Com a palavra, o professor
Pesquisa mostra que
para superar a crise da educação é preciso A crise da educação brasileira é antiga e seus principais motivos, tristemente conhecidos. Os equívocos das políticas governamentais, a negligência em relação ao ensino fundamental, o descuido quanto à qualidade, o vergonhoso atraso do Brasil são temas de trabalhos de especialistas respeitados. As conseqüências desse conjunto de problemas são patentes em dados assustadores (veja quadro abaixo), que podem ser resumidos numa constatação: os estudantes brasileiros concluem os oito anos do ensino fundamental e os três do ensino médio lendo sofrivelmente e sem domínio da linguagem matemática básica. Em suma, uma realidade que acentua o abismo entre o padrão educacional do Brasil e o que se exige no resto do mundo. Na avaliação internacional feita pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico em 41 países em 2003, a Coréia alcançou o terceiro lugar em matemática e o quarto em ciências – enquanto o Brasil ocupou a última e a penúltima colocações nas duas matérias. Para compreender melhor essa dura realidade, a educadora Tania Zagury, 36 anos de carreira e autora de livros de sucesso como Educar sem Culpa, O Adolescente por Ele Mesmo, Limites sem Trauma e Os Direitos dos Pais, decidiu debruçar-se sobre um universo que tem sido sistematicamente subestimado nas análises sobre a educação. Durante três anos, dedicou-se a auscultar o que pensam os mais de 2 milhões de professores dos ensinos fundamental e médio. O resultado está em O Professor Refém (Editora Record, 301 páginas, 39,90 reais), que chega às livrarias na semana que vem.
A pesquisa, pioneira no Brasil, ouviu 1.172 professores em todo o país (veja o quadro). Faz uma radiografia das dificuldades que esses profissionais enfrentam cotidianamente, destrincha os motivos atribuídos por eles a cada um desses percalços e analisa, sob o ponto de vista das salas de aula, algumas das inovações curriculares, pedagógicas e metodológicas introduzidas nas escolas nos últimos anos. Para a professora Maria Inês Fini, fundadora do Instituto de Educação da Unicamp e coordenadora do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) no governo Fernando Henrique Cardoso, o grande mérito do trabalho é trazer o professor para o centro da discussão. "Ele é o ator principal; não pode ficar em segundo plano", diz. A principal constatação está expressa no título. Os professores são hoje reféns de uma realidade que lhes é amplamente desfavorável. Espera-se deles muito mais do que é possível realizar nas atuais condições das escolas, algo que, aliás, não foi levado em conta em nenhuma mudança na política educacional feita nos últimos trinta anos no Brasil. A formação dos docentes é deficiente – algo que admitem com sinceridade impressionante; sua remuneração, insuficiente para atender a contento às várias demandas da mais que necessária modernização do ensino, uma vez que obriga a maioria a trabalhar em mais de um colégio. O livro também traz uma série de idéias recorrentes que se impõem no cotidiano da sala de aula, tornando o professor um grande bode expiatório das mazelas do ensino. Entre essas idéias, que Tania Zagury classifica como "mitos", está a supervalorização do relacionamento professor-aluno, a ponto de considerar incompetente quem "simplesmente" se preocupa com o conteúdo da matéria. A progressão continuada, sistema que não prevê reprovação nos quatro primeiros anos do ensino fundamental (e é adotado em toda a rede pública), exigiria carga horária maior, professores com tempo para se dedicar a avaliações mais freqüentes e escolas com estrutura para amparar os alunos com dificuldades. Como a medida foi implantada sem nenhum desses pré-requisitos, uma massa de alunos passa pelos quatro primeiros anos da escola sem aprender a escrever direito ou interpretar um texto. E sobre quem recai a cobrança, uma vez que esse aluno sai da escola sem os instrumentos básicos para prosseguir sua formação e tornar-se um profissional capaz de conseguir espaço no mercado de trabalho? Sobre o professor, claro. É evidente que ele não tem como ser a favor dessa medida. A pesquisa mostra que 95% dos professores são contrários à progressão continuada. Não porque sejam refratários a mudanças, mas porque acreditam que ela só tem sentido se o aluno tiver garantida a melhoria na qualidade do ensino (66%) ou porque acreditam que a qualidade do ensino vai piorar (15%). Ou seja, é um sistema que não foi testado nem conta com a adesão de quem vai aplicá-lo. "Para implantar qualquer mudança é preciso investir num projeto piloto, que permita saber de antemão as medidas necessárias para seu bom funcionamento", diz Tania.
