ADUR Online #28: O Feminismo e a Luta de Classes
*ADUR Online
19 de fevereiro de 2021
Por Ana Rocha
Na 2° Conferência Internacional de Mulheres Socialistas realizada em 1910 em Copenhague, Dinamarca, Clara Zetkin propôs homenagear as 129 operárias queimadas vivas numa fábrica de Nova Iorque, por exigirem redução da jornada de trabalho. A proposta foi fazer uma jornada mundial de luta no 8 de março, em homenagem a essas heróicas trabalhadoras têxteis. Essa proposta selava simbolicamente a íntima relação da caminhada libertadora das mulheres com a luta dos operários pela sua emancipação social.
Estamos às vésperas de mais um 8 de março, em um mundo de capitalismo em crise, de financeirização crescente, de desinvestimento no setor produtivo da economia, de aumento de desemprego, de desregulamentação, informalização e precarização do mundo do trabalho. A pandemia da Covid 19 expôs ainda mais essa situação e mostrou como as mulheres foram as maiores vitimas, por estarem na sua maioria no trabalho informal, precário.
Feminismo x Luta de Classes
Vale destacar que os marxistas, em todos os tempos, sempre se preocuparam com a opressão das mulheres e deram uma interpretação científica, afirmando que “a questão feminina é uma questão social e só como tal poderá ser resolvida”. Fizeram a primeira análise mais sistemática sobre o assunto, desnaturalizando a condição de subordinação das mulheres e situando sua gênese num processo histórico-social., superando uma abordagem, essencialista, que situava na natureza humana a base da dominação e da subordinação.
Muitas foram as críticas feitas às teses marxistas sobre a questão da mulher, sobretudo alegando que estas deixaram de lado sua especificidade e que reduziram sua condição apenas a uma questão econômica, um apêndice das relações produtivas. No livro ‘’A ideologia Alemã”, Marx e Engels demonstram entender esse aspecto como parte de um único processo. Aí eles afirmam que a reprodução e a manutenção da vida dos indivíduos, assim como as relações sociais que os mesmos estabelecem, são tão importantes quanto as relações de produção. Tudo isso permitiu uma dimensão coletiva da subjetividade humana. Outra resposta a esta questão foi dada por Engels em 1890, em carta a Bloch, quando esclareceu: “(…) segundo a concepção materialista da história, o fator que em última instância, determina a história é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx nem eu afirmamos, uma vez sequer, algo mais que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o único fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se levantam sobre ela – as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as constituições que, uma vez vencida uma batalha, a classe triunfante redige etc.., as formas jurídicas e inclusive os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos que nelas participam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as idéias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se num sistema de dogmas – também exercem sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma, como fator predominante. (grifos de Engels).
Marx e Engels demonstraram em sua obra que a opressão da mulher coincide com o surgimento da propriedade privada dos meios de produção e o surgimento das classes sociais. Indicaram que a história de submissão da mulher começa quando ela é afastada da produção social. A primeira idéia sobre o assunto aparece no Manifesto do Partido Comunista, em 1848. Aí está presente a idéia de que somente a socialização da propriedade pode fazer desaparecer a situação de submissão da mulher.
No livro “A questão judaica’’ fazem a distinção entre emancipação política e emancipação humana, indicando os limites da igualdade jurídica ou formal como instrumento de reversão da subordinação vivida pelas mulheres. Numa compreensão de que a subordinação não cessará abolindo-se apenas as distinções legais, mas sim buscando uma transformação das estruturas econômicas e políticas geradoras de desigualdades.
Em 1884, dando continuidade aos estudos de Marx sobre Morgan, Engels publica o livro A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, onde analisa as diversas fases históricas do desenvolvimento da humanidade, para comprovar que as mudanças na condição da mulher sempre corresponderam às grandes transformações sociais, ao desenvolvimento da ciência e da técnica. Analisa a involução da situação da mulher, das condições de uma igualdade na época do considerado comunismo primitivo até a condição da chamada civilização. Mudança que se operou a partir da exclusão da mulher do processo produtivo social. Daí a conclusão de Engels : “a emancipação da mulher e sua equiparação ao homem são e continuarão sendo impossíveis enquanto ela permanecer excluída do trabalho produtivo social e confinada ao trabalho doméstico, que é um trabalho privado. A emancipação da mulher só se torna possível quando ela pode participar em grande escala, em escala social, da produção; e , quando o trabalho doméstico lhe toma apenas tempo insignificante’’.
Augusto Bebel, um dos fundadores da II Internacional também se dedicou à questão da mulher e escreveu o livro “a Mulher e o Socialismo, em 1889. Ele tem o mesmo argumento de Marx e Engels sobre a questão e afirma: “Todas as opressões sociais encontram sua raiz na dependência econômica do oprimido em sua relação com o opressor. Desde os tempos mais remotos, a mulher se encontra nessa situação: a história do desenvolvimento da sociedade humana o ensina’’.
