs e rádios deduzem os prejuízos em que incorrem de seu imposto a pagar, o que resulta em consideráveis perdas para o erário). Tendo a concordar que grande parte da corrupção se dê por conta ou sob o pretexto de obter recursos para as campanhas, o que poderia ser atenuado com um financiamento totalmente público. De novo, haveria um preço a pagar. O Estado não vai, evidentemente, dar verbas para cada um que pretenda concorrer a um mandato eletivo. Os recursos públicos seriam intermediados pelos partidos, o que quase certamente exigiria a adoção do sistema de listas fechadas bem como a impossibilidade de abrir o pleito a candidaturas avulsas. Embora isso seja tecnicamente defensável, prefiro mecanismos que dêem maior liberdade ao eleitor. Pode ser ingenuidade minha, mas acho que eles nos aproximam mais de uma democracia direta que poderá surgir no futuro via internet. De resto, as listas fechadas tendem a aumentar ainda mais o poder das burocracias partidárias, que definiriam a ordem dos nomes ou influiriam pesadamente sobre ela.

Como o leitor deve ter reparado, sou um pouco cético em relação à reforma política. Embora não seja contra inovações, acho que elas tendem a produzir resultados sempre ambíguos, com ganhos numa esfera, mas perda em outra. Sem hesitações, apóio apenas o fim do voto obrigatório e uma proporcionalidade mais correta na Câmara dos Deputados. Uma argumentação mais detalhada pode ser encontrada nas colunas "Da reforma política" e "Do direito de não votar".

Existem também algumas medidas fora da estrutura política propriamente dita que podem revelar-se interessantes. Em primeiro lugar, eu faria uma ampla reforma administrativa que reduzisse drasticamente o número de cargos ocupados por indicação política, substituindo-os por um sistema meritocrático no âmbito de uma burocracia estável. Não existe, é verdade, garantia alguma de que o servidor concursado não vá corromper-se, mas uma iniciativa como essa pelo menos limitaria a possibilidade de governantes obterem o apoio de aliados oferecendo-lhes cargos em ministérios e estatais. Na pior das hipóteses, quem passou num concurso tende a ser mais inteligente do que alguém que se fez apadrinhar por um político duvidoso. Já aí o poder público sairia ganhando.

Outro ponto a reformar é a sistemática de Orçamento. Até pelo efeito simbólico, acho que se deveria acabar com a possibilidade de emendas individuais de parlamentares. Elas se tornaram a moeda de troca da política clientelista. É hora de acabar com isso. A fisiologia provavelmente vazaria para algum outro interstício orçamentário, mas nós pelo menos teríamos retirado sua institucionalidade.

A corrupção, como já insinuam as parábolas bíblicas, é parte da natureza humana. A única forma de acabar com ela é eliminando a espécie, uma solução que muitos consideraríamos radical demais. Resta-nos, portanto, um arsenal mais limitado de ações. Acho importante discutir e aprovar mudanças no sistema político e em outras áreas, mas sempre cientes de que elas podem ser no máximo um pequeno passo, uma contribuição modesta. É preciso, principalmente, que não nos deixemos enganar e acreditar que "a culpa é do sistema". Por certo que é, mas houve gente que se aproveitou do sistema. Esses precisam ser inapelavelmente punidos. O único caminho que certamente leva à diminuição da corrupção – e sem efeitos colaterais – é a identificação de quem tenha atuado para lesar o patrimônio público e a aplicação das sanções previstas. Sem isso, tudo não passará de diversionismo.

Cada vez mais, desconfio que o maior problema do Brasil é jamais ter aprendido a lição de Beccaria, magistralmente sintetizada na fórmula: "Um dos maiores freios dos delitos não é a crueldade das penas, mas a sua infalibilidade". Tempo nós já tivemos, Beccaria a escreveu no final do século 18. 
 

* Hélio Schwartsman é editorialista da Folha.  

Fonte: Folha Online, 16/06/2005.


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