Governo muda padrão de condenação de violações de direitos humanos

 

Estudo mostra que, a partir de 2002, Brasil alterou posições históricas nas votações da Comissão de Direitos Humanos da ONU, passando a votar a favor de países como China e Rússia – casos em que vinha
se abstendo. Governo Lula afirma que mudança se deve
à excessiva politização da CDH.

 

Até o final de abril, os 53 países que têm acento na Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (CDH-ONU) estarão reunidos em Genebra, em sua 61ª Sessão, para analisar e definir medidas de proteção e promoção dos direitos humanos e também de punição às violações cometidas em todo o mundo. Todos os anos, cerca de 100 resoluções são apreciadas pelo órgão, que faz parte do chamado sistema extra-convencional da ONU, ou seja, ao qual qualquer Estado-membro das Nações Unidas está sujeito – o convencional é formado por órgãos de monitoramento criados por pactos internacionais que requerem a adesão dos Estados via ratificação das convenções. Os trabalhos da CDH, criada em 1946, são organizados por itens e o mais polêmico de todos é o de número 9, que trata de “questões sobre violações de direitos humanos e liberdades fundamentais em qualquer parte do mundo”.

Historicamente, principalmente a partir da década de 90, o Brasil tem votado de forma equilibrada, mantendo um padrão em suas definições, e adotado uma postura propositiva dentro da CDH. No ano 2000, por exemplo, apresentou uma resolução sobre a incompatibilidade entre democracia e racismo. Um relatório lançado nesta quarta-feira (13) pela organização não governamental Conectas Direitos Humanos mostra, no entanto, uma alteração neste padrão de votação das resoluções apresentadas entre 2001 e 2004 (dois anos de governo Fernando Henrique e dois anos de governo Lula). O estudo identificou uma mudança de votos em relação a países como a China. Em 2001, o país absteve-se na votação da no-action motion, mas em 2004 votou sim para uma resolução neste mesmo sentido, o que afastou a resolução sobre a China – que condenava o país por violações de direitos humanos – da votação. Ambas as resoluções não foram levadas à votação em decorr6encia da aprovação da no-action motion.

A mudança de voto ocorreu também em relação à Chechênia. O governo brasileiro se absteve na votação que aprovou a resolução sobre a situação dos direitos humanos na República da Chechênia em 2001. Em 2002, quando a resolução foi rejeitada, o país manteve sua postura de abstenção. As resoluções de 2003 e 2004 também foram rejeitadas, mas nestes anos o Brasil abandonou sua posição de abstenção e votou contra os textos que condenavam a situação dos direitos humanos na Chechênia.

“Vemos com perplexidade o fato do Brasil ter alterado seu padrão de votos. Em casos em que antes vinha se abstendo de fazer críticas, começou a endossar determinadas práticas. Onde a situação geopolítica é muito importante, por exemplo, o Brasil não vota com relação às violações de direitos humanos, mas vota com seus parceiros. O país não está mudando uma postura positiva, mas houve uma pequena mudança. A China, por exemplo, é um player importante, um parceiro comercial e até político. O Brasil não quer fustigar este player. O mesmo vale para a Rússia. São relações geopolíticas importantes, mas no caso dos direitos humanos tem que haver imparcialidade”, acredita Oscar Vilhena Vieira, diretor executivo da Conectas.

A atuação dos países relativa aos direitos humanos está regulada internacionalmente por padrões normativos estritos. A Constituição de 1988, por exemplo, determina que o Brasil deve reger-se em relações internacionais pela prevalência dos direitos humanos. Além disso, o Brasil está vinculado, voluntariamente por intermédio dos tratados dos quais é parte, a responsabilidades internacionais em relação aos direitos fundamentais. “O governo brasileiro não está, portanto, autorizado a desrespeitar os direitos humanos nas diversas instâncias internacionais. Nenhuma política, muito menos a internacional, está livre de interesses. A indagação é se conseguimos dar um passo para limitar isso minimamente. Acredito que, ao votar desta forma, o país agiu ilegalmente”, afirma Vieira.

A justificativa oficial do governo brasileiro para essas votações em questão foi o fato delas reforçarem o caráter de seletividade e de excessiva politização da Comissão da ONU – crítica feita não apenas pelos governos, mas também por organizações da sociedade civil e pela própria ONU num relatório lançado no final do ano passado, elaborado pelo High Level Panel on Threats, Challenges and Change, composto por 16 especialistas independentes a pedido do Secretário Geral da ONU. A delegação de Cuba, por exemplo, apresentou uma resolução impecável tecnicamente contra Guantánamo e sequer conseguiu levá-la a votação. Ou seja, um dos países que mais viola os direitos humanos no mundo hoje – o Estados Unidos –, por força política e econômica, não está no banco dos réus da CDH, o que afeta a credibilidade da Comissão como um todo.

