ADUR Online #10: A reforma administrativa e a erosão do Estado Social
9 de outubro de 2020
*Artigo do Portal do Observatório do Estado Social Brasileiro selecionado para o ADUR Online
Por: Tadeu Alencar Arrais
Assistimos, mesmo antes da publicação da PEC-32, uma ampla campanha contra o Estado Social que teve como mote a seguinte premissa: o Estado emprega muito e oferece serviços de baixa qualidade. A campanha adotou exercícios pirotécnicos baseados em números que criminalizam os servidores públicos. O quadro de servidores públicos, cuja concretude da existência é objeto de espetacularização, atua, ao juízo da mídia hegemônica, em um país abstrato. Representado no telejornal, esse país parece não ter passado escravocrata e seus cidadãos parecem não depender dos serviços públicos.
O serviço público concentrou, em 2019, 21% do total dos empregos formais. A comparação com o emprego privado merece cuidado, uma vez que a curva do total de servidores públicos será, sempre, menos sujeita ao desemprego. Se o desemprego cresce, como registrado nos últimos anos, por óbvio que a participação relativa dos servidores públicos no total de empregos aumentará. Em 1991 eram 5,1 milhões e em 2019 11,4 milhões de servidores públicos nas escalas federal, estadual e municipal. O crescimento do número de servidores públicos, portanto, faz par com o crescimento da população que, entre 1991 e 2020, teve acréscimo de mais de 64 milhões de habitantes.
É interessante, no entanto, perceber que o incômodo da mídia, do governo federal e da maior fração do legislativo, não se localiza, apenas, no volume de servidores públicos, mas, sobretudo, no gasto que ultrapassa os supostos padrões internacionais. A meta é perseguir o superávit primário pelo âmbito da redução das despesas com custeio e investimentos. A agenda de reformas surge, com mais ênfase, nos momentos de resultados primários negativos (Figura 1). Essa compreensão é presente no estudo publicado pelo Instituto Millenium (Reforma administrativa: diagnóstico sobre a empregabilidade, o desempenho e a eficiência do setor público brasileiro) e no estudo publicado pelo Banco Mundial (Gestão de pessoas e folha de pagamentos no setor público brasileiro). Sob a ótica desses estudos, além de um país abstrato, vivemos em uma sociedade desprovida de história. O recorte de 30 anos, utilizado para justificar os dados do crescimento das despesas com os servidores públicos é provocativo para aqueles que ainda acreditam no Artigo 6 da Constituição Federal que referendou a saúde, a educação, a moradia, o lazer, como direitos sociais. Esses direitos não são abstratos e sua materialização exigiu, ao mesmo tempo, investimento em infraestrutura física (escolas, creches, postos de saúde, delegacias etc.) e em pessoal (professoras, merendeiras, enfermeiras, odontólogos, policiais militares etc.). Tudo isso em um país com 212.130.495 (IBGE, 2020) pessoas distribuídas, desigualmente, em 8.515.759,090 Km2. O Brasil sem história é, também, o país que, sob a vigilância da mídia e das instituições rentistas, vira as costas para a desigualdade social e, portanto, para democracia.
O gasto com os servidores ativos do governo federal, em 1995, representou 2,46% do PIB, caindo para 1,95% em 2018. Redução percentual semelhante não verificamos no poder judiciário, cuja despesa passou de 0,28% em relação ao PIB, em 1995, para 0,45% em relação ao PIB, em 2018. A estratégia midiática esconde o fato de que a proposta de Reforma Administrativa bajula aqueles que legislam, aqueles que julgam e aqueles portam armas. A remuneração média das funções do executivo, tanto no nível médio quanto no nível superior, são inferiores aquelas do legislativo, do judiciário e do ministério público. A média de remuneração do executivo, para funções de nível médio, foi, em 2020, de 5,9 mil reais e para as funções de nível superior, 12,5 mil reais, muito distante do legislativo, com 17,2 mil reais para funções de nível médio e 27,4 mil reais para as funções de nível superior.
Mas há um detalhe que não pode ser esquecido. A proposta de Reforma Administrativa, pela ótica do governo federal, pode até ser considerada redundante, uma vez que apenas 46,47% dos servidores públicos federais são estatutários (concursados). É o que se deduz da leitura do relatório do Instituto Millenium:
Essa urgência do debate também se ressalta pelo fato de que 95% desses funcionários federais ativos acima de 51 anos serem compostos por estatutários, sendo que apenas 4% deles é CLT e 0,09 temporário. Como estes 219 mil funcionários efetivos devem se aposentar na próxima década e meia, isso significava que uma Reforma Administrativa neste instante conta com amplo espaço para aumento percentual dos trabalhadores temporários e celetistas de mais de 36% dos servidores ativos até 2030. (Instituto Millenium, p.49, grifo nosso)
De forma sincronizada, o Relatório do Banco Mundial, citado na justificativa da PEC-32, afirma os mesmos argumentos:
Políticas adicionais precisam ser empregadas e, o elevado número de aposentadorias esperadas para os próximos anos, constituiu uma janela de oportunidade para reformas administrativas significativas. (Banco Mundial, p. 10, grifo nosso)
É preciso compreender que a proposta de Reforma Administrativa não é contra, de forma indiscriminada, os servidores públicos. O estatuto neoliberal não é, propriamente, contra o Estado. É contra um tipo específico de Estado que atua no ambiente social para reduzir a desigualdade e, no ambiente econômico, para impor o mínimo de regulamentação da economia. A proposta de Reforma Administrativa mira nos servidores públicos estatutários. Para a maior fração dos contratos temporários e de CLT, excluídas as indicações políticas dos altos escalões, a remuneração média é menor que aquela dos estatutários. O que está em questão é a possibilidade de contratação, a cada calendário político, de um numeroso exército de pessoas para servir, não ao Estado, mas aos interesses de facções políticas. A meta de instrumentalização do Estado, de certo modo, tem sido evitada, originalmente, pelo Artigo 41 da Constituição Federal, que estabeleceu os padrões da política de estabilidade dos servidores públicos – a leitura de Coronelismo, enxada e voto, de Victor Nunes Leal, publicado no final da década de 1940, nunca foi tão necessária.
