Da reforma política
Um dos muitos paradoxos
que caracterizam a vida institucional do país é aquele pelo qual
praticamente todo brasileiro se diz favorável à chamada reforma política e,
mesmo assim, ela nunca sai do terreno das boas intenções. Aproveito esta
semana pós-eleitoral para apresentar algumas considerações sobre o tema. Não
chego a afirmar que eu seja contra mudanças nessa área, mas pretendo mostrar
que elas nem de longe bastariam para resolver aqueles que são
costumeiramente apontados como os grandes problemas do país em termos de
representação.
Pessoalmente, sou favorável ao fim da obrigatoriedade do voto e do teto de
deputados por Estado na Câmara, mas não creio que eu vá ver em vida esses
projetos implementados. Em relação a outros pontos freqüentemente citados,
como financiamento público de campanha e voto distrital misto, eu pestanejo,
isto é, vejo pontos positivos nas propostas, mas receio que elas tragam
implicações negativas talvez maiores.
Sobre o sufrágio mandatório, eu já cometi uma coluna. Basicamente, é por
razões filosóficas que rejeito a idéia de que eu deva ser obrigado a
participar do processo eleitoral. Podem me chamar de conservador, mas eu sou
um daqueles que não gostam de toques de doce em pratos salgados. Direito é
aquilo que é bom e estamos autorizados a fazer. Dever é aquilo que é ruim e
somos constrangidos a realizar. Nada pode ser direito e dever ao mesmo
tempo. E o voto, até prova em contrário, é um direito, não um dever.
A questão da representação dos Estados na Câmara é ainda mais simples: é um
escândalo que o eleitor paulista fique com muito menos deputados do que uma
simples regra de três prova como justa. São Paulo, com cerca de 37 milhões
de habitantes, faria jus a algo como 102 das 503 vagas da Câmara, mas tem
seu total de deputados limitado a 70. Não estou de modo algum negando o
princípio federativo. É claro que Estados menores têm de ter um espaço para
contrapor-se ao peso econômico de São Paulo. Só que esse lugar já existe. É
o Senado, onde cada unidade federativa, independentemente de população e
economia, tem direito a três representantes. Aplicar esse raciocínio também
na Câmara configura um caso de bitributação abusiva do princípio federativo.
Outro ponto muito citado da reforma política é o financiamento público de
campanha. Muitos são simpáticos a essa idéia, que poderia reduzir um pouco a
força do poder econômico e permitiria uma fiscalização mais eficiente das
doações de empresas e pessoas físicas, que seriam proibidas ou severamente
limitadas. Em algum grau o financiamento público já existe, uma vez que o
chamado horário eleitoral gratuito nada tem de gratuito. As TVs e os rádios
descontam o prejuízo em que incorrem de seu imposto de renda a pagar. Assim,
somas consideráveis de dinheiro público deixam de entrar nos cofres
oficiais.
O problema do financiamento público integral, para além do aumento de
gastos, são seus efeitos colaterais, o que me leva a desconfiar da proposta,
ainda que não a rejeitá-la peremptoriamente. Com efeito, é difícil imaginar
um cenário em que o Estado distribua recursos para todos aqueles que desejem
disputar um mandato popular. Provavelmente surgiriam mais candidatos do que
eleitores. A introdução do financiamento público exigiria mudanças no
sistema com vistas a reforçar o papel dos partidos políticos, que agiriam
como intermediários entre as verbas e os candidatos.
O que me preocupa aqui são as eleições não-majoritárias. Para garantir a
equanimidade na distribuição dos recursos, é quase certo que o país trocaria
o voto direto nos candidatos por listas fechadas, em que o cidadão se limita
a escolher a agremiação de sua preferência. E isso decididamente não me
agrada. Uma alteração desse gênero atribuiria poder excessivo às cúpulas
partidárias, que definiriam as posições ocupadas por cada candidato na
lista. Um sistema assim transferiria um poder que hoje está na mão do
eleitor - o de definir quem representa a legenda - para a burocracia
interna. Seria o paraíso para Bornhausens, Anibais, Genoinos e Dirceus.
Pior, o sistema dificultaria o surgimento do fenômeno dos campeões de voto,
que se credenciam no Legislativo para lançar-se depois em eleições
majoritárias.
Outro ponto muito citado quando o assunto é reforma política é o voto
distrital. Muitos defendem a adoção do voto distrital misto para
legislativas, mais ou menos nos moldes em que existe na Alemanha. A idéia é
manter parte do sistema como é hoje, proporcional, mas criar também
distritos onde candidatos ligados àquela região se enfrentariam disputando
diretamente a preferência do eleitor. A idéia aqui, inatacável, é aproximar
mais representantes de representados.
O problema do voto distrital, puro ou em combinação com o proporcional, está
na definição dos distritos que nunca é neutra, mas invariavelmente beneficia
alguém. O rico idioma inglês até conta com uma palavra específica para
designar a criação arbitrária de distritos eleitorais com a finalidade de
fazer alguém ganhar e outrem perder. É a palavra "gerrymander" formada a
partir do antropônimo Elbridge Gerry e do substantivo salamandra. Elbridge
Gerry foi um governador de Massachusetts do início do século 19 que usou e
abusou do redesenho de distritos.
A adoção do voto distrital também tenderia a dificultar a eleição de
parlamentares mais ideológicos ou de lemas específicos, como o da saúde, da
educação ou dos direitos de minorias, e a favorecer candidaturas mais
clientelistas, que procuram principalmente resolver problemas do distrito.
Os vários efeitos colaterais que enumerei não são necessariamente bons ou
ruins. Eu mesmo não sei como me posicionar diante de muitos deles. Meu único
receio é o de que estejamos empunhando a bandeira da reforma sem uma
apreciação mais cuidadosa de suas implicações. O mais provável é que o
redesenho das instituições políticas apenas nos leve a trocar dificuldades
velhas por novas. Às vezes, isso pode até ser uma solução, mas na maioria
das vezes não passa de um embuste.
Fonte: Folha de S. Paulo, Hélio Schwartsman,
7/10/2004. |