Clara Zetkin colocou entre os objetivos da II Internacional a paridade entre os sexos e a defesa das condições de vida e trabalho da proletária. Além da luta pelo sufrágio feminino, ela considerava necessária a conquista de uma legislação mais humana para as condições de trabalho da mulher na fábrica e uma organização específica para a operária. Sofreu crítica por sua visão de classe, de diferenciar a posição de classe na luta da mulher. Ela contribuiu para o entendimento da dimensão específica da opressão da mulher.
Lênin, por sua vez, deixou claro a estratégia da luta pela emancipação da mulher como componente da revolução proletária. Aproximou os objetivos dos dois movimentos. Lênin ajudou pessoalmente a elaboração de muitas leis que vieram a favorecer a mulher, após a instauração do poder proletário na União Soviética. Entendeu a importância do combate à dupla jornada de trabalho com a entrada em massa da mulher na produção social. Afirmava: “a tarefa principal do movimento operário feminino consiste na luta pela igualdade econômica e social da mulher e não somente pela igualdade formal. A tarefa principal é incorporar a mulher ao trabalho social produtivo, arrancá-la da escravidão do lar, liberta-la da subordinação – embrutecedora e humilhante- ao eterno ambiente da cozinha e do quarto das crianças”. É uma luta prolongada que requer uma radical transformação da técnica social e dos usos e costumes.
E mais, Lênin afirmava “ Não se pode assegurar a verdadeira liberdade, não se pode edificar a democracia e o socialismo se não chamarmos as mulheres ao serviço cívico, à vida política.”
Perspectivas
Essa a grande contribuição dos marxistas ao identificar a gênese da opressão e conseqüentemente apontar a relação entre a emancipação social e a emancipação das mulheres..
O capitalismo avançou, as relações de trabalho se modificaram. Trata-se hoje de analisar a forma como essa dominação/subordinação foi se estruturando e conformando ao longo da história. Fica o desafio de entender a complexidade que as interações sociais foram assumindo até o período contemporâneo. A partir da ideia da subordinação da mulher como algo socialmente estruturado.
A Revolução de 1917 na Rússia foi um marco histórico na luta contra o capitalismo, significando a esperança de um mundo socialista, sem exploração e opressão. Mas a queda do muro de Berlim em 1989, simbolizou o fim da União Soviética, o colapso do “campo socialista” e do “socialismo real”, abalando convicções, propiciando o reordenamento na correlação de forças mundial e o surgimento de teorias que apregoavam o fim da história, da luta de classes e do trabalho, no contexto de tentar impor o pensamento único neoliberal. Francis Fukuyama, filosofo e funcionário do Departamento de Estado norte-americano foi o arauto da tese de que o Ocidente havia conseguido o estado final do processo histórico, representado pela sociedade capitalista e liberal ( Losurdo. D. 2015).
Essa ofensiva reacionária teve seu contraponto no extraordinário desenvolvimento econômico e tecnológico da China, que passa a ser alvo dos raivosos ataques de Trump, e aqui no Brasil de Bolsonaro. A crise econômica também vem servindo de freio aos Estados Unidos, embora suas ambições neocoloniais não tenham desaparecido.
O fato é que o receituário neoliberal de redução do papel do estado na economia e nas políticas públicas, a supremacia do mercado, a financeirização e a redução do investimento no setor produtivo da economia, a desregulamentação e flexibilização no mundo do trabalho , produziram mais desigualdades, mais desemprego, concentração da riqueza e exclusão social.. Todas essas questões, a redução do trabalho formal e o aumento da informalidade turvaram o entendimento da centralidade do trabalho, com repercussão nos estudos feministas.
A pensadora feminista norte-americana , Nancy Fraser, em entrevista ao jornal The Guardian, afirma:” Temo que o movimento pela libertação das mulheres tenha se enredado em uma ligação perigosa com esforços neoliberais para a construção de uma sociedade de livre-mercado. Isso explicaria porque idéias feministas, que já fizeram parte de uma visão de mundo radical, sejam cada vez mais expressas em termos individuais”… E continua: “ O que está por trás dessa alteração é uma mudança de ares no caráter do capitalismo. O capitalismo organizado pelo Estado de pós-guerra tem dado espaço a um novo formato – “desorganizado, globalizante, neoliberal..” Ao rejeitar o “economicismo” e politizando o “pessoal”, algumas feministas ampliaram a agenda política para desafiar as hierarquias de status pressupostas nas construções culturais de diferença de gênero.. O resultado deveria ter sido a expansão da luta por justiça, de forma a conter tanto a cultura, quanto a economia. Todavia, conclui Fraser, “o resultado real foi o foco unilateral em “identidade de gênero”, as custas de assuntos pão com manteiga”. Ainda pior, diz Fraser, “ recorreu-se à política identitária bem encaixada com um liberalismo crescente, que quis nada mais do que reprimir toda a memória de igualdade social”
Também nesse rumo é a argumentação da estudiosa francesa, Daniele Kergoat, (2019), que alerta para o fato de que a centralidade do trabalho (assalariado e doméstico) , parece posta em questão pela fragmentação de eixos de luta. Para Kergoat, os gender studies (estudos de gênero), importados dos Estados Unidos, centram a análise em novos objetos: – a hirearquização das sexualidades; – as políticas de subversão das identidades; – as tecnologias do corpo; – a segmentação de grupo de mulheres (que destruiria a noção de classe).
