AUTONOMIA
UNIVERSITÁRIA: UMA CONQUISTA A SER RECONQUISTADA
A inscrição da autonomia universitária na Constituição Federal (CF) de 1988 concretizou uma das mais expressivas vitórias do movimento docente, fruto de anos de lutas, experiências e saberes políticos. Naquele momento, o ANDES-Sindicato Nacional, em conjunto com as entidades representativas de estudantes e técnico-administrativos, articulou-se a constituintes comprometidos com a educação pública para garantir à Universidade Pública brasileira o princípio que permitira o desenvolvimento das universidades européias: a autonomia didático-científica e administrativa, isto é, a independência em relação a quaisquer instâncias de poder extra-acadêmico, sejam políticas, partidárias, financeiras ou religiosas. Assim, o artigo 207 da CF afirma: “As universidades gozam de autonomia didático científica, administrativa e de gestão patrimonial e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Sabiamente, os constituintes entenderam que autonomia simplesmente é. Qualquer tentativa de defini-la ou de regulamentá-la – para usar a expressão do momento – significa restringi-la, controlá-la, e autonomia cerceada não é autonomia, mas heteronomia, isto é, submissão a normas impostas por outras instituições sociais, regidas por interesses alheios aos campos científico e educacional. Entretanto, isso não significa dizer que a autonomia seja uma desculpa, invencionice de quem se pretende acima ou fora da sociedade. Ao contrário, pois se não pode ser objeto de legislação, é plenamente justificada em seu próprio campo, o epistemológico:
A autonomia não constitui privilégio ou descolamento da sociedade em que a Universidade se insere; ao contrário, é a autonomia que propicia as condições para a produção de saberes, potencialmente capazes de transformar esta sociedade e a qualidade de vida das pessoas. É a autonomia também que possibilita que se produzam saberes financiados com recursos públicos, de modo que pertençam a todas as pessoas, para serem por todas elas utilizados, não devendo ser apropriados nem explorados, muito menos encomendados, por nenhuma parcela da sociedade. Esta é a essência da expansão a ser realizada pelas Universidades Públicas. O conhecimento científico publicamente produzido não pode ser transformado em mercadoria, pois pertence a todos, não se prestando a servir a interesses do capital ou a participar dos jogos de poder. Conhecimentos públicos, isto é, não mercantilizados nem privatizados, somente podem ser produzidos em instituições públicas, não apenas financiadas com recursos públicos, mas, porque estrategicamente estatais, consideradas integrantes do Estado.
Assim, a Universidade Pública só pode ser efetivamente autônoma se tiver garantidos os recursos necessários para sua manutenção e seu desenvolvimento, de modo que não necessite submeter-se a ditames e interesses de governantes ou do capital. Ao proclamar a Educação pública, gratuita e de qualidade como direito de todos e dever do Estado, os constituintes aprovaram a emenda Calmon que, no artigo 212 da CF, estabelece a vinculação de verbas para a Educação:
Duas décadas após, constatamos que, sem esse dispositivo constitucional, o quadro educacional brasileiro estaria ainda mais precário, com sucateamento ainda maior da escola pública. Os diferentes governantes, de diferentes partidos, em todos os âmbitos – federal, estadual e municipal – tentam burlar esta obrigação constitucional, em clara demonstração de descompromisso com o povo e a nação brasileiros. Ao burlarem, ou tentarem burlar, e não cumprir sua função de financiar a educação pública, cassam um direito social da população brasileira. Entretanto, essa vinculação constitucional referese à educação em todos os níveis, não havendo nenhum dispositivo que assegure recursos para o ensino superior, de modo que a Universidade Pública ainda é refém de interesses alheios à academia e de discursos eleitoreiros. De fato, a autonomia de gestão financeira ainda não foi concretizada, especialmente para as IFES, o que tolhe, na prática, sua autonomia didático-científica. As IEES