O custo social do superávit primário
Maria Lucia Fattorelli Carneiro*
 

O governo federal gastou R$ 139 bilhões só com juros da dívida; essa verba poderia ser usada para assentar 4 milhões de famílias sem-terra ou para construir 7 milhões de casas populares

O ano de 2005 foi mais um ano de sacrifício para o povo brasileiro: recorde de arrecadação de tributos; recorde de contingenciamento de investimentos e gastos públicos, tudo para se cumprir e superar a estéril meta de superávit primário. Ao todo, os governos federal, estadual e municipal realizaram um superávit primário - reserva de recursos para o pagamento da dívida pública - de R$ 93,5 bilhões, valor esse equivalente a 4,84% do PIB (Produto Interno Bruto, que representa a soma de todas as riquezas produzidas no país durante o ano). Este valor superou a meta de 4,25% do PIB, e foi o maior desde a Era FHC. Porém, este superávit não foi suficiente para o pagamento dos juros da dívida pública, que atingiram R$ 157,1 bilhões (referentes às esferas federal, estadual e municipal), devido às altíssimas taxas de juros praticadas no país.

Na esfera federal, as indecentes taxas de juros fizeram crescer a própria dívida e, apesar do superávit primário recorde e de todo o sacrifício social, a dívida interna rompeu a barreira dos R$ 1 trilhão: subiu de R$ 857,47 bilhões (em dez/2004) para R$ 1,002 trilhão em dezembro de 2005. Ou seja: em apenas 1 ano, esta dívida subiu nada menos que R$ 145 bilhões, ou R$ 276 mil por minuto!

Ainda na esfera federal, o serviço da dívida (isto é, a soma do pagamento de juros e do principal das dívidas interna e externa) atingiu R$ 139 bilhões, bem mais que os R$ 99 bilhões gastos com a SOMA de todas estas áreas sociais: Saúde, Educação, Assistência Social, Agricultura, Segurança Pública, Cultura, Urbanismo, Habitação, Saneamento, Gestão Ambiental, Ciência e Tecnologia, Organização Agrária, Energia e Transporte (ver gráfico).

Com esses R$ 139 bilhões destinados ao serviço da dívida pública, o governo federal poderia ter assentado todas as 4 milhões de famílias sem-terra do Brasil (ao custo de R$ 35 mil por família). Ou então poderia construir 7 milhões de casas populares (ao custo de R$ 20 mil cada). Outra alternativa para o uso destes recursos seria multiplicar por cinco os gastos com saúde no ano passado.

Outro componente importante do superávit primário é aquele realizado pelas empresas estatais federais, que aumentaram em quase 50% sua "economia" em 2005, em comparação a 2004. Isto ocorreu devido às altas no preço do petróleo, que reforçaram o caixa da Petrobrás. Esta estatal lucrou R$ 17 bilhões em 2004 (quantia maior que todos os gastos federais em educação naquele ano), e deve superar os R$ 20 bilhões em 2005. Ou seja: além de pagarmos a conta do superávit primário arcando com pesados tributos (embutidos no preço dos produtos essenciais à sobrevivência), também pagamos esta conta quando enchemos o tanque do carro, quando pagamos as altas tarifas de ônibus, ou mesmo quando contratamos qualquer serviço de transporte.

De nada adianta um esforço fiscal absurdo, às custas de maiores pagamentos de tributos e altas no preço da gasolina (que penalizam principalmente as classes mais baixas), se o país continuar adotando esse modelo econômico suicida, que transfere renda do setor público e da população mais pobre para os detentores dos títulos da dívida - os rentistas nacionais e estrangeiros - e ainda compromete o futuro com o crescimento continuado da própria dívida pública.

A Alternativa: Auditoria da Dívida

Antes de tomarmos qualquer posição frente ao endividamento, precisamos saber: Como surgiu toda essa dívida pública? Quanto já pagamos, e quanto ainda devemos? Realmente devemos? Quem contraiu tantos empréstimos? Onde foram aplicados os recursos? Esse endividamento significou algum benefício para o povo brasileiro? O que foi feito diante de tantas ilegalidades e ilegitimidades desse processo? Essas são algumas perguntas que o grupo de estudos da "Auditoria Cidadã da Dívida" - Rede Jubileu Sul - procura responder. O objetivo da Auditoria Cidadã é dissecar o processo de endividamento do País, revelar a verdadeira natureza da Dívida e, a partir daí, pressionar os órgãos oficiais pela realização da auditoria oficial, prevista na Constituição de 1988, mas nunca cumprida.

Recentemente, a Campanha Auditoria da Dívida tem obtido resultados importantes. Dia 18 de maio de 2005 foi entregue ao Senado Federal requerimento para a Instalação de Comissão Parlamentar Mista para realizar auditoria das dívidas interna e externa, proposta pela Frente Parlamentar de Acompanhamento da Dívida. Como o requerimento obteve as assinaturas necessárias (1/3 dos senadores e 1/3 dos deputados), basta que ele seja lido em Plenário para que a Comissão seja oficialmente instalada. Porém, devido à recente abertura de várias CPI`s no Congresso para a apuração das denúncias relativas aos Correios e à compra de votos, as atenções da mídia e dos parlamentares estão totalmente voltadas para estas investigações. Diante disso, fomos informados que os representantes da Frente Parlamentar aguardam momento mais apropriado para a leitura do requerimento em Plenário, quando a Auditoria Oficial, tão esperada, deverá ser finalmente instalada.

Outra iniciativa importante foi a ação impetrada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) - Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental nº 59/2004 - a qual exige que o Supremo Tribunal Federal (STF) obrigue o Congresso a realizar a auditoria da dívida, prevista na Constituição.
 

* Maria Lúcia Fatorelli é vice-presidente da Unafisco Sindical e coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida.

Veja também ...  (Hobin Hood às avessas)

Fonte: BrasildeFato, 3/2/06.


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