ADUR Online #72: Sabores de docência com poesia
16 de maio de 2022
ADUR Online #72
Por Onete Lopes Ferreira
Que a experiência na docência universitária leva a descobertas parece óbvio. Todavia, descobre-se coisas para além daquelas que carecem de pesquisas. Tem as descobertas que são obras do acaso e fazem a diferença. E o melhor de tudo é que o acaso, pode nos remeter às melhores pesquisas ou pelo menos nos estimular a pesquisar sobre objetos que não se projetavam no horizonte.
É destes acasos e seus sabores que quero tratar aqui.
Por ser este espaço inerente ao trabalho universitário, eu queria escrever sobre temas que se relacionem ao ambiente acadêmico, ainda que a universidade abarque quase tudo. Ou seja, seria difícil escrever algo que não levasse a uma relação com a universidade. Não obstante, só me ocorreram ideias nascidas da minha atividade docente, ainda que tenha me imposto o firme propósito de escrever sobre algo que seja mais leve do que pesado. Decidi, ao menos, remediar e escrever sobre memórias que atravessam os textos e se fixam nos recônditos das coisas boas que gostamos de lembrar.
Sendo assim, escolhi pautar, nestas linhas, a poesia. Não a poesia dos poetas porque sobre esta eu sou quase um zero à esquerda. Eu vou falar sobre a poesia como uma coisa que descobri ser uma existência em nós. Algo que nos acompanha quando nascemos, no entanto pode morrer antes da morte. E quase sempre ela desaparece sem que a gente nem se dê por isso e pense não fazer falta alguma.
Pois é… essa possível existência de uma porção poética como característica humana inata, tem sido um tema de minhas ocupações como professora que ensina e faz também extensão e pesquisa.
Poesia, sua atrevida!
O desenvolvimento de um projeto de extensão que tinha na contação de histórias seu núcleo e, que vinha sendo desenvolvido numa escola municipal em Angra dos Reis me trouxe á poesia. Sim, poesia, algo que eu apenas conhecia como leitora desse “gênero literário”, como é classificada na Literatura. Gênero apreciado como tantas outras coisas que, por alguma razão que não vem ao caso, adotamos como boas e por isso curtimos. E. como tal, o desfrute me levava ao encontro de poetas que elenquei como favoritos, vez ou outra. Menos até do que deveria.
Sei, contudo, que descobrir outro jeito de ver e curtir poesia, a tornou mais presente no meu cotidiano. E foi numa ocasião do cotidiano acadêmico que aconteceu aquele encontro fatal que nem marcado estava. Eu ia fazer a primeira atividade do projeto de contar histórias para as crianças do terceiro ano numa escola, vizinha ao campus onde trabalho, lá em Angra. Havia mudado o ano de realização da extensão porque a diretora da escola me pedira. Antes era no quarto ano que eu fazia o projeto, mas para ser mais útil (e nem era a utilidade que me movia no projeto. Tenho raiva da escola utilitária) eu topei fazer com o terceiro ano. Explico. Em Angra, as crianças vão sendo aprovadas automaticamente até o terceiro ano, quando são avaliadas naquelas competências e habilidades indicadoras de sucesso (ler e escrever). Como havia muitos casos de retenção, talvez o projeto contribuísse para mudar esse quadro. E não é que serviu, de fato? Mas esse é outro assunto. É de poesia que eu quero falar.
Naquele dia inicial, eu e a equipe nos demos conta de um detalhe que havia passado batido: se as crianças, em grande quantidade, ainda não sabiam ler livros, então o projeto anterior, que tinha a leitura como exigência, não poderia ser feito. Por um acaso eu levava comigo um livrinho do Fernando Pessoa, o qual continha o poema Mar português. Decidimos, de improviso, ler e analisar no encontro, no lugar da leitura dos livros, este poema.
Mar Português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu
(Fernando Pessoa)
As crianças ficaram tão atentas e solícitas ao poema que ali mesmo decidimos que a poesia substituiria as histórias. Elas gostaram do poema e se deliciaram com seu conteúdo. Descobriram, num impulso, que poesia conta histórias, fala de coisas de um jeito muito belo.
