CIDADANIA E AUTONOMIA
UNIVERSITÁRIA
Mais de três meses de greve e nenhuma reivindicação atendida. Porém, para recuperar a auto-estima, uma decisão judicial favorável em termos claramente definidores do que são as partes em litígio: a Uerj e o Governo do Estado, no caso, o seu preposto, a Secretaria de Administração e Recursos Especiais, a Sare. Entre os fundamentos da decisão, a autonomia universitária, mostrando, para os que não acreditam, que ela existe, que não é letra morta e esquecida da Constituição do Estado do Rio de Janeiro: ela deve e pode ser praticada. Pena que tenha sido preciso um desembargador para dizer isso ao Governo do Estado, quando nós da Uerj, que estávamos e continuamos calados em relação a isso, já devíamos ter dito há muito tempo e evitado tantas dificuldades, humilhações e também as greves, porque, afinal, elas não fazem bem a ninguém. O problema é que ainda vivemos no caldo de cultura da ainda não tão distante ditadura militar. Acredita-se ingenuamente que os chefes dos poderes executivos, sejam presidentes, governadores ou prefeitos, possam fazer de tudo. E, por mais que falem em cidadania, não se sabe bem o que seria isso, que ideal estaria nessa palavra. Pior ainda em relação à palavra autonomia, que está relacionada àquela e, tal qual, está ligada ao ideal que pretendemos significar com a palavra liberdade. Por isso, se já não temos o medo daqueles tempos obscuros; devido ao que passamos, desconfiamos, todavia, do que temos agora: da cidadania, da autonomia, da liberdade. Será que é isso mesmo o que temos? E o que é isso? Não vamos pensar que sejam coisas absolutas, que bastam a si mesmas. Todas são relativas; todas devem ser relacionadas aos tempos em que vivemos, aos valores destes tempos. Por isso, é em relação às instituições políticas sob as quais vivemos que devemos pensá-las e esclarecê-las para nós mesmos. Somos cidadãos, autônomos e livres de acordo com elas. Sem dúvida, elas são definidoras, especialmente da nossa autonomia e da nossa liberdade, que podem, em tese e na prática, serem mais amplas, porém, jamais totais ou ilimitadas, exatamente porque, em sociedade, estaremos sempre sob os limites que tais instituições impuserem. Consideremos, então, as raízes das atuais instituições políticas brasileiras para tentar esclarecer que cidadãos somos nós, que autonomia e que liberdade nós temos. Não são raízes nossas; vieram da Inglaterra e da França, cujas histórias tão diferentes se espalharam por boa parte do mundo. E por isso podem confundir, afinal, se nasceram na Inglaterra – e, de fato, a principal raiz está no individualismo inglês –, receberam na França o abrangente caráter social que pretendemos destacar neste artigo. O ato fundador dessas instituições, mais precisamente a base sobre a qual vieram a se desenvolver, foi o juramento da Bill of Rights pelo rei Guilherme III, em 1689. Embora fosse o resultado de uma longa e complexa história de lutas entre reis e súditos ingleses no século XVII, que terminara com a Revolução Gloriosa no ano anterior, aquilo que principalmente significou pode ser resumido de maneira simples: o estabelecimento, por parte de um Poder Legislativo, de limites para as ações dos chefes dos poderes executivos, sendo, naquele ato, as do rei da Inglaterra; mais tarde, correndo o mundo, de outros reis, de presidentes, de primeiros ministros, de governadores e de prefeitos. A Bill of Rights não trouxe em si nada que dissesse respeito a cidadão ou cidadania, à parte tolerância religiosa. A pessoa que pretendia defender era uma pessoa coletiva, a Commonwealth, a comunidade de proprietários individualistas que haviam se unido e lutado em torno de um único bem comum: a segurança do privado, mais precisamente, a garantia da propriedade privada e dos excedentes monetários dos súditos contra intervenções reais. A Commonwealth era o sujeito desse bem comum. Com efeito, a Bill of Rights era de caráter deontológico. No rigor do significado etimológico desta palavra, o de ser conveniente às partes que a propuseram e a impuseram ao juramento real, não obrigava aquelas partes a nada que não tivessem pactuado, salvo a responsabilidade que tinham com aqueles que, não sendo proprietários, habitavam nos distritos em que estavam as suas propriedades. Tudo disposto de modo que os proprietários privados dispusessem da mais completa liberdade de ação nos seus limites territoriais sob proteção comunitária. Por isso, naqueles limites, sem dúvida, de autonomia.
