Senhores Universitários

 

Como lidar com alunos de mais de 40 anos imersos em turmas de jovens

Primeiro dia de aula. O professor entra na classe e, logo na porta, esbarra com um senhor que aparenta ter a mesma idade, ou talvez seja até mais velho do que ele. Seria um colega que se confundiu e entrou para dar aula na turma errada? Nada disso. O senhor se dirige com convicção para a primeira carteira e senta-se em meio àquele mar de rostos jovens recém-saídos da adolescência.

Essa cena está cada vez mais comum. A cada ano mais gente experiente se mistura à juventude que integra a maior parte do quadro das faculdades. O número de alunos com mais de 40 anos nas IES (Instituições de Ensino Superior) brasileiras quase dobrou do ano 2000 para 2004, segundo os Censos da Educação Superior divulgados pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) nestes dois períodos, passando de 55.297 alunos nesta faixa etária para 105.365, o equivalente à 6% de todo o alunado.

"São geralmente profissionais que não conseguiram terminar uma faculdade quando eram jovens por falta de tempo ou dificuldades financeiras e voltam aos bancos acadêmicos mais tarde, ou aqueles que procuram uma segunda graduação para se atualizar. Há também muitas mulheres que ficam com a 'síndrome do ninho vazio', porque os filhos saíram de casa e elas se vêem sem uma função. Então vão buscar outro sentido para a vida e voltam a estudar, até mesmo para acompanhar o marido, que ascendeu profissionalmente enquanto elas passavam a vida se dedicando ao lar", explica a pedagoga Haydée Maria Moreira, consultora da CM Consultoria, e especialista em Metodologias Inovadoras.

Haydée explica que, com o aumento da expectativa de vida do brasileiro, o horizonte se ampliou, e aos 40 anos as pessoas vislumbram hoje muitas possibilidades para o futuro, o que seria um incentivo para voltarem a estudar. "Além disso, atualmente as faculdades estão mais antenadas com o mercado, e há aquelas graduções mais rápidas, ágeis e voltadas para a prática."

O fenômeno tem levado os docentes a repensarem seu papel na sala de aula, agora que se vêem com uma turma heterogênea, com metas e experiências de vida muito diferenciadas. De um lado, a "geração internet", familiarizada com as novas tecnologias, sem qualquer vivência profissional, ansiosa para entrar no mercado de trabalho, idealista, e com uma visão mais utópica do futuro. De outro, um pessoal acostumado às metodologias tradicionais de ensino, não muito familiarizados com tecnologias, já calejados pelo mercado, realistas, e ávidos para aplicar o que aprendem em seu dia-a-dia. Como integrar esses dois públicos-alvo? Como achar uma linguagem comum e uma dinâmica que motive a ambos?

"Essa realidade torna mais urgente a aplicação de uma metodologia ativa, ou seja, centrada no aluno, na qual o professor é um facilitador, que leva o estudante a buscar o conhecimento. Hoje, essa é a grande proposta das diretrizes curriculares", diz Haydée. Ou seja, nunca foi tão necessário aplicar a Andragogia em sala de aula, ciência de ensinar o adulto a aprender, baseada menos em uma postura protetora e autoritária e mais voltada a torná-los capazes de criticar e analisar situações, fazer paralelos com experiências já vividas. Neste conceito de Educação, o aluno é participante ativo e não há hierarquia na relação. Além disso, cabe ao docente explicitar exatamente a utilidade de cada aula, e ter humildade para manter-se em segundo plano."O modo de ensinar atual está aberto à diversidade. Estamos sempre buscando formas de estimular a cada um individualmente, de acordo com o seu perfil", diz o professor de Fundamentos da Publicidade e Propaganda do IESB (Instituto de Educação Superior de Brasília), Fernando Grossi.

Os professores parecem não estar tendo muita dificuldade nessa tarefa. Ao contrário, acreditam que a mistura de idades é muito enriquecedora para todos. "Uma turma heterogênea desencadeia uma classe mais crítica, debates mais intensos, a aula fica mais gostosa e estimulante", acredita o professor de Comunicação Integrada de Marketing da USP Leste (Universidade de São Paulo - Unidade Zona Leste) George Bedinelli Rossi.  