paulistas são um bom caso para estudo, inclusive, e especialmente, na questão salarial. Sua autonomia de gestão financeira foi conquistada em 1989, por uma grande mobilização conjunta de docentes, estudantes e técnico-administrativos das três universidades (Unesp, Unicamp e USP). O que parecia, de início, mais uma campanha salarial, foi-se ampliando e resultou no histórico movimento “SOS Universidade”, com grande repercussão na sociedade civil, forçando o governador a “conceder” a autonomia, garantindo o repasse de percentual do ICMS, em duodécimos mensais. Tal percentual foi progressivamente aumentado, de 8,4% até os atuais 9,57%, sempre como conquistas do movimento, fortalecido pela articulação das entidades sindicais representativas de docentes e técnico-administrativos no Fórum das Seis. Os atuais 9,57% são claramente insuficientes, especialmente por alguns fatores: a expansão das universidades, com grande aumento do número de estudantes de graduação e de pós-graduação; o aumento da produção acadêmica e conseqüente necessidade de maior infraestrutura; o previsível, mas não previsto no decreto-lei, aumento do número de aposentados – de 2% para mais de 20% da folha de pessoal na Unicamp – e conseqüente necessidade de novas contratações. Daí, a constante luta das entidades sindicais que compõem o Fórum das Seis, agora articuladas com o movimento estudantil, pelo aumento deste percentual na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). É importante frisar que o Fórum não é uma entidade que se contrapõe ao Andes-SN ou à Fasubra-Sindical; ao contrário, trata-se de um espaço de articulação de lutas conjuntas, sem estatutos ou regras formais, que se referencia e se fortalece exatamente porque congrega seis entidades de classe – três representativas de docentes e três representativas de técnico-administrativos – que integram os sindicatos nacionais. Seis entidades de classe, sindicais, que se articulam ainda com outras três entidades também de classe, representantes dos estudantes em cada universidade. Este destaque é importante para combater o neopeleguismo sindical patrocinado pelo governo Lula da Silva, que tenta destruir nossa entidade sindical, o Andes-SN, apregoando uma pretensa semelhança com o Fórum das Seis. Nada mais distante e nada mais traiçoeiro com o movimento docente! (para maiores informações, leia o Caderno Adunicamp, 2004).
Porém, mesmo insuficiente, a autonomia de gestão de recursos garantidos possibilitou às IEES paulistas manterem seu padrão com menos perdas, especialmente se comparadas às IFES. Além disso, o Fórum aprendeu a lidar com previsões de crescimento, com expectativas de arrecadação do ICMS, com orçamento das universidades, folha de pagamentos, de tal modo que nas negociações salariais o movimento não é refém de previsões catastróficas de governadores e reitores, o que tem resultado em perdas salariais menores, em comparação às Ifes e outras IEES. Dizer que quase 10% do ICMS é insuficiente para as universidades estaduais paulistas pode levar o leitor à conclusão de que é mesmo impossível o ensino superior público de qualidade e gratuito. Afirmamos, categoricamente, que tal conclusão é precipitada e equivocada, assim como é falso que a universidade “roube” recursos da educação fundamental. O problema é de outra ordem, bem diversa: o descompromisso de governantes com a área social e com a melhoria da qualidade de vida de toda a população, sem rupturas em uma história de exclusões e falta de acesso, e seu comprometimento com a remuneração do capital e o favorecimento dos que já possuem demais. Continuemos com o estudo de caso paulista. Logo após a conquista da autonomia de gestão financeira, o mesmo governador (Quércia) destinou 1% do ICMS para habitação popular, uma iniciativa louvável, por certo. No entanto, descontou este 1% da base de cálculo de todas as verbas vinculadas, inclusive do repasse para as universidades, reduzindo os recursos a serem repassados. De uma só vez, burlou a Constituição Federal, a Constituição Estadual e o decreto-lei, que ele mesmo assinara, da autonomia de gestão financeira das universidades