ADUR Online #20: Não será um ato de “vagabundagem” criminosa atentar contra as instituições públicas de ensino brasileiras?
7 de dezembro de 2020
Por Lúcia Ap. Valadares Sartório
A rede de comunicação da Jovem Pan assume desavergonhadamente a tarefa de caluniar os docentes das universidades federais num momento em que a sociedade atravessa uma profunda crise sanitária e o governo federal subordina as políticas públicas à extrema austeridade fiscal pela EC 95/2016, cujo resultado imediato é o arrocho educacional a ponto de inviabilizar o funcionamento das atividades de ensino, pesquisa e extensão.
Nesse contexto, não se pode negligenciar as verdadeiras razões das matérias intituladas “Augusto Nunes: ‘Professores das universidades federais estão exaustos por excesso de vagabundagem’” e “Paulo Figueiredo Filho: ‘Em universidade federal, qualquer coisa é desculpa para não dar aula”, veiculadas no dia 02 dezembro de 2020 através da Newsletter da Jovem Pan, e suas consequências perniciosas à sociedade.
Cabe dispensar atenção à questão realizada no título desse artigo: a quem interessa a difamação das instituições públicas de ensino brasileiras?
A difamação das instituições públicas para surrupiá-las
É preciso rememorar o papel que o programa Amaral Neto – o repórter – exerceu nos anos de 1970, através de um ataque ostensivo às empresas estatais brasileiras, com os falsos chavões de elefante branco a onerar os cofres públicos. Após os meios de comunicação, através de repórteres renomados, convencerem a sociedade que a privatização de empresas estatais estratégicas era o melhor caminho para o país, empresas como a Vale do Rio Doce e Companhia Siderúrgica Nacional foram parar nas mãos de grupos econômicos poderosos sob o Governo FHC nos anos de 1990.
Em 2012 fomos surpreendidos com a matéria da Revista Exame, de 19 de setembro, com a notícia de capa que “A maior empresa privada do país foi à África atrás da mais valiosa mina de ferro inexplorada no mundo, e terminou em uma trama que inclui acusações de corrupção, mortes e risco de prejuízo bilionário”. Essa mesma empresa soterrou no Brasil duas bacias de rios fluviais, tirou centenas de vidas, aniquilou economias regionais, cometendo um crime ambiental e humano sem precedentes. O pesadelo continua com a existência de dezenas de barragens nas mesmas condições espalhadas pelo país.
Recentemente, o estado do Amapá foi atingido pelo apagão da rede elétrica sob a gestão da empresa LMTE, concessionária de transmissão de energia no estado. Que órgão prestou assistência ao comércio, às pequenas empresas, às famílias e suas crianças e idosos? As famílias em melhores condições buscaram refúgio em casas de parentes e amigos de outras regiões. Nenhuma mão sequer da empresa concessionária nem de governos.
Sob a privatização, a sociedade brasileira acompanha a transferência paulatina de serviços e do patrimônio públicos para grandes grupos econômicos que se apropriam dos lucros favorecidos pelo Estado, contudo, sem desembolsarem investimentos em tecnologias, na manutenção de serviços de qualidade se não contarem com os investimentos advindos dos setores públicos.
Insaciáveis, se lançam de sobressaltos a outros ramos do patrimônio público para arrebanhar, não apenas a Eletrobrás, os Correios, a Petrobrás, mas também, dominar de alguma forma, as instituições públicas de ensino.
A ciência e a relevância da universidade pública brasileira
Em dissonância com proliferação das universidades nos países centrais, no Brasil as primeiras faculdades foram instituídas em 1808, mas somente na Era Vargas foram criadas as primeiras universidades, paralelamente ao impulsionamento do processo de industrialização. Nos anos de 1940,o Brasil passou a contar com a criação de dez universidades públicas, no início dos anos de 1960 alcançou o patamar de vinte universidades públicas e em meados dos anos de 1980 chegou a quarenta universidades públicas (ESTHER, 2014).
Nos anos 2000 efetivou-se o processo de expansão das universidades públicas concretizando efetivamente a ampliação da inserção de jovens no ensino superior com a implantação do Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni, 2006/2010). No Censo de 2017 constatou-se a existência de 296 instituições de ensino superior públicas, sendo que, destas
(…) 41,9% são estaduais; 36,8%, federais e 21,3%, municipais. Quase 3/5 das IES federais são universidades e 36,7% são Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) e Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets). Os dados são do Censo da Educação Superior 2017, que teve seus resultados divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) em setembro (INEP/MEC, 2017).
Paralelamente ao Reuni foi travado um amplo debate em torno do estabelecimento de cotas que pudesse assegurar a inserção de estudantes afrodescendentes, indígenas, assim como estudantes provenientes das classes populares com vistas a democratizar o acesso à universidade pública.
A ampliação considerável da oferta de vagas foi acompanhada do aprimoramento da qualidade, na medida em que buscou-se articular a formação técnica, cultural e humanística na execução do tripé ensino, pesquisa e extensão como referência e apoio ao desenvolvimento regional, como também a potencialização das parcerias institucionais à pesquisa em âmbito internacional.