Mas há uma questão que diz respeito, diretamente, ao conjunto de professores das instituições federais de ensino. A flexibilização da estabilidade confronta, diretamente, a autonomia pedagógica. É nesse momento que surge a oportunidade, a partir da justificativa econômica, de criminalizar a docência pública superior. O preço da estabilidade é caro para o serviço público e, especialmente, para os servidores do ensino superior, cuja aderência ao discurso governamental, supostamente, é menor que a de outros segmentos do serviço público. Os servidores públicos das universidades federais e dos institutos federais somaram, em 2020, 246.841 vínculos. Se considerarmos que a maior fração é composta por estatutários, especialmente professores do ensino superior, então começamos a perceber que o maior peso das mudanças recairá sobre a educação superior. É interessante, nesse ponto, pensar na visibilidade dos órgãos públicos federais. O Ministério da Defesa, por exemplo, abriga mais funcionários que o Ministério da Educação.
Mas é preciso transpor algumas armadilhas. Não são os funcionários públicos civis e/ou militares do Ministério da Educação, nem do Ministério da Defesa, ou mesmo do Ministério da Saúde, os culpados pela situação fiscal do país. Quando fitamos os dados da folha de pagamento dos servidores militares, por exemplo, percebemos que 39%, em fevereiro de 2020, segundo dados do Portal da Transparência, receberam rendimentos abaixo de 3 Salários Mínimos. Quando observamos, com a lupa, os dados funcionais dos professores de nível superior, percebemos que apenas 2,9% do total estão no topo da carreira, bem diferente das carreiras jurídicas federais cujo percentual ultrapassou, em 2018, 78% dos ativos. Além disso, o professor do ensino superior, considerando o tempo de serviço mediano, demora 25 anos para chegar ao topo da carreira, enquanto as carreiras jurídicas demoram, em média, 10 anos.
Nada, além da vontade da mídia, do mercado financeiro e do governo federal, indica que a Reforma Administrativa resolverá a situação fiscal do país. A prova disso é que a decantada Reforma da Previdência, que mirou nos mais pobres do RGPS (Regime Geral de Previdência Social), não surtiu o tão esperado efeito. O problema, diante de uma crise fiscal sem precedentes, é que o governo federal insiste em resolver o déficit, especialmente em um período de crise sanitária, reduzindo a despesa com pessoal e com os investimentos. Pouco se observa a questão pelo lado da receita, uma vez que isso implicaria na adoção de uma Reforma Tributária centrada na renda e no patrimônio, como tem alertado o economista Thomas Piketty.
A nossa tarefa, imprescindível, nessa disputa de narrativas, passa por afirmar e demonstrar, cotidianamente, que o Estado Social, ao contrário de burocrático, oneroso e ineficiente, importa para
- 13,1 milhões de famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família;
- 1,35 milhões de agricultores familiares beneficiários do PRONAF;
- 3,2 milhões de alunos matriculados na Educação de Jovens e Adultos;
- 40 milhões de estudantes matriculados em instituições públicas do ensino básico;
- 4,5 milhões de pessoas pobres beneficiários do Benefício de Prestação Continuada;
- 9,6 milhões de agricultores pobres beneficiários da Aposentadoria Rural;
- 29 milhões de crianças que receberam, com regularidade, doses de vacinas como a BCG, Oral Poliomielite e Pentavalente;
- milhões de brasileiros que são atendidos em mais de 50 mil estabelecimentos públicos de saúde (hospitais, centros de saúde, postos de atendimento, SAMU etc.) pelo Sistema Único de Saúde.
Mas a disputa também decorre daquela hipótese criticada por Dardot & Laval, no livro A nova razão do mundo, de que os funcionários públicos, bem como os usuários dos serviços públicos, respondem pela lógica do interesse pessoal. É como se a natureza do serviço público não fosse distinta da natureza do serviço privado. O fato é que o servidor público participa, todos os dias, da realização das inúmeras funções do Estado Social. Isso ocorre, de forma sincrônica na periferia de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, nas áreas rurais de Altamira, Fronteira Oeste ou Imperatriz. O privilegio dos servidores públicos é, justamente, aquele de participar ativamente da realização das funções do Estado Social.
*Tadeu Alencar Arrais é professor de Geografia – IESA/UFG e coordenador do Observatório do Estado Social Brasileiro.
Contato: tadeuarraisufg@gmail.com
O Portal do Observatório do Estado Social Brasileiro dispõe de relatórios, artigos, vídeos, pesquisas e um conjunto de dados espacializados sobre a ação do Estado Social no território brasileiro. No Canal, Por que o Estado Importa!, estão disponibilizados vídeos sobre temas relativos ao Estado Social brasileiro. Divulgue essa ideia! Clique aqui.
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