estaduais. Tal prática, que reduz todas as vinculações legais – educação, saúde e municípios –, foi mantida por todos os governadores que o sucederam, apesar das constantes denúncias do Fórum das Seis. Outro canal de fuga de recursos: segundo estimativas da própria Secretaria da Fazenda, para cada real arrecadado, 1,2 é sonegado. Ora, como pode um governo chegar a estimar o montante da sonegação e nada fazer para combatê-la de fato? Como pode um governante admitir a possibilidade de dispor apenas da metade do dinheiro que teria sob seu comando? É licito supor que haja outros mecanismos de compensação, especialmente à luz de fatos recentes. Do mesmo modo, as isenções fiscais, tão propagandeadas em períodos eleitorais, possuem perversos mecanismos de auto-reversão, de modo que os recursos à disposição dos governantes se mantenham inalterados, ou mesmo aumentem, enquanto as verbas vinculadas se reduzem. Assim, por meio apenas desses três mecanismos de burla, sem desconsiderar a existência de outros, provavelmente mais sofisticados, as universidades paulistas deveriam receber, no mínimo, 2,5 vezes o montante de recursos a elas destinados. Frise-se que esse dinheiro não seria desviado da educação básica, ou da saúde, mas apenas e tão somente de destinações inomináveis e obscuras. Assim, ocorreria um aumento de 2,5 vezes de todas as verbas vinculadas; ou seja, a educação em todos os níveis, a saúde e os municípios também teriam substancial elevação de recursos, sem prejuízo de nenhuma área que possa ser explicitada como integrante dos planos e objetivos do governo. Sem esses instrumentos para burlar a LDO que o próprio governador paulista encaminha à Assembléia Legislativa, os orçamentos das três universidades estaduais paulistas seriam suficientes para sua manutenção e desenvolvimento, incluindo sua ampliação, com o correspondente e necessário aumento do número de docentes e técnico-administrativos, e ainda, muito importante, com a preservação e até elevação do poder aquisitivo de seus salários. Não é o que tem acontecido. Embora mais lentamente que nas IFES, as condições de trabalho, incluindo-se a infra-estrutura para pesquisas, sofrem pela falta de recursos orçamentários. Também mais lentamente, os salários nas IEES paulistas vêm sendo corroídos, apesar do grande aumento da carga de trabalho, pela multiplicação de estudantes e implantação de avaliações produtivistas, que igualam diferentes áreas de atuação e diferentes campos de conhecimento. O estrangulamento orçamentário resulta em situação já bastante denunciada. De inicio, pesquisas, laboratórios e até docentes financiados por agências de fomento, desde que se submetam e redefinam suas linhas de pesquisas para se adequarem às prioridades estabelecidas pelas agências, estas sim soberanas e supraconstitucionais. O próximo passo é o financiamento por empresas, por meio de convênios publicados, mas não públicos, na esteira da disseminação e naturalização do ideário da mercantilização e privatização do conhecimento. A seguir, ocorre um salto de qualidade para as fundações de caráter privado, que usam o patrimônio humano e material da Universidade Pública – portanto, patrimônio público – para vender conhecimentos e tecnologias. Tratase de caso típico de tríplice apropriação privada de bens públicos. Conhecimentos produzidos em Universidades Públicas – que somente existem, elas e seus laboratórios, porque foram financiadas por recursos públicos e continuam recebendo tais recursos, mesmo que insuficientes – são privatizados: a) pelo pesquisador, que recebe “suplementação” várias vezes superior a seu salário vendendo algo que não é seu, mas da Universidade e de toda a sociedade; b) pela fundação, que lucra em cima de uma estrutura para a qual não contribuiu, nem contribui, absolutamente nada; estudos da Adusp mostram que, ao contrário do discurso oficial, apenas 2% dos recursos que entram nas mais de trinta fundações vinculadas à USP são repassados à Universidade; c) pela empresa privada, que compra a mercadoria-conhecimento para aumento exponencial de seus lucros, que são privados, é lógico.
