A guerra perdida

 

O caso das ambulâncias mostra que, ao fim de várias lutas, no Congresso, a corrupção garantiu sua vitória

O escândalo das ambulâncias prova, para quem ainda tinha dúvidas, que sob as cúpulas generosas do Congresso Nacional se abriga uma das maiores concentrações de gente disposta a delinqüir no país. Cento e setenta parlamentares estariam envolvidos, segundo a ex-assessora do Ministério da Saúde Maria da Penha Lino, que, incriminada e presa, concordou em delatar os demais implicados para abrandar a própria pena. Isso significa 33% da Câmara, ou 28% do Congresso como um todo. Raras corporações abrigariam em seus quadros semelhante fatia de foras-da-lei.

Ao escândalo das ambulâncias se soma o do mensalão, no qual, entre os quarenta denunciados pelo procurador-geral da República, treze são (ou eram) deputados. Acrescente-se no caso do mensalão que, por força do coleguismo entre os parlamentares, não foram identificados senão os distribuidores das propinas. Ficou de fora o bando, certamente bem mais numeroso, dos que estavam na ponta de chegada do produto distribuído. Descontem-se os casos de sobreposição entre um escândalo e outro – gente que estava tanto no mensalão quanto nas ambulâncias – e ainda assim a soma dos dois escândalos resultará num acréscimo do número de pessoas voltadas para a delinqüência. Não é absurdo supor, ainda mais que aos escândalos maiores se devem juntar os do varejo, como o "mensalinho" do deputado Severino Cavalcanti, que elas representem 40% da Câmara. Em outros países tal parcela faria desabar o Estado, mas ainda não chegamos ao pior. Teremos eleição neste ano. O leitor imagina que será eleito um corpo de deputados melhor do que o atual? Será, na melhor hipótese, igual. Eis o pior.

O sistema eleitoral brasileiro é feito sob medida para ladrões, candidatos a ladrão e mal-intencionados em geral. As eleições parlamentares são simultâneas às de presidente e governador. Começa aí uma laboriosa construção cujo objetivo não pode ser outro senão fazer com que o eleitor vote às cegas. Claro que a atenção esmagadora dos meios de divulgação, inclusive o horário obrigatório dos partidos, se deterá na disputa dos peixes gordos ­ Lula contra Alckmin ou outro qualquer, no plano nacional, e candidatos a governador em cada um dos estados. Isso não só ofusca como diminui a eleição parlamentar. O eleitor é induzido a crer que se trata de uma escolha menor.

A essa circunstância vem se somar o diabólico sistema proporcional brasileiro. Cada partido pode apresentar um número de candidatos a deputado até uma vez e meia maior do que o número de vagas em disputa. Isso significa que em São Paulo, que tem setenta cadeiras de deputado na Câmara Federal, cada partido pode apresentar 105 candidatos. Multiplicando-se esse número pelos cerca de trinta partidos que devem registrar candidatos, tem-se uma idéia de aonde se pode chegar. Nem todos os partidos possuem quadros suficientes para preencher sua lista de candidatos até o limite permitido ou têm interesse em fazê-lo. Mesmo assim, alcançam-se cifras espantosas. Apresentaram-se em São Paulo, em 2002, 724 candidatos a deputado federal e praticamente o dobro – 1.444 – a deputado estadual. É de tontear o pobre do eleitor. Não há possibilidade de apresentação decente dos candidatos, muito menos condições para debates entre eles e para exposição de propostas. Já não bastasse a atenção do público estar voltada para a eleição de presidente e de governador, a arena lotada aponta para a certeza de que a votação será a mais desinformada e leviana possível.

Não é de estranhar que pesquisas em Pernambuco apontem Severino Cavalcanti como o preferido entre os candidatos a deputado federal. Se Paulo Maluf se candidatar em São Paulo, é aposta fácil que estará entre os mais votados. Maluf, hoje enredado em denúncias, ganhará então a proteção de um instituto que também tem papel crucial em fazer do Congresso o que é – a imunidade parlamentar. A imunidade foi criada, no mundo, para garantir aos parlamentares a liberdade de opinião. No Brasil protege até de processo por crime de morte. A turma das ambulâncias não será processada tão cedo. Tem a imunidade a garanti-la.  

A experiência aconselha concluir não que se venceu mais uma batalha contra a corrupção, depois que vem à tona uma roubalheira como a das ambulâncias, logo em seguida à roubalheira do mensalão – mas, muito ao contrário, que se perdeu a guerra. Nestes últimos anos, a contar do impeachment de Collor, sucessivas vezes o país teve a sensação de que aplicava um golpe mortal na corrupção. A cada vez, reanimada por punições insignificantes, quando havia punição, ela ressurgia mais vigorosa e audaz. O prognóstico mais realista é que, assim como o episódio de Collor, o dos anões do Orçamento e o do mensalão, também o das ambulâncias resultará em pouca coisa. Travou-se uma guerra em vários capítulos nos últimos anos no Brasil e, ao final, animada por satisfatórios cálculos de custo-benefício e garantida pelo sistema, a corrupção ganhou.
 

Fonte: Rev. Veja, Ensaio: Roberto Pompeu de Toledo, ed. 1956, 17/05/2006


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