A AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA
 

Autonomia universitária é o tema central da Revista Advir, publicação da Associação de Docentes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, de dezembro de 2006. Dada à importância do tema, estamos reproduzindo a entrevista do Juiz Titular da 20ª Vara Cívil que deu ganho de causa à UERJ por ocasião da última greve, decisão que se transformou num referencial para servidores públicos de todo o país. Acrescentamos ainda os links para todos os artigos referentes à autonomia universitária publicados na mesma revista.

 

EDITORIAL
OS SENTIDOS DA AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA


Com o mote da autonomia universitária, a ADVIR chega ao seu vigésimo número, vitória importante dos que apostaram e apostam em um projeto editorial que busca contribuir para a circulação do conhecimento e da necessária reflexão política, entre  companheiros e companheiras identificados com a luta dos professores em defesa da universidade. Torna-se particularmente significativo, portanto, que o mote deste  número seja a autonomia universitária.

De fato, em tempos de divinização do mercado e da proliferação de mecanismos que  buscam ocultar a falta de responsabilidade dos gestores públicos com serviços essenciais como a saúde e a educação, é especialmente importante debater o sentido  da autonomia da universidade, espaço por excelência do pensamento crítico. Mesmo com os sentidos eventualmente conflitantes que essa discussão possa incorporar,  cremos que é fundamental compreender o risco de que, sob o argumento da maior eficiência e do enxugamento de gastos públicos, se venha a promover, na verdade, o  atrelamento da universidade a interesses ditados pelo poder do dinheiro ou especificamente por grupos instalados no poder.

Parece-nos claro que pensar sobre o papel da universidade na sociedade e no efetivo  exercício de sua autonomia assume notada relevância em um mundo no qual as desregulamentações que atingem o Estado – autoproclamadas como flexíveis ou  alternativas – na verdade caminham, desde os menores espaços até o plano  internacional, para a total desproteção social, para níveis impensáveis de exclusão, para a naturalização da barbárie em forma de guerra, para o descarte de milhões de vidas humanas em nome de abstrações monetárias, como políticas de ajuste fiscal, de  juros altos etc.

O pensamento crítico autônomo, característica indelével das universidades, há de se  mover justamente na contramão de tais interesses e certamente não são gratuitas as  tentativas de estigmatizar o ensino superior como vilão do orçamento da educação,  visto como gasto inútil que assoberba os cofres públicos em detrimento da educação básica. As precaríssimas condições da educação fundamental em todo o país, a  despeito do progressivo sufocamento orçamentário das instituições públicas de ensino  superior, já parecem indicar o contrário, mas, além disso, os noticiários têm  demonstrado, de modo recorrente, para onde verdadeiramente foi e vai o dinheiro público que poderia ser destinado aos setores essenciais.

Em profundo diálogo com essa mesma lógica, a situação que vivemos aqui no Estado  do Rio de Janeiro não é diferente. Governos de perfil autoritário e populista tentam angariar o apoio dos setores mais desfavorecidos da população com vergonhosas  políticas compensatórias, que, além de não alterar efetivamente em nada a realidade de um estado sem nenhuma política séria de educação, saúde pública, trabalho e  geração de renda, conjuga-se perfeitamente com o sentido da “economia” que a ruína      

dos serviços públicos essenciais pode proporcionar. O preço verdadeiro dessa política  todos somos capazes de divisar e é bem maior que uma unidade de moeda: é a consolidação de condições estruturais que vão perpetuar as desigualdades e a exclusão  social, condenando milhões de jovens a um reino do desencanto, da desesperança e da  violência.

A universidade, evidentemente, não representou prioridade nessa política,  insistentemente implementada nas últimas gestões do Governo do Estado do Rio de  Janeiro. Mesmo o sistema de cotas, iniciativa em princípio voltada a essas questões,  sofre os efeitos do abandono e da falta de financiamento, característica já conhecida  em governos que enxergam as necessidades básicas da população apenas como um  celeiro de promessas em busca de votos. O crescente declínio dos investimentos do  Estado na universidade demonstra, inequivocamente, a falta de compromisso com a  educação superior pública.

Episódio bastante representativo desse modelo autoritário foi a desastrosa iniciativa de  intervenção feita pelo Governo do Estado na UERJ, no momento em que seus trabalhadores e estudantes encontravam-se em greve, no primeiro semestre de 2006.  E, acerca desse episódio, publicamos uma entrevista com o Desembargador Rogério de  Oliveira Souza, que se apoiou justamente na autonomia universitária, ao decidir  favoravelmente pelo Mandado de Segurança impetrado pela Asduerj contra o corte dos  salários, arbitrariamente imposto pelo Governo do Estado. Na Seção Entrevista, o jurista comenta a importância do dispositivo legal da autonomia para a sobrevivência da universidade. E alerta: sem garantia de autonomia financeira, o dispositivo  constitucional é letra morta.