Ora, como se pode então afirmar que as IEES paulistas foram mais preservadas – ou melhor, menos sucateadas – em recursos humanos e materiais - que as IFES se seu orçamento é, ano após ano, subtraído em quase 2/3 e elas vivem tal situação? Por um motivo muito simples: os governos FHC e Lula da Silva criaram mecanismos mais eficientes para seqüestrar as verbas da educação, a ponto de repassar apenas 7,6% do que foi estabelecido na Constituição. E isso usando apenas mecanismos legais. O corolário é simples: as verbas da união destinadas à educação deveriam, no mínimo, ser 13,15 vezes superior aos valores atuais, o que significa que as IFES vêm tendo, ano após ano, um seqüestro de quase 95% de sua verba. Assim, a conta é simples: a rapinagem do governo federal é 5,26 vezes maior do que a do governo paulista. O que explica, em parte, o fato de que o orçamento de três universidades (Unesp, Unicamp e USP) seja em torno de 40% do orçamento de mais de 50 universidades (as Instituições Federais). Como o governo federal consegue tal proeza? Basicamente por meio de três mecanismos:
Colocando em termos mais concretos, isto é, em moeda corrente, tomemos para análise o orçamento da União referente ao ano de 2004, tendo por base os dados do Ministério da Fazenda. Para uma arrecadação total (receitas correntes) de 450,59 bilhões de reais, os impostos correspondem a apenas 128,67 bilhões, dos quais sobrarão apenas 34,38 bilhões como base de cálculo para os 18% constitucionalmente vinculados à Educação. Assim, por meio de sucessivos seqüestros da verba educacional, o governo federal transformou os R$ 81,10 bilhões que deveriam ser investidos em educação em apenas R$ 6,18 bilhões (para aprofundamento, remetemos à análise do GTPE do ANDES-SN sobre o projeto de 30 de maio de 2005).
Dessa forma, queremos mostrar que o crescente sufocamento financeiro tem inviabilizado a autonomia universitária, conquista histórica de nosso movimento que ainda não foi efetivada. E se a situação é preocupante nas IEES paulistas, é muito mais grave nas IFES e em outras IEES, com menos prestígio acadêmico e menor força política. Porém, ao contrário do que vem sendo alardeado, algumas ações do governo Lula da Silva têm o claro objetivo de agravar esta situação. Se em 2004, a renúncia tributária na área da Educação foi de 1,3 bilhões de reais, com o Prouni, a renúncia atingirá a casa dos três bilhões anuais. Esse programa cumpre dois objetivos básicos: por um lado, socorrer as empresas que mercantilizam a educação e que vêm tendo menores lucros pela inadimplência e expansão exagerada do setor, em um misto de Proer da educação e de parceria público-privada; por outro lado, enganar os jovens das parcelas excluídas da população brasileira, que acreditam estar tendo acesso a ensino superior de qualidade, quando, na verdade, transformados em instrumentos baratos de barganha política para facilitar a privatização de recursos públicos, estão apenas entrando em quiosques especializados em vender diplomas. Aos que ainda insistem em defender o governo Lula da Silva, lembramos as reportagens recentes de jornais denunciando que metade das instituições credenciadas no Prouni foi reprovada em avaliações do próprio MEC. Outra ação do governo Lula da Silva, com o mesmo objetivo de enfraquecer e privatizar a Universidade Pública é a Lei 10.973, sancionada em 2 de dezembro de 2004, chamada de Lei de Inovação Tecnológica, mas que, na verdade, é a Lei de Atraso do Conhecimento.