Neste contexto, os "senhores universitários" acabam se tornando peça importante na dinâmica da turma e são muito queridos por todos. São em geral vistos como uma espécie de "colaborador-alidado" do professor e exercem, muitas vezes, posição de liderança no grupo. "Eles são um elemento extremamente positivo em sala de aula. Acabam virando representantes de turma porque sabem negociar e conduzir a conversa, não entram em um conflito sem ter uma solução, só pelo confronto, como os mais jovens costumam fazer", diz Grossi, que os aponta como participativos, dedicados, responsáveis.

Tiago Nogueira, de 43 anos, está sentindo a experiência na pele. Depois de um longo período distante dos bancos escolares (Tiago começou uma graduação em Física nos anos 80 e teve de parar por falta de dinheiro e de tempo), este ano começou a fazer Gestão de Marketing, um curso com duração de dois anos e meio da Universidade Metodista. "Tive a melhor média de nota da turma. Percebo que minha bagagem profissional me ajuda muito. Ao mesmo tempo, aplico tudo o que aprendo no meu dia-a-dia. E o pessoal me vê como um colaborador do professor, que vem sempre me pedir feedback das aulas, enquanto os colegas me pedem ajuda porque sou muito solícito. Também faço muita vezes o papel de moderador da turma, quando há algum problema e eles querem reclamar na diretoria. A experiência tem sido maravilhosa. Se eu soubesse que o resultado seria tão prazeroso, teria voltado bem antes a estudar", diz ele, que é diretor de uma equipe de 58 funcionários no Centro Público de Emprego Trabalho e Renda, entidade pública da prefeitura de Santo André (SP).

"Aproveito muito da experiência de vida e profissional destes alunos. Eles me ajudam a contextualizar a realidade atual historicamente para a turma. Sempre tento fazer com que dêem exemplos do que viveram. Ao mesmo tempo, eles têm senso crítico e maturidade suficiente para saber a hora de parar de falar para dar espaço aos outros. Percebem a repressão do grupo e, para se integrarem, evitam ficar com estigma de CDF, recusam o papel de gurus", completa.

Para o professor de Marketing da USP Leste Miguel Ângelo Hemzo, apesar destes estudantes já terem uma série de definições de vida e conhecerem bem o mercado - o que poderia gerar alguma espécie de confronto ou competição com o professor - eles respeitam muito o docente, tentando apenas compartilhar sua experiência e contribuir para o grupo. "Entrou na sala de aula, eles tomam a postura de aluno mesmo, não se colocam diferente dos outros", diz.

"Tento participar das aulas comedidamente, para não ficar roubando o espaço da garotada. Em muitos assuntos, já tenho opinião formada, às vezes uma visão diferente da que o professor coloca, mas não interfiro na aula dele. Nestes casos, me coloco como observador", diz Paulo Carraturi, de 46 anos, aluno do quarto semestre de Marketing da USP Leste. Casado e com dois filhos - um de 15 e outro de 22 anos, faixa etária de seus colegas de turma - , Paulo sempre trabalhou com processos de qualidade na linha de montagem de indústrias automobilísticas e está na terceira graduação. Nos anos 80, cursou Publicidade na Metodista e, nos anos 90, Geografia na UECE (Universidade Estadual do Ceará). "Voltei a estudar para atualizar meus conhecimentos", conta.

Resistências e dificuldades

Apesar de todos estes pontos positivos, há, sim, alguns estranhamentos entre os mais velhos com determinadas "novidades" no ensino atual. Pense, por exemplo, em um senhor chegando numa aula que se chama "Brincar", disciplina na qual tudo o que ele precisa fazer é se soltar, relaxar, interagir com os colegas por meio da dança e da música. Não é brincadeira. Essa matéria existe e faz parte da grade curricular do curso de Tiago. "Em um primeiro momento, fiquei com a pulga atrás da orelha, me perguntando por que tinha que fazer aquela aula. Achei perda de tempo e fiquei com vergolha de me expor daquele jeito para a turma. Só depois de algum tempo fui percebendo a importância daquilo para aprender a trabalhar melhor em equipe. Aí entrei no clima", conta.

