A AUTONOMIA
UNIVERSITÁRIA
ENTREVISTA Dias após, o feitiço voltou-se contra o feiticeiro. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro concedeu liminar à ação movida pela Asduerj contra a titular da Secretaria de Estado de Administração e Reestruturação, impondo uma derrota que até então governo nenhum obtivera em confronto com servidores públicos em greve.
Passados quase dois
meses, num acórdão histórico, uma junta de desembargadores do mesmo
tribunal julgou favoravelmente e por unanimidade o mérito do mandado de
segurança. A decisão transformou-se num referencial para servidores
públicos de todo país e as universidades brasileiras ganharam uma peça
judicial para a defesa dos ataques constantes dos poderes executivos contra
a autonomia universitária. Ambos os pareceres foram redigidos pelo Juiz
titular da 20ª Vara Cível, Rogério de Oliveira Souza. Entusiasta de sua
profissão, como se define, ele atualmente encontra-se convocado para a 17ª
Câmara Cível do TJRJ, como desembargador JDS, condição na qual julgou o
Mandado de Segurança impetrado pela Asduerj. Neste número em que a autonomia
universitária encontra-se no centro do debate, Advir convidou o magistrado
para uma breve conversa sobre o tema. Qual é a importância de um dispositivo como a autonomia da universidade na nossa sociedade atualmente? A autonomia é ponto nodal da própria educação superior. Não pode haver universidade onde haja intromissão de determinado governo ou grupo político externo à universidade para tentar direcioná-la a caminhos que não são próprios dela. Mas a autonomia universitária se faz com uma dotação orçamentária garantida. Se não tiver o dinheiro, não tem autonomia universitária, vira balela. Não funciona na realidade. Como podemos ver há pouco tempo: a primeira coisa que se fez foi cortar os salários do professor, do operador da educação. Ou se garante a autonomia universitária, na prática, com medidas objetivas ou tudo não passa de uma idéia, bonita, mas que não tem eficácia na sociedade. Evidentemente a autonomia universitária não é só orçamentária. É uma autonomia de idéias. A universidade tem que ser um palco de discussão, sem nenhum patrulhamento, sem nenhuma censura prévia ou posterior aos debatedores. Tem que ser um ambiente livre, de idéias. Senão, não é uma universidade. Apesar de garantida pelo artigo 207 da Constituição Federal e 309 da Constituição Estadual não são raros os exemplos de ingerência indevida do Estado na autonomia universitária. De que forma a universidade poderia proteger-se destes abusos do poder Executivo? A universidade tem que se aproximar da sociedade. Não pode ser um templo afastado. Tem que produzir conhecimento prático. Não adianta elaborarmos uma teoria, uma tese excepcional, mas que não tenha reflexo para a sociedade. Quem vai, no final, defender a universidade é a sociedade organizada. E não só a sociedade organizada dentro da universidade. A sociedade tem que enxergar na universidade um ponto de saída dos seus anseios. No final deste caminho histórico, o ponto de apoio da universidade é a própria sociedade. Ela tem que reconhecer na universidade um ponto vital para desenvolver o país e a própria sociedade. Não falo da universidade apenas no sentido de uma instituição de ensino superior, mas também como responsável pela formação cultural, educacional da população. Todo mundo sabe – pois isto é histórico – que todo governante tem medo de um povo instruído, porque ele vai exigir, vai coloca-lo contra a parede. É por isso que existe esta tensão permanente entre a autonomia universitária e a pressão política dos governos contra essa autonomia. É uma tensão real que teremos que enfrentar, como enfrentamos de certa forma recentemente. Não é só uma questão salarial. Claro que o homem tem que comer, pagar as contas, mas a universidade tem que produzir conhecimento, isso falta no país. A luta universal hoje é pelo conhecimento; não é quem tem mais, é quem sabe mais. É a universidade que deve produzir este conhecimento. Ela tem que se mostrar indispensável para o desenvolvimento da sociedade. Vejo que isto hoje ainda está distante de acontecer. Não basta um hospital universitário, não basta um projeto no interior do Brasil. Não é só isso. O