(21) 2682-1379 Fale Conosco
[wpdreams_ajaxsearchlite]

ADUR ONLINE #31: O feminismo nos tempos do cólera

ADUR Online

12 de março de 2021

Por Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna 

 

No atual governo brasileiro há duas ministras mulheres.  Uma escala goiabeiras em busca de contato com o divino; a outra derruba goiabeiras (e palmeiras, seringueiras, etc) para implantar a cadeia exportadora da soja. Mas ambas batem continência para o mau militar que habita o Planalto, embora o façam por motivos diferentes. A visionária comunga com seu chefe terreno – que o rebanho antivacina chama de mito – a fobia pelo que rotulam de “ideologia de gênero” (seja lá o que isso signifique), bem como por qualquer atitude que não se enquadre no modelito século XIX da moral e dos bons costumes. Quanto à segunda ministra mencionada, é válido supor que disponha de menos tempo para se preocupar com a cor das roupas de meninos e meninas. Afinal, suas funções frequentemente a obrigam a vestir azul e desembainhar a espada para enfrentar chineses no comércio internacional de commodities – e para, claro, assegurar benesses para os ruralistas. 

São apenas duas as ministras mulheres no Executivo federal. Houvesse mulheres generais possivelmente esse número aumentaria. De todo modo, as duas ministras representam bem duas facetas aparentemente contraditórias do fenômeno Bolsonaro. Por um lado, o conservadorismo retrógrado, falsamente moralista, que, traduzido na negação de conquistas fundamentais da ciência moderna propõe, em se tratando da condição feminina, barrar avanços importantes, como o entendimento do aborto sob a ótica da saúde pública.  De outro, a imagem da modernidade tecnológica, que, ostentando competitividade numa área em que o Brasil consegue algum aplauso do mercado, ilude incautos liberais. Agro é tech, agro é pop.

A contradição estaria na coexistência de estratégias opostas, na aparência: o retrocesso e a inovação. O retrocesso, além de machista e desrespeitoso, é profundamente autoritário, e torce o nariz diante de todo aceno à diversidade. Inovação, por sua vez, equivale justamente a diversificar – na produção, na gestão, na reflexão – e, portanto, a aceitar e tolerar as diferenças. Não que reste qualquer dúvida quanto à compatibilidade entre mercado e autoritarismo. A história revela muitos exemplos. Mas também revela os limites dessa harmoniosa convivência. Quando o retrocesso atrapalha a inovação ele se torna disfuncional. O mercado então cai de pau no tradicionalismo autoritário. 

Não à toa, a grande imprensa brasileira – seus colunistas e especialistas, todos afinados com a agenda liberal de ajuste fiscal, privatizações, encolhimento do Estado, redução de direitos, etc – se esmera no deboche e no espancamento da figura de Bolsonaro.  A rejeição ao atraso comportamental do bolsonarismo se torna uma bandeira da direita.  Uma armadilha para a esquerda? Talvez. Mas armadilhas podem ser desmontadas.

Não é rara, entre as forças progressistas, a opinião de que pautas identitárias, como o feminismo, são ferramentas inócuas contra a exploração a que estão sujeitos trabalhadores e trabalhadoras sob o capitalismo. Por serem aceitáveis até por austericidas convictos, desviariam a militância do combate às efetivas desigualdades estruturais, aquelas que se dão na esfera da produção. 

Recentemente tem vicejado, também entre as forças progressistas, postura contrária. Na esteira das transformações em curso no mundo do trabalho, enfraquecimento dos sindicatos e fragilização dos sistemas de bem-estar social, os “direitos das pessoas” teriam ganho novo protagonismo. Não mais apenas como direitos civis e políticos e sim como escolhas – livres e diversas – em campos muito mais amplos da vida em sociedade. Pautas identitárias, por conseguinte, constituiriam a essência da oposição ao establishment.