Com mais este número da nossa revista, cremos que continuamos a garantir um  importante espaço para a reflexão acadêmica, para o debate político e para a  divulgação de ações que fazem a vida universitária ainda pulsar, apesar da falta de  recursos, dos salários defasados, do descaso dos governos, enfim, dos grandes  obstáculos contra os quais, como entidade sindical, lutamos e continuaremos a lutar.

DENISE BRASIL ALVARENGA AGUIAR
Editora Responsável

Revista Advir nº 20,  p. 5.

 

ENTREVISTA
Rogério de Oliveira Souza – Juiz Titular da 20ª Vara Cível.


O momento mais dramático da greve realizada pela Uerj, entre abril e junho de 2006,  foi o corte de salários de professores e servidores técnico-administrativos. Uma ação articulada conjuntamente pelas secretarias de Ciência, Tecnologia e Inovação e de  Administração e Reestruturação do Estado. De um só golpe os secretários do Governo  Rosinha Garotinho violentaram o direito de greve dos trabalhadores no serviço público  e a autonomia universitária.

Dias após, o feitiço voltou-se contra o feiticeiro. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio  de Janeiro concedeu liminar à ação movida pela Asduerj contra a titular da Secretaria  de Estado de Administração e Reestruturação, impondo uma derrota que até então  governo nenhum obtivera em confronto com servidores públicos em greve.

Passados quase dois meses, num acórdão histórico, uma junta de desembargadores do  mesmo tribunal julgou favoravelmente e por unanimidade o mérito do mandado de  segurança. A decisão transformou-se num referencial para servidores públicos de todo  país e as universidades brasileiras ganharam uma peça judicial para a defesa dos ataques constantes dos poderes executivos contra a autonomia universitária. Ambos os pareceres foram redigidos pelo Juiz titular da 20ª Vara Cível, Rogério de Oliveira Souza. Entusiasta de sua profissão, como se define, ele atualmente encontra-se convocado para a 17ª Câmara Cível do TJRJ, como desembargador JDS, condição na qual julgou o Mandado de Segurança impetrado pela Asduerj. Neste número em que a autonomia universitária encontra-se no centro do debate, Advir convidou o magistrado para uma breve conversa sobre o tema.
 

Qual é a importância de um dispositivo como a autonomia da universidade na nossa sociedade atualmente?

A autonomia é ponto nodal da própria educação superior. Não pode haver universidade  onde haja intromissão de determinado governo ou grupo político externo à  universidade para tentar direcioná-la a caminhos que não são próprios dela. Mas a  autonomia universitária se faz com uma dotação orçamentária garantida. Se não tiver  o dinheiro, não tem autonomia universitária, vira balela. Não funciona na realidade.  Como podemos ver há pouco tempo: a primeira coisa que se fez foi cortar os salários  do professor, do operador da educação. Ou se garante a autonomia universitária, na  prática, com medidas objetivas ou tudo não passa de uma idéia, bonita, mas que não  tem eficácia na sociedade.

Evidentemente a autonomia universitária não é só orçamentária. É uma autonomia de  idéias. A universidade tem que ser um palco de discussão, sem nenhum  patrulhamento, sem nenhuma censura prévia ou posterior aos debatedores. Tem que  ser um ambiente livre, de idéias. Senão, não é uma universidade. 

Apesar de garantida pelo artigo 207 da Constituição Federal e 309 da Constituição Estadual não são raros os exemplos de ingerência indevida do Estado na autonomia universitária. De que forma a universidade poderia proteger-se destes abusos do poder Executivo?

A universidade tem que se aproximar da sociedade. Não pode ser um templo afastado.    

Tem que produzir conhecimento prático. Não adianta elaborarmos uma teoria, uma tese excepcional, mas que não tenha reflexo para a sociedade.

Quem vai, no final, defender a universidade é a sociedade organizada. E não só a sociedade organizada dentro da universidade. A sociedade tem que enxergar na  universidade um ponto de saída dos seus anseios. No final deste caminho histórico, o  ponto de apoio da universidade é a própria sociedade. Ela tem que reconhecer na  universidade um ponto vital para desenvolver o país e a própria sociedade. Não falo da  universidade apenas no sentido de uma instituição de ensino superior, mas também como responsável pela formação cultural, educacional da população.

Todo mundo sabe – pois isto é histórico – que todo governante tem medo de um povo  instruído, porque ele vai exigir, vai coloca-lo contra a parede. É por isso que existe  esta tensão permanente entre a autonomia universitária e a pressão política dos governos contra essa autonomia. É uma tensão real que teremos que enfrentar, como  enfrentamos de certa forma recentemente.

Não é só uma questão salarial. Claro que o homem tem que comer, pagar as contas,  mas a universidade tem que produzir conhecimento, isso falta no país.