Para agravar o quadro, existe um fator externo à escola. Trata-se da dificuldade dos pais em impor limites a seus filhos. O principal problema apontado na pesquisa é a indisciplina (veja quadro), e os professores são praticamente unânimes em atribuir essa situação à omissão da família. As três respostas que remetem o problema ao ambiente doméstico somam 74%. Na avaliação de Tania, era inevitável e saudável que se quebrasse a rígida hierarquia existente até a década de 70, na qual a criança não tinha espaço algum de manifestação. O problema é que se caiu no extremo oposto. Os pais têm medo de impor limites, porque podem traumatizar os filhos. E isso traz conseqüências graves para a família, a escola e a sociedade. "Ninguém pode viver fazendo só o que quer e o que gosta. Esquecer disso é voltar à barbárie", diz Tania. A educadora acredita que, por trás dessa realidade, está a perda da noção do que são direitos e deveres. Ela lembra que o acesso à educação é um direito do cidadão brasileiro, o que obriga os pais a colocar seus filhos na escola. Acontece que a cada direito corresponde um dever. Então, se a criança tem o direito à educação, ela tem o dever de estudar. "Não é estudar para ser o aluno que só tira A, que só tira 100, seja qual for a forma como se esteja avaliando, mas sim corresponder minimamente. E é dever dos pais acompanhar de perto esse processo, cuidar para que o filho faça as tarefas e não mate aula, olhar o boletim. São coisas básicas", diz.
A motivação dos alunos é o segundo problema mais grave, de acordo com a avaliação dos professores. Esse item interfere diretamente no primeiro, uma vez que é mais difícil manter a disciplina se os alunos não se interessam pelo que lhes está sendo ensinado. E a principal razão apontada para a desmotivação é aparentemente estranha: falta de interesse. Olhando-se o segundo motivo, no entanto, o problema aparece mais claramente. Ele está no cada vez maior número de apelos externos à escola. Crianças e jovens têm hoje acesso a tamanha massa de informações, pela televisão, pela internet, estão bombardeados por sonhos de consumo de tal magnitude que é realmente difícil seduzi-los para aprender. Se a escola é mal aparelhada como é a maioria, fica ainda mais difícil. E, se os pais não se comprometem com o aprendizado dos filhos, o desafio torna-se praticamente intransponível. A avaliação que emerge da pesquisa não coincidirá necessariamente com a de outros profissionais que se empenham na melhoria da educação no Brasil. Maria Inês Fini discorda frontalmente da avaliação de que a família é responsável pela indisciplina dos alunos na escola. "O problema é que o professor é despreparado e o ensino, desinteressante. É nisso que é preciso mexer", avalia. A professora também é francamente favorável à progressão continuada, assim como o economista Claudio de Moura Castro, colunista de VEJA e nome respeitado internacionalmente em matéria de educação. Mesmo com problemas em sua utilização, Castro defende a progressão pela ampla evidência de que, no conjunto, a reprovação é mais nociva ao aluno do que a aprovação com lacunas de conhecimento. A pontuação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2003 mostra, efetivamente, que os alunos que já sofreram uma reprovação têm pior desempenho (146 pontos) do que aqueles que nunca foram reprovados (180 pontos). A discordância não diminui o valor da pesquisa. Ao contrário, mostra que ela pode ser uma ferramenta importante. O grande mérito de O Professor Refém não está no "acerto" ou "erro" do diagnóstico. Está em dar voz aos profissionais responsáveis por colocar em prática a política educacional para que eles apontem suas dificuldades e dêem opinião sobre temas a respeito dos quais não são normalmente chamados a se manifestar. "Não se trata de reduzir a importância dos especialistas, mas de tentar promover uma maior integração entre os que pensam a educação e os que a transmitem a seus alunos", resume Tania Zagury. A preocupação tem fundamento na realidade. É inequívoca a ligação entre a melhoria da formação dos professores e o desempenho de seus alunos, como avalia o próprio Ministério da Educação. Entre os fatores que contribuem para uma boa escola, o documento do Saeb acentua a escolaridade do professor.
A análise é baseada no resultado atingido pelos alunos, o que continua sendo o melhor termômetro da qualidade do ensino. "Quando o profissional em sala de aula possui formação superior, a média dos seus estudantes no Sistema de Avaliação é de 172 e, quando a formação é de nível médio, cai para 157 pontos", diz o documento final do último Saeb, realizado em 2003. O exemplo da Escola Joaquim Venâncio, do Rio de Janeiro, a terceira colocada no Enem deste ano, é eloqüente. Trata-se de uma escola pública – pertencente, portanto, a um grupo que apresenta resultados médios sofríveis no exame. Mas, além de trabalhar com o dobro da carga horária média das escolas brasileiras e ter boa infra-estrutura, 70% de seus professores possuem mestrado ou doutorado. A melhor constatação de O Professor Refém é que a maior parte dos professores, a despeito de suas próprias deficiências, se empenha em fazer o melhor possível. Num país que tem instrumentos de avaliação que não ficam nada a dever aos utilizados em países de bom padrão educacional, é importante que se preste mais atenção ao que se passa na vida real das escolas. "Temos todas as sementes, toda a tecnologia e todo o conhecimento para isso", diz Claudio de Moura Castro. Para Castro, o grande desafio nesse processo é o que chama "mobilizar as forças vivas da escola para melhorar". E isso não pode ser feito sem levar em conta o que têm a dizer os professores.
Fonte: Rev. Veja, Lucila Soares, Ed. 1950 de 5/4/06. |