Polarizações radicais em geral contribuem pouco para o sucesso de empreitadas políticas. E é justamente no âmbito do feminismo que, suplantando a antinomia, vem surgindo um pensamento que contempla simultaneamente identitarismo e luta de classes. Acadêmicas e militantes, brancas e negras, dentro e fora do Brasil, mulheres procuram jogar fora a água do banho preservando o bebê. Livros, artigos, sites, coletivos, blogs divulgam posicionamentos que desarmam a armadilha do politicamente correto.    

De certo, os ataques feminicidas e ocorrências violentas estampados com frequência nas páginas dos jornais são os que vitimizam principalmente as classes média e alta. A justa indignação nesses casos é comparada por muitos, e não sem razão, à injusta invisibilidade que cobre dezenas de mulheres pobres assassinadas ou violentadas. Entretanto, a denúncia e a cobrança que partem de setores mais elitizados podem abrir caminhos para a indispensável expansão da proteção. Nas camadas mais vulneráveis da população, embora homens e mulheres careçam, por igual, de renda, moradia, transporte, e tudo mais, as mulheres sofrem, ainda por cima, de maus tratos, humilhações e discriminação insuportáveis. O tamanho do abismo que as desigualdades cavam no Brasil  sedimenta o equívoco de que a demanda pela presença mais expressiva de mulheres no Congresso  (ou em postos de relevo) é alheia aos interesses dos oprimidos e aos problemas reais do povo. Não necessariamente. Viva a Lei Maria da Penha!

No contexto corrente, a pandemia tinge com as cores da tragédia as iniquidades que recortam o tecido social brasileiro. E o fetiche reaparece: em princípio, assim como o feminicídio atinge tanto mulheres ricas quanto pobres, o vírus também não seleciona seus alvos. Seriam, pois, “democráticos”. Contudo, assim como  as mulheres pobres têm menos acesso aos meios de defesa contra as várias formas de violência, também aqueles e aquelas que residem em favelas, não possuem planos de saúde e têm que batalhar o pão de cada dia (nas ruas) são os que se deparam com maiores dificuldades para evitar o contágio. Não bastasse, são também os mais afetados pela sádica retórica mimimi de Bolsonaro.

A demagogia bolsonarista segue manipulando 31% da população, segundo pesquisa Datafolha de 25 de janeiro, um nicho que engloba otários e fiéis. Nem otários nem fiéis, porém, os populares que dependem da rua para sobreviver, encontram amparo e justificativa no discurso obtuso e obcecadamente sexista de Bolsonaro: quem não aglomera é maricas, vacina compromete a virilidade e por aí vai. Talvez não seja por acaso que, segundo a mesma pesquisa, o presidente tenha menores índices de avaliação positiva entre as mulheres (26%)  do que entre os homens (37%).

O jogo de cena do capitão se assemelha a um trem descarrilhado. Mas é  enganosa a ideia de que Bolsonaro não tem projeto.  Não tem projeto algum para o Brasil, óbvio. Tem, no entanto, para si e seus filhos (homens). O projeto familiar de permanência em cargos que propiciem recursos (variados) de poder se assenta na máxima do Chacrinha: “eu vim pra confundir…”  A tática do diversionismo – intervém na Petrobrás e anuncia a privatização da Eletrobrás, adula a FIESP e afaga Olavo de Carvalho -, usada com bastante esperteza, pressupõe o caos. E nesse sentido, a desgraça da pandemia veio a calhar. O pandemônio bolsonariano – reunião de agronegócio com evangelismo cristão, mais um duvidoso punitivismo policial e judiciário a que se somam promessas liberais na economia – desarticula oponentes e dissemina insegurança. A crise sanitária é a cereja do bolo. Se Bolsonaro terá competência para dar sequência a seus planos em futuro próximo, sempre na base do ativismo de milícias digitais e presenciais, é uma incógnita.

No momento, derrotar o bolsonarismo – a bandeira das forças progressistas – implica derrotar a pandemia, parceira e amiga do capitão reformado. Derrotar a pandemia, por sua vez, implica reforçar as normas de isolamento social, vacinar em massa a população e garantir o auxílio emergencial  a todos aqueles que não têm alternativa para manter  a si e à família.  E o que tem a ver com isso o feminismo?

