ADUR Online #11: Eleições no Rio de Janeiro: qual projeto de cidade?
16 de outubro de 2020
Por: Marcelo Baumann Burgos
À primeira vista, estamos no deserto, de ideias e ideais, de política. Entre um pragmatismo neoliberal que se esgotou com o retumbante fracasso do projeto dos grandes eventos – cujo legado ainda precisa ser realmente inventariado -, e que na verdade nada tem a oferecer senão a distopia tecnocrática de uma cultura de gestão esvaziada de significado para a vida das pessoas; e um fundamentalismo religioso, extremamente conservador e com viés fascista, e que cada vez mais se afasta do ascetismo cristão, convertendo-se apenas em moeda política de baixo valor em virtude da sua própria inflação; entre uma e outra vertente, subsiste um silêncio, ainda mais agravado pelo contexto de pandemia; um silêncio que não deixa de ser construído, mas que não é capaz de recobrir completamente os rumores de mudança.
O Rio de Janeiro ingressa nos anos de 1990, logo após a promulgação da Constituição Cidadã, com um projeto de cidade, consagrado em seu Plano Diretor, aprovado pela Câmara de Vereadores, em 1992: o da integração social por meio de políticas urbanas. É nesse contexto que se organizam políticas públicas exitosas como o Favela-Bairro e a de regularização dos loteamentos irregulares. O pacto social não durou o suficiente. As forças políticas dominantes moveram o centro de gravidade em outra direção: o da cidade-mercadoria dos grandes eventos. O investimento na qualificação da moradia popular mais uma vez seria postergado. Os interesses econômicos precisavam se emancipar do agasalho social forjado nas lutas por direitos na década anterior.
Sem conseguir se emancipar do Rio (após a acachapante derrota no plebiscito de1988), a Barra da Tijuca deveria ser o laboratório dessa cidade-mercadoria, e para ela deveriam convergir todos os esforços e vultosos investimentos públicos, até o ponto de fazer do bairro uma nova centralidade da cidade. Para lá fluiria boa parte das novas vias abertas ao transporte público e para automóveis. Uma nova linha de metrô, duplicação de viadutos, e três vias exclusivas para ônibus (BRT). O de sempre: um viçoso mercado imobiliário patrocinado pelo dinheiro público. Esta a melhor síntese do legado dos jogos de 2016. Em tempo: a única BRT que não leva à Barra da Tijuca, e que beneficiará (um dia!) moradores do subúrbio e da zona oeste da cidade até hoje não foi concluída.
Na região portuária, onde também foi realizado maciço investimento público, o quadro é desolador. Cenários sem vida, à espera de incorporadoras e construtoras dispostas a aproveitar a janela de oportunidade de uma região com boa infraestrutura, próxima dos dois aeroportos da cidade e de rodovias importantes. A área tinha grande potencial para servir a uma ocupação mista, com oferta de habitação popular, mas optou-se por fazer dela uma nova fronteira aberta à especulação imobiliária, e com equipamentos culturais privados e inacessíveis a boa parte dos moradores da cidade.
Na linha do tempo que nos trouxe até aqui importa ressaltar que o Plano Diretor de 1992, é atropelado por um Plano Estratégico, elaborado ainda em 1995 pelo executivo municipal, e com uma participação seletiva, sob forte hegemonia empresarial. O pacto da integração social desliza, sem alarde, para uma nova conformação. Gradualmente, sai de cena a agenda da urbanização das favelas e de regularização dos loteamentos, reconhecidos como eixos fundamentais de uma política orientada para assegurar uma maior equidade urbana; as remoções voltam a acontecer, ao mesmo tempo em que ganha corpo o agenciamento empresarial da vida popular: do acesso ao solo e às quitinetes (para aluguel nas favelas) até a comercialização do botijão de gás. O Rio dos grandes eventos internacionais é também o Rio da expansão das milícias. Há mais do que mera coincidência entre esses dois processos. Tudo é business! Inclusive as operações policiais que, com a complacência da parte de cima da cidade e de suas assustadas classes médias, se valem do argumento de que estão combatendo a criminalidade para agenciar outras formas de ganho. O breve interregno das UPPs confirma o destino antevisto pelos moradores das favelas ocupadas por essas unidades policiais: durariam apenas o necessário para a realização da copa do mundo e das olimpíadas.
Mas os efeitos da operação semântica de converter a cidade popular, com sua alma barroca, em palco dos grandes eventos internacionais são mais indeléveis: separa a cité da ville. A primeira categoria evocando o espaço da experiência cotidiana, das relações sociais, da escala humana, da vida local; e a segunda, a do ambiente construído. Em sua versão carioca, a separação entre a ville e a cité proposta como chave analítica por Richard Sennet, significa a construção de uma cidade-cenário, e a conversão da população em plateia, que deve aprender a ver com olhos de turista sua própria cidade.
