Centenário de Johanna Döbereiner: uma camponesa no laboratório
Por Simone Batista
A primeira vez que ouvi falar de Johanna Döbereiner foi há cerca de uma década. Tinha poucos anos de UFRRJ, menos tempo ainda como docente do corpo permanente do PPGEA, e me encantei quando um colega da área de solos comentou rapidamente sobre o belíssimo trabalho que aquela europeia-brasileira havia desempenhado em terras nacionais.
Fui pesquisar e, a cada descoberta, eu a admirava mais. Johanna revolucionou a pesquisa de manejo de solos e, pode-se dizer, definiu o sucesso do Brasil como exportador de soja. Ao se deparar com as condições do solo brasileiro, bem diferentes do europeu, essa cientista descobriu a forma de fixação biológica de nitrogênio no solo.
À época, a comunidade científica e os agricultores eram unânimes em defender que os fertilizantes químicos eram insubstituíveis para o cultivo da soja. Imagino quantas vezes deve ter sido desencorajada de testar suas hipóteses e desafiar a verdade científica de então… Mas Johanna não se conformou, questionou a verdade estabelecida, insistiu em sua hipótese e deu prosseguimento às investigações.
Sua pesquisa demonstrou que o próprio solo, em interação com outros seres vivos (plantas e bactérias), poderia produzir seu próprio adubo, o que reduziria – e de fato reduziu – o uso de fertilizantes poluentes. Desse modo, evitou a poluição de rios e promoveu uma considerável economia para o setor de agricultura do país.
Johanna se preocupava com a sustentabilidade muito antes de existir esse conceito, e defendia propostas que, embora não tivessem credibilidade, tinham argumentos sólidos que as ancoravam.
Seu interesse nos solos refletia sua preocupação com a escassez de alimentos, que massacrava diversos locais no mundo, a começar por sua cidade, Seropédica. Tinha o objetivo de trabalhar para descobrir como baratear a produção de alimentos e, ao mesmo tempo, tratar o solo como amigo.
Johanna mostrou que o solo brasileiro podia cumprir sua missão na Terra: ser fértil em intra-ação (Barad, 2007) com outros seres vivos. Johanna não pesquisou sobre a terra; pesquisou com a terra, ouviu atentamente a terra, e desvelou o que pode acontecer quando o diálogo interespecífico transcorre; demonstrou em investigação controlada a biointeração (Bispo, 2023) que os quilombolas defendem.
Se hoje uma emissora de televisão divulga em horário nobre que “o agro é pop”, essa popularidade se deve aos resultados das pesquisas que nasceram em Seropédica, na nossa Embrapa, e que foram realizadas por Johanna e suas equipes de pesquisa.
Ainda nos dias atuais, estima-se que a fixação biológica de nitrogênio no solo gere uma economia de 2 bilhões de reais em adubos no Brasil (Embrapa, 2022, online). Ainda assim, não há suficiente empenho em prover comida para todos…
Natural da antiga Tchecoslováquia, Johanna teve uma vida conturbada entre diásporas e fugas durante a Segunda Guerra Mundial. Ao migrar com os avós para a Alemanha, sustentava a família com seu trabalho rural em uma fazenda.
Assim que pôde, matriculou-se na Faculdade de Agronomia da Universidade de Munique, custeando seus estudos também com o trabalho no campo. Porém, como ela dizia, “o diploma não valia nada”; afinal, com o fim da guerra e perseguição aos nazistas remanescentes, sua nacionalidade alemã lhe dava inúmeros problemas, fechava portas e limitava possibilidades.
Teve de optar pela diáspora mais uma vez, e veio para o Brasil destroçada física, econômica e emocionalmente, em consequência dos incontáveis transtornos que se seguiram ao fim daquela Grande Guerra. Em sua trajetória não faltaram obstáculos. Além da escassez e da discriminação racial, sofreu também o preconceito de gênero, ao ousar pesquisar na área da Agronomia, quase exclusivamente masculina em seus dias.
Já casada com seu antigo colega de faculdade, Jürgen Döbenreiner, Johanna veio para o Brasil em 1950, com seu diploma de Agrônoma na mão e ávida por se estabelecer profissionalmente. Fixou-se onde foi acolhida: no Instituto de Ecologia e Experimentação Agrícola do Serviço Nacional de Pesquisas Agronômicas, Seropédica, RJ, hoje a Embrapa Agrobiologia, que ela ajudou a fundar.
A cientista, que se considerava “uma camponesa em laboratório”, não romantizava nem glamourizava o trabalho científico. Pelo contrário, buscava excelência em suas orientações pois entendia a importância do trabalho em equipe. Trabalhou até o fim da vida na Embrapa Agrobiologia, em Seropédica, e foi uma mulher do campo, cientista, mãe, cidadã, como tantas outras neste país.
Neste mês da mulher, importa muito lembrar o exemplo que Johanna foi e é para todas nós, mulheres e meninas na ciência. Johanna não acreditou nas narrativas de silenciamento que lhe foram contadas e recontadas; no sentido oposto, escolheu a expansão interpretativa (Monte Mór, 2008), ressignificou os sentidos, e decidiu em quais narrativas acreditar. A partir daí, desafiou as estruturas de poder alicerçadas em um sistema patriarcal, em que gênero, raça e classe definem a relevância ontológica.
Este ano, em que se celebra o centenário de seu nascimento, todo o mundo científico exalta seu trabalho, que modificou a agropecuária tropical. É importante que também a comunidade científica brasileira honre essa pioneira da ciência no Brasil, sua trajetória, seus problemas, sua persistência, seu desprendimento, sua paixão pela vida, pela ciência, pela Terra. Aqui na Rural, Johanna, sua casa por tantas décadas, buscamos seguir suas palavras: “a gente nunca pode se acostumar com o que já existe. Sempre há possibilidade de melhorar”. Estamos tentando, Johanna, estamos melhorando.
Referências:
BARAD, Karen. Meeting the universe halfway. Durham & London: Duke University Press, 2007.
BISPO, Antonio. Comunicação. In.: Mesa de Debates Aquilombar o antropoceno, contracolonizar a ecologia. USP/FFLCH, 2023. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=7RCuzE6b83k&t=186s (acesso em 19-02-2024)
EMBRAPA. 2024: Centenário Johanna Döbereiner – evento de lançamento. Mesa Redonda. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=G_SyyW03pZ8 (acesso em 20-02-2024)
MEMÓRIA EMBRAPA. Johanna Döbereiner: a cientista que revolucionou a agricultura. Artigo. Disponível em https://www.embrapa.br/johanna-dobereiner/quem-foi (acesso em 20-02-2024)
RENDEIRO, Ruth. A cientista que poucos brasileiros conhecem: Johanna Döbenreiner. Artigo. In.: Portal Embrapa 40 anos. Disponível em https://sistemas.sede.embrapa.br/40anos/index.php/personagens/detalhes/1 (acesso em 20- 02-2024)
Simone Batista é doutora em Letras, professora do Departamento de Teoria e Planejamento do Ensino (DTPE/IE) e do Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola – PPGEA. É pesquisadora da área de formação de professores de línguas articulados aos estudos decoloniais e de multiletramento. Sua pesquisa investiga as relações entre linguagem, espiritualidade e sustentabilidade.
*O site da ADUR é um espaço aberto aos docentes e pesquisadores da UFRRJ e de outras Universidades também. As opiniões expressas no texto não necessariamente representam a opinião da Diretoria da ADUR.
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