“O Brasil votou contra as resoluções que condenavam China e Rússia porque elas não eram equilibradas, não apontavam avanços que já vinham sendo sinalizados pelos dois países na proteção dos direitos humanos. A China, por exemplo, incorporou o tema dos direitos humanos na sua constituição e recebeu o relator temático do direito à educação. É algo tímido, mas que aconteceu. Em relação à Rússia, em 2003, houve eleições diretas na Chechênia e a promulgação de uma constituição. Há, portanto, uma sinalização de posição de cooperação que não foi considerada nas resoluções, extremamente politizadas. A posição do governo foi justamente por este equilíbrio”, explica Murilo Vieira Komniski, assessor de Relações Internacionais do ministro Nilmário Miranda, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.

Este ano, resoluções contra os dois países sequer foram apresentadas – não necessariamente por um fim das violações de direitos humanos nesses territórios, mas por força política dos países em barrar previamente as resoluções. O mesmo não aconteceu com Cuba, que mais uma vez foi condenada pela CDH (leia matéria “Comissão de Direitos Humanos aprova moção contra Cuba”). Este ano, no entanto, ao contrário dos anteriores, o Estados Unidos foi obrigado a apresentá-la diretamente e não usar países como Uruguai e Honduras que, respectivamente, apresentaram textos condenando a situação de direitos humanos em Cuba em 2003 e 2004. Organizações e movimentos sociais afirmam que, mais uma vez, a resolução contra Cuba não passa de uma cortina de fumaça para justificar o bloqueio que há mais de 40 anos isola a ilha do cenário internacional. Esta seria uma das razões para, mais uma vez, o Brasil ter se abstido nesta votação.

“O Brasil se absteve esse ano em relação a Cuba com base na mesma justificativa histórica. Sabemos que mudanças são necessárias, como receber o representante da ONU no país, mas reconhecemos a excessiva politização da resolução e também condenamos o embargo imposto pelos EUA. Por isso, o Brasil tem se abstido no caso de Cuba. O Brasil vota sempre nos direitos humanos, na medida em que vota no equilíbrio das resoluções”, explica Komniski.

O diretor da Conectas discorda. “Se o Brasil quer desempenhar um papel relevante no cenário internacional, não pode agir com duplo padrão: uma hora dizer que está havendo avanços, então vota contra resoluções que condenam país; outra dizer que a comissão é politizada demais, então se abstém”, critica. “Temos um governo formado por pessoas que, historicamente, foram vítimas de violações de direitos humanos. Me pergunto como o ministro Nilmário Miranda lida com quem sofreu violações na China, com os 15 mil que foram assassinados no país no ano passado com base em processos judiciais questionáveis”, questiona.

Participação política

Visando monitorar os governos nacionais e fomentar a atuação da sociedade civil no processo de tomada de decisão em política externa neste setor, a Conectas Direitos Humanos lançou o Programa de Acompanhamento de Política Externa em Direitos Humanos (Papedh), cujo primeiro “produto” é o relatório divulgado esta semana. “A aproximação entre as organizações de direitos humanos da sociedade civil e os órgãos responsáveis pela elaboração e tomada de decisão em política externa é de extrema importância para o fortalecimento da democracia não apenas no Brasil, mas na esfera global”, afirma Vieira.

Neste sentido, o relatório traz, em um de seus capítulos, recomendações para o pode público brasileiro. A primeira é o fortalecimento do diálogo entre o governo e as organizações da sociedade civil visando maior participação destas na elaboração, acompanhamento e fiscalização da política externa em direitos humanos. A segunda é garantir uma maior participação do poder legislativo na política externa brasileira, não só a posteriori, através da ratificação de tratados e criação de comissões específicas, mas também a priori, por meio de acompanhamento constante da atuação do poder executivo em âmbito internacional. A terceira, promover a divulgação sistemática de informação e justificativas de votos pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE), aumentando a transparência das tomadas de decisão. E, por fim, aumentar a participação dos setores governamentais responsáveis pelos direitos humanos, especificamente a Secretaria Especial de Direitos Humanos, no processo de tomada de decisão em política externa e o Departamento de Direitos Humanos do MRE.
 

Fonte: Ag. Carta Maior, Bia Barbosa, S. Paulo, 15/04/2005.


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