Em rigor, da parte do Parlamento, então transformado em Poder Legislativo, aquele ato fundamental de impor limites e controlar o Poder Executivo significou também a mudança do sujeito da soberania, do sujeito daquilo que é próprio do que está acima de todas as coisas, daquilo que se tem como valor maior entre todos os valores. Não era mais o rei o soberano. Soberano passara a ser o povo, a Commonwealth, a sociedade civil, restrita então aos proprietários privados e hoje estendida a todos aqueles que devem conhecer as leis do país em que vivem, ou em que nasceram eles ou os seus pais. Foi a isso que a obra de Locke deu teoria e prosseguiu sendo desenvolvido no pensamento de Montesquieu e de Rousseau, com influência na Independência e na Constituição dos Estados Unidos, na Revolução Francesa e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. No Brasil, está na sua atual Constituição Federal: Todo o poderemana do povo(1). Porém, é preciso destacar aquilo que mais se deve à cultura política francesa: a sua concepção daquilo que seria o cidadão(2). Os franceses, embora na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, como os ingleses e os norte-americanos, partissem do princípio de que defendiam direitos humanos naturais, pensaram os homens também como realidades sociais, para além de sua própria natureza biológica. Realidades que seriam derivadas da vida sob leis sociais, realidades formadas e limitadas por elas que, desse modo, definiriam outra concepção de liberdade e, assim, de autonomia. Em rigor, os homens não seriam sociais por natureza; seriam sociais apenas por serem formados pelas leis da sociedade. Porém, teriam direitos derivados da naturalidade e da formação social. Portanto, de outro modo, embora sociais somente por formação, os homens teriam ambos os direitos: os direitos naturais e os direitos de cidadão, que um menor de idade, sob proteção devido a seus direitos naturais, ainda não poderia ter. E é nesse ponto que em contrapartida aparece uma das diferenças fundamentais entre a forma anglo-americana e a francesa de pensar as relações entre homens e sociedades. Trata-se da questão relativa aos deveres sociais dos homens, que é inseparável da questão sobre seus direitos, a menos que não se pense em justiça social. Talvez por não terem sofrido influência do Direito Romano e terem rompido com a Igreja Católica antes mesmo de iniciarem a luta que terminaria com a fundação das novas instituições políticas, os ingleses – e mais tarde com repercussão na cultura norte-americana – trataram os deveres dos homens em sociedade como coisas que estariam sujeitas a lhes tirar a liberdade individual. Por isso, foram deontológicos: procuraram doutrinar e legislar de modo que não se interviesse nos motivos das ações individuais, que deviam ser deixados à conveniência de cada um. Ninguém teria dever algum, obrigação alguma, salvo as que assumisse por pura e espontânea vontade ou as que dissessem respeito à segurança comum.