Nesse ínterim o Brasil conseguiu efetivar o seu Sistema Nacional de Ciência, balizado pelos programas de pós-graduação e pesquisa consolidados em boa parte das universidades públicas brasileiras e institutos vinculados ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, além da atuação da Academia Brasileira de Ciência e da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência, integradas pelos docentes dedicados à pesquisa. Nesse intervalo houve aumento considerável da pesquisa científica realizada pelas universidades públicas, incluindo as federais e estaduais, que pode ser constado em estudos a esse respeito:
Brasil tem experimentado um crescimento científico bastante notável e o desenvolvimento do sistema público de ensino superior, sustentado principalmente pelos Programas de Pós-Graduação, desempenha um papel central. Diversas políticas públicas para promover o crescimento, a qualidade e a internacionalização das universidades tiveram um impacto evidente no sistema científico. Propõe-se descrever e analisar de que maneira tais políticas afetaram o crescimento em diferentes áreas temáticas. Considera-se como indicadores de insumos o número de alunos matriculados e professores doutores vinculados a Programas de Pós-Graduação, extraídos do sistema GeoCapes e como saída, as publicações científicas do Brasil indexadas na base de dados internacional Web of Science. Examinou-se o período 2004-2012, com foco do estudo centrando-se no caso das universidades federais brasileiras. Através de indicadores bibliométricos e estatísticos observou-se que os novos critérios de avaliação de professores e universidades têm modificado o perfil da atividade tradicional de disciplinas científicas, o que resulta particularmente evidente em áreas como Ciências Humanas e Sociais (SOUZA, FILIPPO, CASADO, 2018, p. 126).
A partir da análise de cinco medidores de produtividade internacionais Solange Santos constatou que a contribuição brasileira para a produção científica mundial registrou crescimento de 100.34% entre os anos de 2003 e 2012, ultrapassando o crescimento mundial de 40,50%. As áreas que obtiveram maior crescimento foram as de Medicina Clínica, Física, Geociências e Ciências Espaciais. A outra constatação relevante é a de que o desempenho das universidades públicas por área específica é melhor do que o alcançado pelas universidades no ranking geral.
Num artigo específico sobre as universidades estaduais paulistas, Simon Schwartzman afirma que nenhuma instituição norte-americana forma mais doutores do que a USP, exceto se juntarmos todos os campi da University of California:
Nesse estudo, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) ocupa o 8º lugar no que diz respeito à formação de novos pesquisadores nas diferentes áreas das ciências. Isso quer dizer, que trabalha-se muito nas universidades públicas brasileiras, com alto padrão de produtividade, por isso, obviamente, inquieta os países de economia desenvolvida que estabelecem ações imperialistas sobre os países de economia subordinada e desperta o faro de grupos econômicos ávidos por subordinar as universidades aos seus interesses privados, especialmente aqueles que a Jovem Pan presta serviço.
Exatamente pelas suas potencialidades, as universidades públicas vêm enfrentando frequentes ataques, concomitantemente, atravessando um período de fragilidade e incertezas, inclusive pelas debilidades políticas daqueles que estão no topo das decisões do país, cujo projeto de Estado reduz-se a subordinação do Brasil e desmonte dos serviços públicos, sem nenhuma generosidade e responsabilidade com a sociedade brasileira.
A Portaria nº 1.030, de 1º de dezembro de 2020
No dia 1º de dezembro, o Senhor Ministro da Educação Milton Ribeiro veio a público para comunicar a emissão da Portaria n° 1.030, para pautar o retorno das aulas a partir o dia 04 de janeiro de 2021, balizada pelas orientações previstas nos protocolos de biossegurança. Lamentavelmente, abriu a polêmica de que houve fortes reações contrárias, que seria necessário revogar a medida, ainda não consumada.
Esse fato, favoreceu a propagação de avaliações precoces e superficiais sobre o delicado contexto que a sociedade atravessa, como também a veiculação da falsa informação de que os docentes não exercem suas atividades nesse período de isolamento social.
É preciso colocar na balança que os protocolos de segurança estabelecidos são constituídos apenas como orientações preventivas e não medidas seguras para evitar o contágio por Covid 19; se assim fosse, centenas de médicos não teriam perdido a vida nesse contexto pandêmico.
O princípio elementar que deve balizar esse momento é a preservação de vidas humanas, o cuidado necessário para atravessarmos esse período conturbado com o máximo de segurança, obviamente, sem descuidarmos das tarefas elementares de continuidade das nossas atividades no âmbito do ensino, pesquisa, extensão e gestão.
Sem nenhum apoio governamental, pelo contrário, a partir da constatação de que a sociedade se deparava com surto de grandes proporções em âmbito mundial, as universidade articularam-se rapidamente para intervir numa situação sem controle a princípio, tanto para orientação à comunidade interna e externa, como na produção de álcool gel, cartilhas, respiradores, criação de aplicativos para acompanhamento da pandemia nos centros e periferias e outra medidas. Hoje está em curso mais de 800 pesquisas desenvolvidas nas universidades públicas em torno da pandemia provocada pelo coronavírus. Algumas universidades públicas assumiram de imediato a concretização do ensino remoto, outras, prepararam as suas estruturas para a concretização do ensino online, completamente distinto da educação a distância, logo na sequência.