Eu também começava ali um percurso de descobertas. O interesse pela poesia revelado pelas crianças, a tornaria um objeto a ser compreendido não mais como gênero literário, que é coisa das gentes das letras e eu sou da pedagogia. No entanto, deixarei para outro momento esse assunto. Vou contar mesmo é alguns causos consequentes da poesia na escola.
A poesia na escola: algumas memórias
Sempre que converso sobre esse projeto e seus resultados, eu conto esta história porque me parece muito emblemática das minhas descobertas: numa das turmas em que fazíamos o projeto pela primeira vez, tinha uma menina já meio adolescente, que repetia pela terceira vez o terceiro ano, portanto muito acima da faixa etária da turma, ainda que outras crianças fossem repetentes, ela era a mais velha. Eu imaginei que ela iria comprometer as atividades, por causa de sua idade fora da faixa. Não é que ela foi uma das que mais se destacou? Sim, ela tinha preservado seu poeta, talvez intacto. Aliás deve ser porque ele vivia nela que a escola não lhe servia, lhe parecia desnecessária porque poetas não sabem para que serve uma escola que fala de coisas de um mundo que não é o dele. Digo-lhes que esta menina em mais ou menos um mês de projeto não apenas aprendeu a ler e escrever, como nos brindou com poemas da própria autoria. Seu primeiro poema falava de poetas e de poesia. Nele, ela dizia que o mundo precisa de poetas porque a emoção do poeta é uma necessidade para o mundo.
Quando eu comecei a estudar a poesia, descobri exatamente isso. George Jean, um autor francês, assevera que a poesia é uma outra linguagem. Linguagem dos sonhos. E um outro autor, o Carlos Felipe Moisés, me fez entender que a poesia é uma forma de utopia. Assim como li também que a peraltice das crianças, que as leva a uma “mentirinha” de vez em quando, não passa de manifestação do estado de poesia que nos habita na infância.
Outra memória interessante é de uma atividade em que abordávamos, através de vídeos, alguns poemas do Manoel de Barros. E numa das poesias ele afirma que era fácil infantilizar formigas. Que bastaria pingar açúcar no coração delas. Eu perguntei à turma se era mesmo uma coisa fácil, pois para mim, que tive meu poeta podado por inteiro, parecia muito complicado. Impossível, até. Uma criança levantou a mão e respondeu, altiva, que sim. Surpresa, com o sim tão imediatamente dado à pergunta, por aquele menino de oito anos, lhe perguntei como tocaria. E ele, muito seguro, encarando-me com segurança, sentenciou em tom quase de desdém: desenhando!
Recordo-me, para encerrar o relato, desse outro fato, que julgo significativo. É sobre um encontro casual, na rua da escola, no início de um novo ano letivo, com um menino que passara de ano e estava estudando no quarto ano. Como a sua turma não estava tendo as minhas atividades, já que permanecíamos fazendo o projeto no terceiro ano, ele me perguntou, chamando-me pelo nome, se eu não iria fazer “o projeto de literatura” em sua sala. Para mim, que convivia com aquelas crianças, a pergunta soou natural, mas eu estava acompanhada de uma colega da área de biologia, que também se compromete com a escola pública. Ela ficou deveras encantada com o fato de um menino franzino com uniforme escolar, me parar na rua, para perguntar sobre “um projeto de literatura”. Para ela, a literatura na boca de uma criança da escola pública era surpreendentemente positiva.
E assim, sem querer tornar mais útil a escola, ao contribuir para o desenvolvimento mais rico das crianças, a escola passou a colher melhores resultados desde que começamos a fazer poesia e poetas por lá.
Onete Lopes Ferreira possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Ceará (1992), mestrado em Educação pela Universidade Federal do Ceará (1995) e doutorado em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (2001). Atualmente é professora Associada II da Universidade Federal Fluminense. Tem experiência na área de Direito, Serviço Social e atua na de Educação, com disciplinas de História da Educação, área de Trabalho e Educação e tem projetos nas áreas de Educação Infantil, com os seguintes temas: música, literatura e poesia.
(Informações coletadas no Lattes em 16 de maio de 2022).
*ADUR ONLINE é um espaço aberto aos docentes e pesquisadores da UFRRJ e de outras Universidades também. As opiniões expressas no texto não necessariamente representam a opinião da Diretoria da ADUR-RJ.
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