Para os franceses, esse lado dos deveres foi pensado e tratado como completamente social. Eles seriam definidos pela própria formação em sociedade e não admitidos apenas de acordo com a conveniência de cada um ao fazer os seus pactos. É o que podemos chamar de caráter moralista e não deontológico dos deveres do cidadão. Os ingleses estabeleceram uma ordem jurídico-política para se protegerem uns dos outros e serem individualmente livres – no sentido mais naturalista em que isso possa ser considerado –, sem obrigações acima de suas vontades individuais, em comunidade protegida contra reis da Inglaterra, que não tinham origem inglesa. Os franceses, ao contrário, embora com o mesmo objetivo, procuraram estabelecer leis acima das vontades individuais, definindo deveres sociais para além delas, concluindo que para isso tinham de destacar, acima de todas as existências, a existência social, ela sim soberana, tivesse o nome de vontade geral, Ser Supremo ou opinião pública. A fórmula consagrada pelos franceses de pensar as relações entre homens e sociedade certamente veio a ser a de Rousseau, simplificada e popularizada por Alexandre Dumas no seu Os Três Mosqueteiros: um por todos e todos por um. Ela quer dizer que ninguém deve dar nada a ninguém nem receber nada de ninguém. Só se deve dar à sociedade e só dela se deve receber. Quando, por exemplo, um médico, que se deu todo inteiro à sociedade para receber sua formação profissional (um por todos), atende um paciente, ele o faz como parte indivisível da sociedade (todos por um); e quando o paciente, também parte indivisível da sociedade, paga os honorários, ele paga à sociedade representada pelo médico. Quem duvidar que seja representado assim que se lembre do recibo, que se lembre do imposto de renda e, por último, de quem formou o médico, de quem lhe deu e de quem lhe reconheceu o diploma. É a fórmula da liberdade, admitindo-se que esta só pode existir em sociedade e na medida em que a sociedade seja produto de um pacto do qual surja uma vontade soberana inalienável, indivisível e indestrutível, na qual nenhuma das partes esteja representada, mas que seja representada por elas em suas ações individuais. Em rigor, sob essa vontade soberana, ninguém manda em ninguém, ninguém está subordinado a ninguém. São todos socialmente autônomos. Toda autoridade é social; toda autoridade representa a sociedade como um todo, jamais qualquer de suas partes. E é a essa idéia que se pode ligar também a noção de liberdade em Montesquieu, em rigor, liberdade civil: “a liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem além de não ser constrangido a fazer coisas que a lei não obriga e a não fazer as que a lei permite” (MONTESQUIEU, 1933, p 168). É o que está na Constituição da República Federativa do Brasil, que no seu Art. 5°, inciso II, tem a sua maneira de dizer o mesmo: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Assim, é de acordo com a maneira de pensar dos franceses, que ainda encontraria desenvolvimento e esclarecimento na Sociologia de Durkheim, que devemos pensar nossas leis e esclarecer o que seria, de acordo com elas, liberdade, cidadania e autonomia, em especial, autonomia universitária. Isso porque, apesar de todo o avanço de valores individualistas na sociedade brasileira – a ponto de podermos, num prazo não muito longo, submeter nossa anterior formação ao domínio dos valores da cultura anglo-americana –, a legislação brasileira continua de caráter moralista e não de caráter deontológico. Todavia, as leis não podem prever tudo e abranger as inesgotáveis possibilidades de ação dos homens dentro dos seus limites. Por isso, além de o cidadão ter o direito de fazer tudo o que as leis permitem, pode fazer o que elas não proíbem e, desse modo, agir de acordo com a sua vontade, sem dúvida, sem fazer o que as leis não permitem. Essa é a nossa autonomia de cidadão: o direito que temos de fazer nossas opções sociais, de exercer o comando social que nós temos sobre nós mesmos sob as leis da sociedade. Pois foi esse direito à autonomia que os universitários pediram aos papas e lhes foi concedido em tempos bem mais rigorosos e fechados em termos de valores do que o nosso. Eles sabiam que a produção de conhecimento dizia respeito a uma das esferas de valores que não estava prevista nos mandamentos cristãos, embora tivesse de lhes prestar obediência. Desejaram exercer de maneira autônoma aquela atividade que, apesar de ser exteriormente limitada, é inesgotável nos seus limites. Receavam ficar sob imperativos dos bispos das igrejas locais, dos senhores feudais ou dos reis. Se haviam de ficar sob alguma autoridade, que fosse sob aquela que estivesse acima de todas: a do papa. Quanto mais restritiva a autoridade sob a qual se está, mais restrita a autonomia, mais restritos os limites, menores as inesgotáveis possibilidades de ação.