O fato é que as universidades estão vivas e levam adiante a sua rica tarefa de produzir e propagar conhecimento, como polo difusor da ciência, da cultura e da formação profissional de excelência.
Considerações finais
Após os argumentos traçados acima busca-se, então, colocar as questões em seu devido lugar.
O mínimo que se pode esperar do atual ministro da educação Milton Ribeiro é respeito pelos profissionais atuantes nas universidades públicas, a sensatez para conduzir esse processo e assegurar a integridade de profissionais aguerridos, servidores públicos, dos estudantes e suas famílias. Inclusive, poderia argumentar em defesa da interrupção da EC n° 95/2016, medida que vem estrangulando o funcionamento dos serviços públicos e de modo particular, as atividades das universidades públicas.
Os repórteres da Jovem Pan precisam se retratar e passar a atuar com lisura, pois a difamação encontra-se no campo da mentira, portanto, da falta de caráter.
A sociedade precisa dar mais atenção às questões sociais, pois o falso argumento de que os serviços públicos são muito ruins e só se tornam bons quando caem nos braços das empresas privadas atinge diretamente a vida concreta de milhões de brasileiros, a fauna e a flora e resulta na usurpação da riqueza nacional.
A universidade pública é patrimônio da humanidade e possui uma função social da mais alta envergadura. A sua subordinação aos interesses privados de grandes grupos econômicos retira-lhe o sentido da sua existência.
Referências:
Augusto Nunes: ‘Professores das universidades federais estão exaustos por excesso de vagabundagem’. Newsletter Jovem Pan, 02/12/2020. Disponível em: <https://jovempan.com.br/programas/os-pingos-nos-is/augusto-nunes-professores-de-universidade-estao-exaustos-por-excesso-de-vagabundagem.html> Data de acesso: 03/12/2020.
Causas do apagão do Amapá deve ser apontado até o fim do mês, diz Aneel. Agência Câmara de Notícias. 17/11/2020. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/708301-causas-do-apagao-no-amapa-devem-ser-apontadas-ate-o-final-do-mes-diz-aneel/> Data de acesso: 04/12/2020.
Dados do Censo da Educação Superior: As universidades brasileiras representam 8% da rede, mas concentram 53% das matrículas. INEP/MEC. Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/dados-do-censo-da-educacao-superior-as-universidades-brasileiras-representam-8-da-rede-mas-concentram-53-das-matriculas/21206> Data de acesso: 04/12/2020.
ÉSTHER, Angelo Brigato. Uma história da universidade brasileira: tensões, contradições e perspectivas de sua identidade institucional. UFJF – Teoria e Prática em Gestão. 2014. Disponível em: <https://www.ufjf.br/angelo_esther/files/2014/08/Universidade-brasileira-Estado-Novo-Governo-Militar-e-Nova-rep%C3%BAblica.pdf> Data de Acesso: 04/04/2020.
O pesadelo da Vale na África. Revista Exame, São Paulo, Edição 1024, Ano 46, Nº 18, 19/09/2012, pp. 36-45.
Paulo Figueiredo Filho: ‘Em universidade federal, qualquer coisa é desculpa para não dar aula. Newsletter Jovem Pan, 02/12/2020. Disponível em: <https://jovempan.com.br/programas/3-em-1/paulo-figueiredo-em-universidade-federal-qualquer-coisa-e-desculpa-para-nao-dar-aula.html> Data de acesso: 03/12/2020.
SANTOS, Solange Maria dos. O desempenho das universidades brasileiras nos Rankings internacionais – áreas de destaques da produção científica brasileira. Pós-Graduação em Ciência da Informação. Escola de Comunicação e Arte /USP. 2015. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27151/tde-26052015-122043/pt-br.php> Data de Acesso: 04/12/2020.
SOUZA, Cláudia Deniele de; FILIPPO, Daniela de; CASADO, Elias Sans. Crescimento da atividade científica nas universidades federais brasileiras: análise por áreas temáticas. Avaliação, Campinas; Sorocaba, SP, v. 23, n. 1, p. 126-156, mar. 2018. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/aval/v23n1/1982-5765-aval-23-01-00126.pdf> Data de acesso: 04/12/2020.
SCHWARTZMAN, Simon. A universidade primeira do Brasil: entre intelligentsia, padrão internacional e inclusão social. Scielo. Estudos Avançados, vol.20 no.56 São Paulo Jan./Apr. 2006. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/ea/v20n56/28633.pdf> Data de Acesso: 04/12/2020.
*Lúcia Ap. Valadares Sartório é professora do DTPE da UFRRJ e presidente da ADUR-RJ.
ADUR ONLINE é um espaço da base do Sindicato. As opiniões expressas no texto não necessariamente representam a opinião da Diretoria da ADUR-RJ.
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