Acontece que o coronavírus expôs, de maneira escancarada, a falácia da igualdade de gêneros. Os homens morrem mais de Covid mas as mulheres são mais impactadas pela pandemia no dia a dia. Reportagem publicada no jornal O Globo, domingo, 28 de fevereiro, faz referência a estatísticas internacionais e pesquisas no Brasil que mostram que as mulheres passaram a trabalhar mais, a cuidar de um conjunto maior de pessoas, a desempenhar responsabilidades crescentes e a ver seus rendimentos reduzidos ou mesmo zerados. Episódios de feminicídio e violência doméstica se multiplicaram a partir do início da doença, conforme levantamento feito pelo Forum Brasileiro de Segurança Pública. 

Embora salvando muitos, o heroico sistema público de saúde brasileiro, que há tempos não tem prioridade nos orçamentos governamentais, se acha à beira do colapso. Milhões de pessoas contraíram Covid no país. Milhares morreram. O presidente, todavia, insensível diante do horror, menospreza a dor e destila sua baba misógina: chorar é frescura, coisa de gente fraca, coisa de mulher. Daí que o feminismo não pode ser – e não é – somente um lugar de fala.  É uma trincheira na guerra política contra a peste e seu promoter.

 

Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna é professora aposentada da UFRJ e ex-presidente da ADUFRJ.

*ADUR ONLINE é um espaço aberto aos docentes e pesquisadores da UFRRJ e de outras Universidades também. As opiniões expressas no texto não necessariamente representam a opinião da Diretoria da ADUR-RJ.


Mais Notícias Adur/Andes/Educação

Confira o resultado da eleição do Conselho de Representantes da ADUR

Postado em 01/11/2024

Aconteceu nesta semana o processo eleitoral do Conselho de Representantes da ADUR. Nos dias 29 e 30, os docentes escolheram leia mais


Governo Federal cria Grupo de Trabalho para implementar Acordo de Greve

Postado em 25/10/2024

Na última quarta-feira, 23 de outubro, aconteceu a reunião de instalação do Grupo de Trabalho (GT) do Magistério Federal junto leia mais


Confira as atividades do Comando Local de Greve

Postado em 24/06/2024

Na última semana, o Comando Local de Greve promoveu diversas atividades de mobilização para a comunidade acadêmica. Confira os detalhes leia mais


ADUR presente no Ato Unificado da Educação no Rio

Postado em 29/05/2024

Centenas de estudantes, professores e técnicos administrativos se reuniram no Largo do Machado, na útima terça-feira, 28 de maio, para leia mais


ADUR participa do Consu e informa a categoria sobre negociação com o governo e sobre contraproposta do ANDES

Postado em 06/05/2024

No dia 30 de abril, a ADUR participou da Reunião do Conselho Universitário (Consu) da UFRRJ, representada pela diretora Elisa leia mais


Sindicatos e governo assinam acordo de reajuste dos benefícios dos servidores

Postado em 30/04/2024

Entidades sindicais do serviço público federal e o Ministério da Gestão e Inovação (MGI) assinaram na quinta-feira (25/04) o acordo leia mais


ADUR participa da reunião do Setor das IFES em Brasília

Postado em 15/04/2024

No dia 10 de abril, quarta-feira, aconteceu em Brasília a Reunião do Setor das Instituições Federais de Ensino do ANDES leia mais


Inauguração da Exposição em Memória dos 60 Anos do Golpe Militar na Baixada Fluminense

Postado em 27/03/2024

A Rede de Educação Popular da Baixada Fluminense, em parceria com o Fórum Grita Baixada, Sepe Nova Iguaçu, Centro Cultura leia mais


Entidades sindicais se reúnem com governo para discutir a reestruturação da carreira docente

Postado em 22/03/2024

Aconteceu no dia 15 de março a terceira reunião da Mesa Específica e Temporária dos docentes do magistério superior para leia mais


8M | Protagonismo feminino no sindicato

Postado em 08/03/2024

Hoje, celebramos o Dia Internacional das Mulheres, uma data emblemática que nos convida a refletir sobre as conquistas femininas ao leia mais


demais notícias