Por isso, a lição para os dias de hoje: se é para obedecer a alguém, que se obedeça ao povo, pois ele é o soberano, é dele que vem a autoridade suprema, a que está nas leis, não importando aqui a demagogia e as distorções dos nossos processos políticos, que nos fariam discutir uma série de questões a respeito do que é realmente o povo como sujeito na realidade brasileira. Obedecer às leis é obedecer ao povo, mesmo que na aparência se esteja obedecendo a uma autoridade constituída como se fosse a uma autoridade absoluta. Isso porque foi esse povo, por meio de representantes, que redigiu na Constituição do Estado do Rio de Janeiro, no Art. 309, anterior Art. 306, que “A Universidade do Estado do Rio de janeiro, organizada sob a forma de fundação de direito público, goza de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, para o exercício de suas funções de ensino, pesquisa e extensão”. Desse modo, trata-se a Uerj de uma cidadã, de pessoa jurídica livre e autônoma nos termos da lei, nos termos da vontade do soberano, que está definido no Art. 1°: “O povo é o sujeito da Vida política e da História do Estado do Rio de Janeiro”. Daí porque o principal representante da Uerj, o Magnífico Reitor, tem entre as suas atribuições estatutárias a de “cumprir e fazer cumprir a Constituição Federal e a Estadual, assim como as leis e os mandamentos universitários”. Embora eleito pela Comunidade Universitária, nomeado e empossado pelo Governador, é ao povo, cuja vontade política, repita-se, está nas leis, que ele deve obediência, ao lado da obediência interna ao supremo órgão normativo, deliberativo e consultivo da Uerj, o Conselho Universitário; órgão ao qual preside e ao qual, em conjunto com o Conselho Superior de Ensino e Pesquisa, cabe a iniciativa de fundamentar e propor a destituição de um Reitor, que, uma vez aprovada, somente assim será da competência privativa do Governador. Deve-se lembrar, ainda, que entre as demais atribuições estatutárias do Reitor está a de “submeter ao Conselho Universitário, ouvido o Conselho Superior de Ensino e Pesquisa, a proposta orçamentária para o exercício financeiro seguinte, a de exercer a gestão econômica e financeira da Uerj e, especialmente, autorizar despesas, ordenar pagamentos, dar quitações, movimentar depósitos bancários ou fundos financeiros, transigir ou desistir, assinar documentos e celebrar contratos, acordos ou convênios, aceitar doações e praticar, em geral, os demais atos de administração para a boa ordem da economia e das finanças da Uerj”, bem como a de “contrair empréstimos internos e externos, com aprovação do Conselho Universitário, podendo oferecer em garantia bens ou receitas futuras da Uerj, ouvindo o Conselho de Curadores”. Sem dúvida, são atribuições que consagram a autonomia administrativa e de gestão financeira e patrimonial para o exercício das funções universitárias de ensino, pesquisa e extensão, que são constitucionalmente obrigatórias. Para isso o próprio Art. 309 dispõe no seu 1° parágrafo que “O Poder Público destinará anualmente à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), dotação definida de acordo com a lei orçamentária estadual, nunca inferior a 6% da receita tributária líquida, que lhe será transferida em duodécimos, mensalmente”. E não podemos esquecer que esse parágrafo foi regulamentado pela Lei n° 1729 de 31 de outubro de 1990. Todavia, não se cumpre essa lei. “A Universidade do Estado do Rio de Janeiro, organizada sob a forma de fundação de direito público, goza de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, para o exercício de suas funções de ensino, pesquisa e extensão”, como está no caput do Art. 309; mas não recebe a dotação orçamentária disposta na Constituição Estadual em seu 1° parágrafo já regulamentado. Devido a isso, o Reitor da Uerj está impedido de cumprir parte de suas atribuições. Ele não cumpre a Constituição Estadual no que diz respeito à gestão financeira, simplesmente porque não dão à Uerj os meios já definidos em lei para esse fim. Da mesma maneira, está impedido de cumprir os artigos 53 e 54 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, os que dizem respeito ao exercício da autonomia universitária, nos vários incisos relativos a gestão financeira. A Uerj é como um cidadão que não pode fazer o que as leis permitem. A principal razão para esse impedimento está na liminar concedida em parte, em 11 de março de 1993, ao Governador do Estado do Rio de Janeiro, Leonel de Moura Brizola, pedida em Ação Direta de Inconstitucionalidade, Adin 780-7/600, proposta em 28 de agosto de 1992. Dizse “em parte” porque