As declarações do ministro do Desenvolvimento desvelam bem a visão que o governo Lula da Silva tem do que seja a instituição universitária: mera prestadora de serviços ou locadora de instalações, equipamentos e pessoas, submetida aos interesses do capital. Em abril de 2004, em entrevista ao Estado de São Paulo, o ministro afirmou que “é a empresa que induz a inovação, cabendo à universidade o papel de servir ao setor privado. É propósito do governo redistribuir os incentivos que custam anualmente R$ 25 bilhões ao país”. Como concretizar tal projeto? Repassando os recursos – parcos recursos, frise-se! – destinados à C&T diretamente às empresas para que elas aluguem pesquisadores e laboratórios, desenvolvendo, então, as pesquisas que lhes interessem diretamente. E com a garantia adicional de que os resultados sejam de sua exclusiva propriedade. Os artigos 13 e 15 destinam-se a amplificar e legitimar o já naturalizado ideário da mercantilização e privatização do público, criando a figura do “docente empreendedor”, competente para produzir tecnologias imediatamente compráveis pelo mercado e recompensado com participação nos lucros recebidos pela ICT, permitindo-se que um docente se afaste por até seis anos para constituir empresa privada, com garantia de retorno às suas funções e vantagens salariais se assim quiser (leia-se, se tiver insucesso). Essas duas ações – Prouni e Lei de Inovação Tecnológica – constituíram a base da contra-reforma universitária do governo Lula da Silva, implantada de forma fatiada para minimizar reações como as desencadeadas pela destruição de direitos adquiridos efetivada pela contra-reforma da previdência. Nesse contexto, não se deve esquecer do que poderia ser chamado de “não-ação”. Durante a campanha eleitoral de 2002, o candidato Lula da Silva assumiu o compromisso público de reverter o veto de FHC ao disposto no Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado pelo Congresso Nacional, destinando 7% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro à Educação. Essa foi mais uma conquista das entidades ligadas à Educação – com destaque para o ANDES-SN – junto aos parlamentares; não conseguimos aprovar nossa reivindicação (10% do PIB), mas avançamos muito, mais que dobrando as verbas para a educação. O compromisso de campanha jamais foi cumprido, provavelmente por ser mais uma “bravata” do candidato. Preparado o terreno, podia ser anunciada, enfim, a etapa final do projeto deliberado e sistemático de destruição da Universidade Pública brasileira, aprofundando, ao limite, o ataque a seus dois pilares: a autonomia didático-científica e o financiamento público.
Como já afirmamos, qualquer tentativa de regulamentar a autonomia de uma instituição significa ataque frontal à concepção de autonomia, ataque à instituição que se afirma querer “regular”. É exatamente a isto que se propõe o projeto de contra-reforma universitária apresentado pelo governo: estabelecer normas gerais da educação superior e regular a educação superior no sistema federal de ensino. Para que não pairem dúvidas, abandona-se desde o início a concepção de sistema nacional de educação, para em seguida transformar a educação superior, direito de todos e dever do Estado, em um vago e amorfo bem público, adequado às manipulações discursivas e jogos de poder. É fato que o projeto afirma que a universidade goza de autonomia didático-científica para definir seus projetos acadêmico, científico e de desenvolvimento institucional. Entretanto, a leitura atenta do projeto revela que a universidade goza de autonomia para fazer seus estatutos, o que é desejável e já ocorre; a diferença é que a partir de agora, o estatuto deverá ser aprovado pelo MEC, o que implica seguir o modelo prévio, definido pelo projeto governamental. Em contraste, as universidades privadas devem apenas registrar seus estatutos nas “instâncias competentes”. Do mesmo modo, é consenso que uma instituição pública – aí incluída a universidade – deve planejar suas ações a curto, médio e longo prazo. Sob o pomposo nome de Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), o governo Lula da Silva parece pretender avocar a si a invenção desta antiga prática de definir claramente objetivos e tarefas. Há que se reconhecer, porém, a invenção de subordinar o planejamento de instituições tão diferentes, até por questões regionais, engessando-o em um único formato, minuciosamente detalhado, segundo uma lógica externa à instituição universitária. Autonomia? Para fazer o que mandam os governantes? Definitivamente, isto não é autonomia! É forçoso reconhecer que o projeto deixa abertas as portas para as universidades que não aceitem tal submissão e pretendam exercitar sua autonomia, fazendo seus estatutos e planejamentos, subordinados à Constituição Federal e somente a ela, e tendo no