conhecimento produzido no meio universitário tem que ter utilidade prática, senão a sociedade acha aquilo desnecessário, como é com a justiça. Não adianta a justiça ter prédios maravilhosos se os processos demoram. A sociedade acaba vendo aquilo como um estorvo, que ela é quem paga. Uma corrente majoritária de pensamento no movimento docente, inclusive a direção do Andes-Sindicato Nacional, entende que a autonomia universitária na forma como se encontra definida na Constituição Federal é autoaplicável. O que pensa sobre a questão? A questão quanto aos dispositivos constitucionais auto-aplicáveis e àqueles que dependem de uma regulamentação posterior – que nunca virá – está colocada em toda as correntes do direito. É antiga. Tenho uma posição, e procuro exercê-la no meu dia-a-dia: a Constituição tem que ser aplicada. Ela não é norma morta. Se ela lá está, tudo que diz é pra valer e já. Mas existem correntes, não só na questão educacional, mas nas questões jurídicas, sociológicas etc, que afirmam que os dispositivos da Constituição ou a maioria deles dependem de uma regulamentação posterior. Mas isso irá depender da corrente política dominante em determinado momento para favorecer ou não a edição destas normas complementares. Se nós esperarmos por isso, como na questão da greve no serviço público, será uma frustração, porque a regulamentação nunca virá. Lei é interpretação, queiramos ou não. Então, como devemos encaminhar esta interpretação, que princípio utilizar? Entendo que deve ser retirado da Constituição tudo que ela pode dar de imediato. Independentemente de lei complementar, ordinária ou não. Se existe uma norma constitucional e, por definição, ela é a maior que rege o Estado, tem que ser aplicada. No caso da dicotomia entre a auto-aplicação ou não da autonomia universitária, interpreto, como fiz, pela autoaplicabilidade sempre. A Constituição Estadual no primeiro parágrafo do artigo 309 define um percentual mínimo de 6% da receita do Estado para a Uerj. Esse artigo foi contestado judicialmente através da ADIN 780-7/600, com o argumento de que seria invasão na competência do poder executivo, ferindo o princípio da independência dos poderes. A essa argumentação poderia se contrapor que, a rigor, o Poder Legislativo Constituinte não fez mais do que impor limites ao executivo, como é de sua atribuição? Recentemente, nós – a sociedade – conseguimos uma vitória fenomenal: a emenda constitucional 45, que garantiu às defensorias públicas dos estados esta autonomia orçamentária. Esta luta não é nova. É evidente que o poder executivo não quer de antemão predeterminar onde vai aplicar os recursos que arrecada. Faz parte da Legislação dar essa liberdade de aplicação ao administrador público. Porém, caminhamos, cada vez mais, para tentar fazer com que o administrador aplique os recursos que arrecada da sociedade naquilo que a sociedade quer que ele aplique. Sem fazer obras faraônicas ou desnecessárias ou com outro intuito que não o de atender ao bem-estar social. Entendo que devem ser definidas ao nível Constitucional, Estadual ou Federal – seja lá onde for –, dotações orçamentárias próprias para determinados programas, projetos e setores do Estado. Não há inconstitucionalidade nisso, não há invasão de competência nisso. Há uma opção da sociedade de limitar a liberdade do administrador. Se está na Constituição que 6, 10, 8% é dotação orçamentária da universidade, o administrador tem que aplicar isto. É evidente que não basta estar na Constituição. Tem que ter uma força organizada, um grupo organizado, a sociedade organizada, fazendo cumprir aquela determinação constitucional. Senão, vira letra morta. Infelizmente, estamos num processo evolutivo nacional de fazer valer as leis, a Constituição. E isso é cultural, demanda uma briga, como vimos agora. A defensoria vai enfrentar esta briga, tenho certeza. Isto é novo para ela, não tem nem um ano inda. Acredito que o caminho é a sociedade atrelar, cada vez mais, estes recursos públicos a serviços determinados, para que não que fique ao bel prazer do governante eventual. Revista Advir nº 20, p. 6-11. PONTO DE VISTA
Fonte: Revista Advir nº 20, dezembro/2006,
<http://www.asduerj.org.br/publica/revista/imagens/Advir20online.pdf> |