dos cinco artigos da Constituição do Estado do Rio de Janeiro impugnados e dos quais se pediu, liminarmente, a suspensão dos efeitos, um deles, o que dispõe dotação mínima de 2% da receita tributária prevista para a Faperj, não teve os seus efeitos suspensos. As outras razões são decorrentes da má-fé com que é tratada, governo após governo, pelas autoridades do Estado do Rio de Janeiro e da apatia da própria Uerj, que até hoje, que se saiba, não tomou nenhuma providência contra a suspensão liminar dos efeitos do 1° parágrafo do Art. 309. A Adin 780-7/600 tem lá alguma razão, mas na maior parte é incoerente e contraditória. Em relação à Uerj está completamente equivocada, pois a trata como se fosse uma subsecretaria de estado e não como universidade autônoma. Aí seu maior pecado; aí nossa maior omissão. Se a Uerj fosse uma secretaria de estado, seria até possível considerar procedente a impugnação do dispositivo constitucional relativo à dotação de no mínimo 6% da renda tributária líquida. Porém, sua autonomia muda completamente as relações com o Governo do Estado. Devido à sua autonomia, não está sujeita a atos discricionários do Governador do Estado. A definição de um mínimo de 6% da renda tributária líquida é a proteção constitucional de sua autonomia; é a sua garantia contra atos discricionários do Governador do Estado. Com essa dotação, o Poder Legislativo do Estado do Rio de Janeiro cumpriu sua função histórica: a de impor limites ao Poder Executivo. Os fundamentos da Adin 780-7/600 são claros e fáceis de entender. Seguem, então, o Art. 2°, o Art. 25 e o Art. 165 da Constituição Federal: Art. 2°. São poderes da União, independentes e harmônicosentre si o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição. Art.165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão: I - o plano plurianual; II - as diretrizes orçamentárias; III - os orçamentos anuais. Em resumo, em relação à dotação definida para a Uerj e aos demais artigos estaduais impugnados, esses artigos federais estão combinados da seguinte maneira: uma vez observados os princípios da Constituição Federal; a independência e a harmonia dos Poderes, a serem respeitadas em cada Estado, garantiriam a iniciativa de cada Poder Executivo Estadual para propor leis relativas ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias e aos orçamentos anuais. Desse modo, considerando-se ainda a competência limitada de cada Poder Legislativo para propor emendas às leis de caráter orçamentário, seria inconstitucional a prévia definição na Constituição do Estado do Rio de Janeiro de percentuais para a Uerj, para a educação especial e para a Faperj, além da obrigação de critérios de repartição de receitas entre os municípios de forma permanente, e da obrigação de maior percentual mínimo em gastos com educação, de 35%, ao invés dos 25% da Constituição Federal. Assim, seguindo a linha de raciocínio dessa Adin, toda disposição constitucional ou de legislação ordinária definindo percentual tendo em vista distribuição de recursos orçamentários seria invasão da competência do Poder Executivo, ferindo o princípio da independência dos Poderes. Porém, em que pese essa lógica, não seria o caso de lembrar o que diz o Art. 212 da Constituição Federal e verificar se não há outra lógica própria da relação entre esses Poderes que a contraria? Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. Com efeito, não estaria, assim, a Constituição Federal invadindo competência do Poder Executivo? Não estaria também ferindo o princípio de isonomia ao obrigar os Poderes Executivos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios a empregarem percentuais mínimos no ensino maiores do que os estabelecidos para o Poder Executivo da União? Não estaria se antecipando às iniciativas legislativas dos Poderes Executivos de todo o país em relação ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias e aos orçamentos anuais, impondo-lhes limites percentuais mínimos de aplicação no ensino? Com certeza não; a competência dos Poderes Executivos não está sendo invadida, até porque tudo que lhes cabe é definido pela Constituição Federal. Como no caso da dotação de 6% da renda tributária líquida para a Uerj na Constituição do Estado do Rio de Janeiro, o que se fez foi, como uma espécie de proteção cautelar em favor dos beneficiários, marcar os limites para os Poderes Executivos exercerem a sua competência constitucional. E isso nada mais é que o exercício da competência do Poder Legislativo, que ao legislar define os limites da liberdadede cada sujeito da sociedade. Em rigor, o Poder Legislativo