Por Vladimir Safatle*
A ideia parecia perfeita. Depois de 12 anos de continuidade com
programas importantes de transferência de renda, que levaram 32
milhões de brasileiros à classe média, o Brasil estaria em condições
de mostrar ao mundo sua nova imagem. Seria a consagração do país
diante do cenário internacional.
Mostraríamos um Brasil alegre, orgulhoso de si mesmo, onde
empreiteiras e trabalhadores cantam de mãos dadas o hino nacional e
se veem como sócios em um novo e radiante momento de
desenvolvimento. Publicitários estariam a postos para mobilizar
afetos de superação entre um gole e outro de Coca-Cola. Só sorriso
no ar.
Essa era a verdadeira função da Copa do Mundo: completar a narrativa
política da transformação nacional apelando ao acolhimento do olhar
estrangeiro.
Bem, o problema é que não teve Copa. Houve jogos, um campeão,
estádios em Brasília, Cuiabá e Manaus, mas não houve Copa. Não
apenas porque apareceu uma outra imagem do país: essa da nação que
se estagnou em um ponto no qual o desenvolvimento não consegue se
transformar mais em qualidade efetiva de vida. Ponto no qual
operários são mortos em construção como algo que, nas palavras de
Pelé, "acontece mesmo", quase como uma lei da natureza. Na verdade,
não houve Copa do Mundo porque o povo brasileiro saiu do lugar.
Ele tinha um lugar previamente definido. Sua função era celebrar e
aclamar. Com casas pintadas de verde e amarelo e, como se diz, com
"alegria contagiante", o povo brasileiro deveria abraçar seu novo
lugar no mundo. Mas algo saiu definitivamente do lugar. O enorme
aparato policial-militar montado para impedir que o povo saia da
coreografia da felicidade imposta e a brutalidade governamental
contra grevistas, como vemos mais uma vez em São Paulo, tudo está aí
para não deixar negar. Não, o povo brasileiro não está feliz, pois
se sente como alguém que teve sua paixão usada por outros.
Sinal dos tempos.
No chamado "país do futebol" pela primeira vez uma Copa do Mundo não
trará dividendos políticos, mas mostrará uma população consciente da
tentativa de espoliar seus sonhos. População cuja revolta pode
explodir a qualquer momento, da forma mais inesperada possível,
mesmo que seja governada por pessoas que nada mais tem a oferecer a
não ser a polícia. Algo mudou de maneira profunda, mas os
publicitários, estrategistas e políticos não perceberam. Não há
grande evento que consiga esconder o desencanto de um povo. Por
isso, nada mais honesto do que dizer: não teve Copa. E quem mais
ganhou com isso foi o Brasil.
Publicado originalmente na página eletrônica da Folha de S. Paulo,
em 10/6/2014.
* Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de
Filosofia da Universidade de São Paulo – USP.
Link:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2014/06/1467693-nao-teve-copa.shtml