horizonte a soberania do povo e da nação brasileiros. Realmente, uma Universidade poderá ter tal ousadia, mas ao custo de ter ainda mais reduzidos seus já parcos recursos públicos. Retornamos, assim, à nossa argumentação inicial: autonomia somente com garantia de financiamento público. Ao contrário do que vem sendo divulgado pelo governo, as verbas destinadas às IFES serão ainda mais reduzidas do que já são. Trata-se de simples aritmética, lógico que depois de aprender a ler nas entrelinhas das planilhas orçamentárias divulgadas pelos ministérios. O governo Lula da Silva enfatiza que o governo destinará às IFES 75% dos 18% vinculados à educação, criando a ilusão de que isto significará substancial aporte de recursos às Universidades Federais. Grande engodo! Tomemos por base o orçamento realizado em 2004, último ano para o qual os dados já estão consolidados. Lembremos que os 18% constitucionais incidem sobre apenas 34,38 bilhões, e não sobre a arrecadação total de 450,59 bilhões de reais, e chegaremos a 4,64 bilhões de reais como recursos que seriam destinados à educação superior. Ora, em 2004, o mesmo governo Lula da Silva destinou 7,3 bilhões de reais à educação superior, ou seja, 58% acima do valor que o MEC afirma ser um aumento de dotação. Impossível acreditar que o presidente Lula da Silva também não saiba disto! É importante destacar que
Como compatibilizar tal proposta com o dado de que a folha de pessoal das IFES em 2004 consumiu 6,03 bilhões? Duas possibilidades surgem de imediato: demissão em massa ou se vender ao mercado. A tentativa de ludibriar fica explicita quando o projeto discrimina despesas a serem excluídas do cálculo (75% dos 18%, destinados à manutenção e desenvolvimento da educação), com o claro intuito de possibilitar o discurso de aumento da dotação orçamentária para as IFES. A análise destas pretensas exclusões mostra que ou se referem a rubricas que já não são incluídas no orçamento atual (como em despesas dos hospitais universitários), ou são extremamente vagos, não indicando de onde virão os novos recursos, como no caso de aposentados e pensionistas, o que permite vislumbrar novos ataques a direitos trabalhistas. Por fim, merece destaque nesta breve análise do projeto governamental, a leitura reversa do que vem sendo apregoado como grande avanço: a obrigatoriedade de que 70% do capital total e do capital votante das entidades mantenedoras de instituições privadas pertençam, direta ou indiretamente, a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos. Na verdade, abremse as comportas para a entrada de capital estrangeiro. Pouco importa se impõe-se o teto de 30%, pois, com certeza, este será posteriormente aumentado. Todos nós sabemos que o maior obstáculo é romper com o preceito constitucional, ainda válido, que proíbe a exploração da educação por empresas estrangeiras. Depois, tudo fica fácil... Nesse contexto, entende-se a regulamentação do que seria autonomia administrativa: elaborar normas próprias, escolher seus dirigentes, administrar seu pessoal docente, discente, técnico e administrativo e gerir seus recursos materiais. Especialmente, captar e gerir seus recursos materiais. Para isso, a instituição poderá receber diretamente – e gerir – recursos privados, decorrentes da venda de quaisquer de seus produtos, com destaque para os lucrativos, criar fundações, estabelecer parcerias etc. E até mesmo se vender ao capital internacional, confirmando análises do Andes-SN – criticadas por muitos como alarmistas – de que o projeto real é inscrever a educação nas normas da Organização Mundial do Comércio (OMC). Finalizando, podemos afirmar que o governo Lula da Silva reinventa o conceito de autonomia universitária, criando ainda duas classes de autonomia. Para as empresas de educação, a autonomia é plena, beirando a soberania. Para a Universidade Pública, autonomia significa poder conseguir recursos, onde e como puder, desde que seja obediente e submissa aos governantes do momento. Daí, a necessidade urgente de reconquistarmos a autonomia universitária, desta vez para valer!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS MIRAGLIA, F. “A autonomia universitária e o movimento docente”. Revista ADunicamp (SOS Universidade Pública. Reforma ou Demolição?), ano 6, nº 2, 2004. (disponível em www.adunicamp.org.br). MOYSÉS, M.A.A. e COLLARES, C.A.L. “Mais mercado e menos controle”. Reportagem (da Oficina de Informações), ano V, nº 68, 2005, pp. 46-47 (disponível em www.oficinainforma.com.br). “Governo Lula da Silva institui o neo-peleguismo sindical”. Cadernos ADunicamp, 2004, (disponível em www.adunicamp.org.br). “Uma opção pelo setor privado em detrimento do público: uma análise do GTPE do Andes-SN do Projeto de 30 de maio de 2005” (disponível em www.andes.org.br).
Fonte: Revista Advir nº 20, páginas 24-30. |