Constituinte não fez legislação orçamentária, apenas definiu limites dessa liberdade de iniciativa dos Poderes Executivos. É preciso destacar: a Uerj, fora de seus limites internos, não tem poderes legislativos, executivos ou judiciários; tampouco é instituição que faça parte daquelas que dispõem de maneira independente e harmônica de qualquer desses três poderes(3). Não teria, portanto, como propor ou aprovar para si, uma parte dos recursos orçamentários do Estado. Foi preciso que deputados propusessem e aprovassem por ela, em nome do povo soberano, o percentual de 6% da renda tributária líquida. Isso para que a sua autonomia não fosse uma peça de ficção, como tem sido tratada até agora. Só a definição constitucional de um percentual mínimo à parte, independente da iniciativa do Poder Executivo, é coerente com o instituto da autonomia universitária. Ficar ao sabor das prioridades políticas que cada governo possa ter – conforme essa ou aquela linha política, conforme essa ou aquela avaliação, que possa fazer, da importância de o Estado do Rio de Janeiro ter uma universidade pública, gratuita e de qualidade – não lhe dá estabilidade para funcionar, como se vê claramente no quadro de aflições por que passamos agora. Subordinada ao Poder Executivo, a Uerj não poderia ser autônoma; não consegue ser autônoma. Vale dizer que a Adin 780-7/600 não considerou a existência da Lei n° 1729 de 31 de outubro de 1990, talvez porque não fosse mesmo cumprida, sabe-se lá com a omissão de quantos. E se, além disso, não fala na autonomia da Uerj uma vez sequer, talvez seja de propósito, porque, certamente, prejudicaria a sua tendenciosa argumentação. Repita-se: omitiram a Lei n° 1729 e a autonomia universitária quando argumentaram. Típica má-fé. Mas a Lei n° 1729 ainda está aí, bem como a ação tramitando lá em Brasília. Não é possível que não se possa fazer judicialmente nada. Não é possível que continue como está por nossa única e exclusiva culpa. Por isso, com a liminar e a nossa omissão, o Poder Executivo estadual tomou para si o poder inconstitucional de decidir quanto deve ou não conceder à Uerj em termos de recursos. Foi o que pretenderam e, até agora, conseguiram, haja vista o seguinte trecho dessa Adin: “Assim, pretenda o Poder executivo realocar recursos – digamos, exemplificativamente – à Uerj, para suplementar dotações de que se revelem carentes outras entidades ou órgãos estaduais de ensino, não poderá fazê-lo sem respeito ao limite de 6% da receita de impostos à Uerj destinadas por um dos dispositivos ora impugnados, salvo se negar aplicação ao estabelecido na Carta Estadual.” Sem dúvida, equivale a uma confissão. É um trecho em que o Governo do Estado tanto nega o direito da Uerj à autonomia, dando-lhe também indisfarçável tratamento de instituição não prioritária, quanto cobiça o dinheiro que, por lei, cabe à universidade. Desse modo, se existe algo inconstitucional é, no que diz respeito à Uerj, a pretensão da própria Adin 780-7/600. E, como todos os governos seguintes trataram a Uerj dessa maneira, está claro que a autonomia dessa universidade e a sua dotação constitucional não são bem vistas, não são aceitas. Se puderem, acabarão com elas e até mesmo com a Uerj. Recente proposta de secretário de Estado mostrou isso de maneira ofensiva. Por ele, a Uerj deve sair por aí procurando seus próprios recursos para não depender da mesada que o governo lhe dá. Tem graça: tiram nosso dinheiro e jogam na nossa cara os trocados que deixam. Por isso, é preciso agir rapidamente e não vacilar. Não se pode cair nessa conversa neoliberal e começar a vender planos de saúde do Hospital Pedro Ernesto, plano de estudos universitários com direito a cotas no vestibular, ou aberrações desse tipo. Vamos buscar na Justiça a dotação constitucional da Uerj que permitirá que ela seja, de fato, autônoma. Não podemos continuar na mão dos governadores e dos partidos políticos que se alternam no Governo do Estado. Depois, é questão de manter fiscalização permanente na arrecadação e na distribuição dos tributos. Não se pode confiar. Enfim, devemos lembrar que a luta pela autonomia universitária fez parte das lutas contra a ditadura militar desde a década de 60. Foi parte inseparável da luta pela democracia. Ela está aí porque nós não nos omitimos na hora de lutar naqueles tempos obscuros. Custou muito sacrifício; custou vidas. Não será agora, enfrentando governadores eleitos que agem como ditadores, que vamos nos omitir. É também uma questão de honra. Se formos dignos de tanta luta e do povo do Estado do Rio de Janeiro, lutaremos até o cumprimento da lei.