"Há um certo choque em relação ao sistema de ensino. Estes alunos estudaram no tempo da ditadura, com professores autoritários. Principalmente aqueles que têm entre 50 e 60 anos tendem a achar que a participação em sala é anárquica, que o professor deveria ter um pulso mais firme. Cabe a nós mostrar a eles que o diálogo é fundamental, e que a manifestação de opinião é útil para perceber o perfil de cada um, já que o ensino hoje é focado no estudante ", diz Grossi, que afirma realizar verdadeiras terapias de grupo em suas aulas para sentir a turma, quem é quem. "Os mais velhos acham que estou enrolando, fugindo do conteúdo. Mas quando demonstro que a experiência pessoal enriquece o aprendizado, eles entendem o que estou propondo."

Outra atitude do docente que causa certo estranhamento nos mais velhos é assumir que não sabe sobre algum tema. "Nestes casos, proponho que eles pesquisem e faço uma competição em sala para ver quem apresenta a melhor resposta. Muitas vezes também não sei usar alguma ferramenta tecnológica, um programa de computador, por exemplo, e vem algum jovem e me explica. Deve ser uma decepção para os mais velhos", diz. Segundo Grossi, muitos deles têm preconceito contra ferramentas como games, muito utilizados atualmente em sala de aula. Nestes casos, ele contextualiza o jogo no sentido de mostrar os caminhos pelos quais a Publicidade passou nas últimas décadas, tenta fazer comparações entre o significado destes hoje e compará-lo a alguma ferramenta da época do aluno. "Se o aluno gosta de xadrez e tem um game de xadres, ele entende a associação entre estratégia e tecnologia e acaba gostando."

Os alunos mais velhos também questionam sobre a abordagem do ensino. "Muitos reclamam por uma formação mais humanística, porque a tentativa hoje é formar para o mercado, formar empreendedores. Antigamente a formação era mais acadêmica e menos mercadológica", diz Grossi. Já para os que estão na faixa dos 40, a experiência foi outra, mas não deixa de ter sido diferente. O aluno Paulo Carraturi confirma: "Na minha primeira graduação em Publicidade, que fiz em 1989, aos 29 anos, o foco era muito voltado às Ciências Sociais, o Brasil estava em um momento diferente, havia muitos movimentos populares. Todos eram mais politizados e o curso era voltado à criatividade e planejamento. Hoje o foco é na Economia, é mais técnico e pragmático. Mas acredito que esteja adequado ao contexto atual", diz ele, que também não tem problema com as novas tecnologias. "Convivo com elas no meu trabalho", explica. Tiago, no entanto, já não sente tanta facilidade. "Eles dão um 'banho' em mim em termos de tecnologia. O pessoal faz apresentações fantásticas em Power Point, eu não consigo fazer, tenho que pedir ajuda a eles."

Na turma de George Bedinelli Rossi, professor de Comunicação Integrada de Marketing na USP Leste, os alunos mais velhos têm mais interesse na aplicação do conhecimento para o trabalho deles, enquanto os mais novos estão mais interessados no aspecto teórico e conceitual. O segredo, segundo Rossi, é explicar sempre o motivo da abordagem. "Eu justifico tudo o que faço em sala de aula."

Conceitos formados e enraizados também podem ser um empecilho na hora de aprender novos paradigmas. "O fato de ter mais informação do que os mais novos faz com que eu tenha que repensar muitas coisas, me reciclar, rever conceitos e ficar mais receptivo a visões inovadoras. Como eles não têm este background, conseguem aderir mais facilmente ao que os professores colocam, sem muito questionamento", diz Carraturi. Mas parece ser este desafio o que mais o motiva: "percebo que não posso deixar a peteca cair, estou sempre estudando para poder acompanhar o ritmo deles, porque sou mais lento, tenho que me desdobrar para não fazer feio".

Enfim, a fórmula do sucesso parece ser mesmo a valorização da mistura do velho e do novo, sempre se complementando.

 

Fonte: UniversiaBrasil, Bárbara Semerene, 31/08/2005.


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