“A consciência urbana se dissipa”, perdendo-se o “sentido da obra”. As aspas são de Lefebvre e remetem ao impacto das obras urbanizadoras de Haussmann sobre a classe operária parisiense do século XIX. Na mesma direção, o Rio dos grandes eventos leva a uma expropriação de sua soberania popular; uma suspensão, um vácuo cívico, sempre bem embalado por imagens sorridentes de visitantes multiétnicos ávidos por conhecer sua exuberante natureza.
Sem a consciência de cidade, perde-se o rumo da democracia. A política carioca, já historicamente fragilizada pela perda da condição de capital federal, e pela fusão autoritária com o Estado do Rio de Janeiro imposta por militares em pleno AI-5, acaba por se esfarelar. No auge da geração de riqueza que jorra da produção de petróleo e de gás, na década de 2000, e que responde por mais de 30% do PIB fluminense, o lugar do Estado e de suas instituições é ainda mais aviltado, reduzindo-se a um balcão de negócios. Tudo é ou deve ser mercantilizado, o voto, os contratos públicos, as alianças políticas e até a fé das pessoas. Contra esse estado de coisas, as corajosas, mas frágeis, tentativas de romper com esse círculo vicioso não são páreo, sendo tratadas, inclusive por boa parte da grande imprensa, como arroubos juvenis. Nesse quadro socialmente recessivo e excludente, os mecanismos de solidariedade recuam na direção de um “familismo amoral” (abençoado por deus, naturalmente), e o tecido social se esgarça. O remédio é mais polícia, e a policialização de todas as esferas, inclusive das escolas. E, junto com ela, a crescente criminalização da pobreza. O “tiro na cabecinha” e os “caveirões voadores” não são apenas gestos de um governador tresloucado. Também rendem bons frutos eleitorais.
Talvez por isso a maioria dos cariocas, segundo pesquisa recente, tenha dito que, se pudesse, fugiria da cidade.
É nesse ambiente tóxico e de baixa inteligibilidade que o Rio de Janeiro chega a essas eleições de 2020. Por ora, vivemos o vazio (sempre perigoso) de projeto e de poder. As lógicas azeitadas nas últimas décadas seguem seu curso, agenciando tudo à sua volta; e certamente farão de tudo – tudo mesmo! – para manter suas teias de poder, no legislativo, no executivo e no próprio judiciário (como não?). Mas não farão isso sem encontrar resistência. Quanta resistência? É uma pergunta ainda sem resposta. Talvez seja a principal pergunta a ser respondida nessas eleições.
Apesar de tudo que se fez para destruí-lo – aí incluídas as remoções forçadas dos anos 60 e 70 para uma então distante zona oeste -, o Rio tem um longevo e forte passado popular. São raízes fundas que, secretamente, teimam em se reorganizar, em seus subúrbios e favelas, quase sempre à margem da política partidária. Novos atores e organizações populares amadureceram nessa última década, e a pandemia deixou isso claro, revelando uma força de mobilização e de articulação horizontal que não se imaginava existir. O movimento negro ganhou nova voz, e com ele articulações com um mundo popular sub ou nada representado. Lideranças populares, com grande circulação na vida universitária, construíram redes transversais articulando territórios e classes sociais. E as próprias universidades, praticamente alheadas da vida pública carioca (afinal, as políticas públicas se converteram em empreendimentos econômicos), estão aí, prontas para colaborar. As escolas públicas se expandiram na vida popular, forjando novos sujeitos sociais, como ficou evidente na força do movimento de ocupação das escolas no Rio de Janeiro em 2016.
Tais processos geram uma energia cívica que pode favorecer uma revitalização da vida institucional da cidade, incluindo sua vida político-partidária e suas instituições públicas e estatais. Por isso é possível sonhar com um projeto de cidade mais popular, preocupada com a equidade urbana e a proteção dos pobres em face da brutalidade do laissez faire do mercado dominado por empresários milicianos. É possível sonhar com uma cidade na qual a dimensão econômica e o mercado seguiriam sendo fundamentais mas agasalhados pela dimensão social.
O tempo da política não é o do relógio e, às vezes, como na derrubada do Muro de Berlim, poucos dias podem comportar mudanças significativas. As eleições de 2020 no Rio de Janeiro ainda podem trazer surpresas, boas ou más. Mas uma coisa é certa: a construção de um futuro mais promissor para a cidade e seus moradores passa necessariamente pela transformação da sua cultura popular e de sua vida organizacional em ativos políticos. As condições estão dadas.
* Marcelo Baumann Burgos é Professor e Pesquisador do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio.
ADUR ONLINE é um espaço da base do Sindicato. As opiniões expressas no texto não necessariamente representam a opinião da Diretoria da ADUR-RJ.
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