O ocaso do PT
É triste o que
aconteceu com o PT. Eu não sou exatamente um ingênuo. Nunca esperei que
aquele velho partido que a maioria de nós, mesmo discordando aqui e ali,
aprendeu a respeitar por seu vigor ético e sua coerência conquistasse o
governo federal e permanecesse o mesmo. Para o bem e para o mal, assumir o
poder num contexto democrático força à negociação e, portanto, à moderação.
Quem esperava ver o Lula dos anos 80 assumindo a cadeira presidencial em
2003 não entende nada de política.
Só que, enquanto outros partidos de centro-esquerda deram alguns passos rumo
ao centro político para chegar ao comando do governo central de seus países
- sim, vivemos numa época conservadora -, o PT foi mais além e simplesmente
rasgou toda a sua história. Estou sendo injusto. Seria mais correto afirmar
que o grupo majoritário da legenda, isto é a camarilha que cerca o
presidente Lula, revogou tudo aquilo que caracterizava o velho PT. Uma
minoria de parlamentares e muitos militantes, sobretudo os ligados a
tendências de esquerda, ainda insistem em tentar manter pelo menos um núcleo
central do antigo ideário.
Não me interpretem mal. Ainda não aderi à luta armada. Algumas traições eram
de fato necessárias para poder governar. O PT precisou comer o pão que o
diabo amassou em suas primeiras administrações municipais e estaduais para
aprender que, numa democracia, é preciso dialogar com outras forças. Se o
partido tivesse insistido em sua posição purista de nem sentar-se à mesa com
aqueles que julgava não-éticos, Lula provavelmente não teria sido eleito e,
se tivesse, não completaria um mês de governo. O fato, contudo, é que
precisa haver um limite para a transfiguração de um partido. É preciso que
sobrem alguns princípios, ou adentramos num reino que o fim último da ação
política se torna chegar ao poder para estar no poder. Eu até entenderia - e
entender não é sinônimo de aprovar - se o PT não poupasse esforços para
manter-se à frente do governo como condição necessária para implementar um
grande projeto político para o país. O problema é que esse projeto, se um
dia existiu, ruiu com o Muro de Berlim. Em seu lugar, ficou apenas o desejo
de estar no poder. É nesse contexto que Garotinho afirmou que o PT era o
"partido da boquinha". Infelizmente, após a sucessão de suspeitas encimada
pelo caso Waldomiro Diniz e completada agora com os Correios e o Instituto
de Resseguros parece difícil discordar do ex-governador fluminense.
E não há muita dúvida de que o novo PT passou como um trator sobre tudo
aquilo que outrora o definia. Primeiro foi a economia. Aqui, é preciso
reconhecer que a situação era de fato difícil. Lula assumiu em meio a uma
grave crise da balança de pagamentos - que seu favoritismo e posterior
eleição ajudaram a agravar. Embora tivesse um claro mandato popular para
alterar o modelo econômico, preferiu perseverar na ortodoxia instalada por
seus antecessores. Nessa escolha, sepultou praticamente todas as teses
econômicas que o partido até então defendia. Quem não se lembra do candidato
Lula fazendo pesadas - e convincentes - críticas aos juros estratosféricos
fixados na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso?
Em outras áreas o PT no governo também foi rápido em renegar seu passado. A
bandeira contra os transgênicos, por exemplo, logo foi esquecida em favor
dos interesses do superavitário agronegócio. A regulamentação dos jogos de
azar, antes sustentada pelo partido, foi rechaçada ao primeiro cheiro de
encrenca. Justiça se faça ao ministro da Saúde, Humberto Costa, que não teve
receio de procurar avançar na questão do direito ao aborto, princípio sempre
defendido pela ala não-religiosa do PT.
O golpe mais certeiro contra a essência do partido, contudo, veio no front
ético, que era o que mais fortemente o caracterizava. Os esforços do núcleo
duro do governo para barrar a CPI dos Correios demonstram que o PT se tornou
exatamente aquilo que criticava nas administrações anteriores: colocou o que
se costuma chamar de governabilidade (na verdade, a manutenção de alianças
discutíveis) à frente do que antes vendia como princípios inegociáveis.
Esclareço aqui não sou o maior entusiasta das CPIs. Ou melhor, como
jornalista, gosto delas, mas é preciso reconhecer que, em termos técnicos,
estão longe de constituir-se num bom esquema de investigações. O trabalho de
polícia necessário para uma instrução processual é complexo e cheio de
minúcias legais. Parlamentares, com raras exceções, não têm formação nem
experiência para exercê-lo. Freqüentemente metem os pés pelas mãos e
estragam provas, o que pode resultar num processo capenga, dando maiores
chances de absolvição a réus. Independentemente da avaliação que possamos
fazer das CPIs - e algumas delas são realmente importantes -, o fato é que
muito grave para a imagem de um partido que se criou em meio a comissões
tentar bloqueá-las.
Na interpretação benigna, o PT, que orgulhosamente se proclamava um partido
"diferente", tornou-se "igual". Numa hermenêutica mais maldosa, descobriu o
caminho para o butim das compras públicas - e não dá indícios de que esteja
disposto a largá-lo.
O mal-estar com o novo PT por enquanto parece mais restrito a intelectuais e
aos antigos militantes. Banqueiros e agentes do mercado financeiro
continuam, é claro, encantados com o presidente. O que se convencionou
chamar de "povão", por ora, não dá mostras de grande desilusão. A situação
global da economia apresentou melhora em 2004, e mecanismos como o crédito
por desconto em folha de pagamento permitiram a aquisição de bens antes
inalcançáveis. Lula permanece assim um forte candidato à sua própria
sucessão. Se, porém, surgirem turbulências no horizonte, não será nenhuma
surpresa uma forte e rápida reversão da popularidade presidencial, que já
começou a ocorrer entre parte dos chamados formadores de opinião.
Numa primeira análise, a lamentável trajetória do PT ilustra o quanto de
oportunismo e cálculo político havia por trás tanto das antigas teses
defendidas pela cúpula do partido - "bravatas", nas palavras do próprio
presidente - como de sua recente conversão ao mercadismo. Num plano mais
profundo, ela também parece significar que, no mundo globalizado, governos
nacionais podem menos do que já puderam.
A menos que acreditemos que Lula e seus escudeiros planejaram desde sempre
chegar ao poder com o intuito único de fartar-se, hipótese que me parece
improvável, é razoável concluir assumiram o comando sem um projeto de nação,
isto é, sem ter idéia de aonde queriam chegar nem do caminho a percorrer.
Suas prioridades passaram a ser a tal da governabilidade e a reeleição e,
para garanti-las, não hesitaram em fazer todo o tipo de aliança que antes
catalogavam como espúria. Nesse contexto, os escândalos de corrupção que
cercam o partido não despontam como surpreendentes. O inesperado é que a
agremiação que se afigurava como a mais articulada e programática do país na
verdade não dispusesse de um projeto político. O resto, parece-me, é
conseqüência.
O mais grave é que do ocaso do PT à descrença generalizada com a política
temos uma linha muito tênue. E, agora que o partido que se forjou em duas
décadas de oposição sistemática foi testado e revelou-se igual aos demais,
as opções parecem esgotadas. Não será uma surpresa se, no próximo pleito, a
população deixar-se seduzir pelo pior aventureirismo populista disponível no
mercado.
Fonte: Folha de S. Paulo, Hélio Schwartsman,
2/6/2005. |