A luta universal hoje é pelo conhecimento; não é quem tem mais, é quem sabe mais. É  a universidade que deve produzir este conhecimento. Ela tem que se mostrar  indispensável para o desenvolvimento da sociedade.

Vejo que isto hoje ainda está distante de acontecer. Não basta um hospital universitário, não basta um projeto no  interior do Brasil. Não é só isso. O conhecimento produzido no meio universitário tem  que ter utilidade prática, senão a sociedade acha aquilo desnecessário, como é com a justiça. Não adianta a justiça ter prédios maravilhosos se os processos demoram. A sociedade acaba vendo aquilo como um estorvo, que ela é quem paga. 

Uma corrente majoritária de pensamento no movimento docente, inclusive a  direção do Andes-Sindicato Nacional, entende que a autonomia universitária  na forma como se encontra definida na Constituição Federal é autoaplicável.  O que pensa sobre a questão?

A questão quanto aos dispositivos constitucionais auto-aplicáveis e àqueles que dependem de uma regulamentação posterior – que nunca virá – está colocada em toda  as correntes do direito. É antiga. Tenho uma posição, e procuro exercê-la no meu dia-a-dia: a Constituição tem que ser aplicada. Ela não é norma morta. Se ela lá está, tudo  que diz é pra valer e já. Mas existem correntes, não só na questão educacional, mas  nas questões jurídicas, sociológicas etc, que afirmam que os dispositivos da Constituição ou a maioria deles dependem de uma regulamentação posterior. Mas isso  irá depender da corrente política dominante em determinado momento para favorecer  ou não a edição destas normas complementares. Se nós esperarmos por isso, como na  questão da greve no serviço público, será uma frustração, porque a regulamentação  nunca virá.

Lei é interpretação, queiramos ou não. Então, como devemos encaminhar esta  interpretação, que princípio utilizar? Entendo que deve ser retirado da Constituição tudo que ela pode dar de imediato. Independentemente de lei complementar, ordinária  ou não. Se existe uma norma constitucional e, por definição, ela é a maior que rege o  Estado, tem que ser aplicada. No caso da dicotomia entre a auto-aplicação ou não da  autonomia universitária, interpreto, como fiz, pela autoaplicabilidade sempre. 

A Constituição Estadual no primeiro parágrafo do artigo 309 define um  percentual mínimo de 6% da receita do Estado para a Uerj. Esse artigo foi  contestado judicialmente através da ADIN 780-7/600, com o argumento de  que seria invasão na competência do poder executivo, ferindo o princípio da  independência dos poderes. A essa argumentação poderia se contrapor que, a   rigor, o Poder Legislativo Constituinte não fez mais do que impor limites ao  executivo, como é de sua atribuição?

Recentemente, nós – a sociedade – conseguimos uma vitória fenomenal: a emenda constitucional 45, que garantiu às defensorias públicas dos estados esta autonomia orçamentária. Esta luta não é nova. É evidente que o poder executivo não quer de  antemão predeterminar onde vai aplicar os recursos que arrecada. Faz parte da  Legislação dar essa liberdade de aplicação ao administrador público. Porém, caminhamos, cada vez mais, para tentar fazer com que o administrador aplique os recursos que arrecada da sociedade naquilo que a sociedade quer que ele aplique. Sem  fazer obras faraônicas ou desnecessárias ou com outro intuito que não o de atender ao bem-estar social. Entendo que devem ser definidas ao nível Constitucional, Estadual ou Federal – seja lá onde for –, dotações orçamentárias próprias para determinados programas, projetos e setores do Estado. Não há inconstitucionalidade nisso, não há  invasão de competência nisso. Há uma opção da sociedade de limitar a liberdade do administrador. Se está na Constituição que 6, 10, 8% é dotação orçamentária da universidade, o administrador tem que aplicar isto. É evidente que não basta estar na Constituição. Tem que ter uma força organizada, um grupo organizado, a sociedade organizada, fazendo cumprir aquela determinação constitucional. Senão, vira letra morta. Infelizmente, estamos num processo evolutivo nacional de fazer valer as leis, a Constituição. E isso é cultural, demanda uma briga, como vimos agora. A defensoria  vai enfrentar esta briga, tenho certeza. Isto é novo para ela, não tem nem um ano  inda.

Acredito que o caminho é a sociedade atrelar, cada vez mais, estes recursos públicos a serviços determinados, para que não que fique ao bel prazer do governante eventual.

Revista Advir nº 20, p. 6-11.

 

PONTO DE VISTA


 

Fonte: Revista Advir nº 20, dezembro/2006, <http://www.asduerj.org.br/publica/revista/imagens/Advir20online.pdf>
 Publicação da Asduerj – Associação dos Docentes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


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