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Nova Constituição
do Estado do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, Gráfica Auriverde, 1989. Adin 780-7/600. AGRADECIMENTO
A Weber de Barros
Junior, pelos comentários e sugestões. NOTAS (1) Salvo tenha sido escrita em alguma das constituições estaduais da República Velha, essa sentença, com diferenças na sua redação, está em todas as constituições nacionais a partir da de 1934. Mas há diferenças no seu complemento que não podem escapar da nossa consideração, uma vez que dizem diretamente aos nossos problemas políticos e à nossa história: 1934, Art. 2° - Todos os poderes emanam do povo, e em nome dele são exercidos; 1937, Art. 1° - O Brasil é uma República. O poder político emana do povo e é exercido em nome dele, e no interesse do seu bem estar, da sua honra, da sua independência e da sua prosperidade; 1946, Art. 1° - Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido; 1967, Art. 1°, § 1° Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido; 1969, Art. 1°, § 1° Todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido; 1988, Art. 1°, parágrafo único – Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. À parte a discussão entre usar ou não o artigo definido antes da palavra poder, é clara, no texto de 1988, a preocupação em não permitir que se exerça o poder em nome do povo sem que se tenha sido eleito por ele. Tudo indica que seja dispositivo para que ninguém o exerça senão por meio do voto, para que ninguém aja em nome do povo sem o seu consentimento formal, como puderam permitir as constituições anteriores, que não explicitaram essa obrigação e deram margem a que ditaduras fossem instauradas em nome do povo, sem que ele tivesse sido consultado. (2) Neste ponto é da maior importância lembrar o De Cive (1640) de Thomas Hobbes e destacar porque não o consideramos como ponto de partida ou inspiração para a concepção francesa. No De Cive, como nas obras posteriores Leviatã (1651) e Behemot (1668), Hobbes preocupou-se em chamar a atenção para a conveniência de os súditos obedecerem às autoridades, mais precisamente ao monarca, em favor da própria segurança. Mas embora pensasse essa obediência como coisa dirigida não a uma pessoa natural e sim a um representante da Commonwealth, sendo desta a cabeça, o seu comando, não foi assim entendido. Pareceu a todos os autores que dele discordaram que propunha obediência ao monarca fundamentando-a na pessoa deste ou até em seu direito divino de governar, o que Hobbes, certamente, não fez. Daí porque o cidadão, tal como ele o concebeu, não foi aceito por Harrington, seu contemporâneo, nem por Locke, nas fórmulas liberais de base. Do mesmo modo, a personalização da obediência não foi aceita pelos franceses, apesar de, ironicamente, terem ficado bem próximos do que pretendeu Hobbes. Isso porque foram tão sociológicos quanto ele, sem dúvida, sem reconhecerem. (3) Como suas atividades de ensino, pesquisa e extensão não demandam o uso da violência, a Uerj não é uma instituição política e, por isso, não é também parte das instituições políticas, como são as partes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Fonte: Revista Advir nº 20, páginas 12-18. |