Segundo Kergoat, esses estudos, embora venham renovar a crítica da ideologia naturalista, se realizam no contexto da ocultação da questão do trabalho e da exploração.
A recente crise econômica e a pandemia do Covid 19 chamaram atenção para as conseqüências desastrosas da financeirização, recolocando na ordem do dia a importância do setor produtivo da economia e o papel do Estado, destacando a necessidade de valorização do trabalho e sua centralidade.. Fica cada vez mais evidente, que nos marcos da sociedade capitalista em que vivemos, produtora de mercadorias e da mais valia para a acumulação do capital, o trabalho continua tendo centralidade., E portanto, o conflito capital-trabalho permanece central, podendo se apresentar de formas diversas, de acordo com cada país, região e cultura.
Assim, as tentativas de achar um lugar para a dimensão subjetiva da dominação de gênero não podem nos levar a abdicar de qualquer perspectiva estrutural de um sistema econômico-político mais amplo, de suas bases concretas. Pois nesse caso como ficariam os possíveis impactos das relações de classe ou de raça sobre a situação das mulheres.?. Como preservaríamos as dimensões materiais e simbólicas que envolvem as relações sociais de gênero?.
Para Stvan Mezaros (2002), o impulso do capital para a expansão lucrativa interessa incluir a mulher no mercado de trabalho, mas impondo limitações e desigualdades, jogando sobre os ombros das mulheres o peso das disfunções sociais associadas à crescente instabilidade da família. No universo do mundo produtivo existe uma construção social sexuada que faz com que homens e mulheres que trabalham seja, desde a família e a escola, diferentemente qualificados e capacitados para o ingresso no mercado de trabalho. É nesse contexto que a ampliação da presença da mulher no mundo produtivo faz parte de uma emancipação inconclusa, parcial, tanto em relação à sociedade de classes, quanto às inúmeras formas de opressão masculina, fundamentadas na tradicional divisão social e sexual do trabalho. O capital incorpora o trabalho feminino de modo desigual e diferenciado em sua divisão social e sexual do trabalho.
Fica evidente que o trabalho é uma questão central para entender o sistema de exploração e dominação. Está no centro das opressões de classe, gênero e raça. É também espaço de resistência e luta, lugar de solidariedade e cooperação, de socialização. E, portanto, fonte de emancipação individual e coletiva. Nesse sentido, o processo emancipatório das mulheres depende da combinação entre a consciência de gênero, da consciência de classe e da consciência de raça. O feminismo emancipacionista, que se baseia nos pressupostos marxistas, entende que a emancipação das mulheres se relaciona com a emancipação coletiva de todas as formas de exploração e opressão, com a emancipação humana. A luta feminista e antirascista libertadoras se entrelaçam com a luta de classes , numa mesma perspectiva emancipatória.. Como diz Silvia Federici, qualquer projeto feminista exclusivamente implicado com a discriminação sexual, sem situar a “feminização da pobreza” no contexto do avanço das relações capitalistas, estará condenado à irrelevância e cooptação.
Ana Rocha é jornalista e psicóloga com Pós-Graduação em Políticas Públicas e Governo, Mestra em Serviço Social. Foi Secretária de Políticas para as Mulheres do Município do Rio de 2013 a abril de 2016. Coordena o Centro de Estudos e Pesquisa da UBM (União Brasileira de Mulheres). É assessora de Gênero do Sindicato dos Comerciários do Rio. Da Coordenação do Fórum Nacional do PCdoB sobre a Emancipação das Mulheres.
BIBLIOGRAFIA
ARAUJO, Clara. – Marxismo e Feminismo: tensões e encontros de utopias atuais. ,encarte teórico ,Revista Presença da Mulher , 2000.
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ENGELS, Fiederich. A Origem da Família, da propriedade Privada e do Estado, Obras Escolhidas, vol. 3. Lsboa- Moscou- 1985
ENGELS, Friederich. Carta a Bloch. . Obras Escolhidas, vol. 3. Lisboa:Avante, 1985b
FEDERICI,Silvia. O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico,reprodução e luta feminista. São Paulo: Editora Elefante, 2019
LOSURDO,Domenico.A Luta de Classes: uma história política e filosófica. Editora Boitempo. 2015
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MÉSZAROS, Istvan. Para além do capital. São Paulo:Unicamp-Boitempo. 2002.
VALADARES, L. – A controvérsia “Feminismo x Marxismo”, in Revista Princípios, Editora Anita, SP, n* 18, junho/julho/agosto de 1990.
BEBEL, A. – La Mujer y El Socialismo, Ed. Akal, 1977
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