Há 18 anos: Dia Nacional da
Visibilidade Lésbica marca a luta contra o preconceito |
Em entrevista, a
fisioterapeuta e ativista Karen Lucia Borges Queiro lembra que é no
ambiente doméstico e nas relações íntimas que ocorre boa parte da
violência contra mulheres lésbicas
Hoje, 29 de
agosto, é comemorado o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica. A data,
criada no I Seminário Nacional de Lésbicas (Senale) em 1996, é um
marco temporal importante para lembrar a luta de milhares de
mulheres que têm seus direitos violados pela conjugação de
preconceitos históricos no Brasil.
De acordo com a
fisioterapeuta e ativista Karen Lucia Borges Queiroz, da Associação
Lésbica Feminista Coturno de Vênus, de Brasília, nesta data é
preciso lembrar que, assim como acontece com mulheres héteros, é no
ambiente doméstico e nas relações íntimas que ocorre boa parte da
violência contra mulheres lésbicas.
A Lei Maria da
Penha, porém, ainda é pouco aplicada, sobretudo por conta do
desconhecimento generalizado dessa possibilidade – inclusive pelas
próprias vítimas de violência e pelos profissionais de Segurança e
Justiça.
A associação, em
2006, coordenou por um ano as atividades de um Centro de Referência
no Distrito Federal que recebia denúncias de agressão contra pessoas
LGBT e de mulheres vítimas de violência doméstica, independentemente
da sua prática sexual.
“A Lei Maria da
Penha é uma lei incrível, que oferece todo um apoio específico às
mulheres lésbicas que sofrem violência conjugal ou por membros da
família, mas que ainda é pouco aplicada”, frisa a ativista.
“As relações
entre mulheres, infelizmente, ainda reproduzem, muitas vezes, um
modelo heterossexual em que há um homem que domina e uma mulher que
é dominada. Também dentro de casa há toda uma opressão, um controle
dos pais e familiares em cima da sexualidade da filha. Se essa
mulher for adolescente e depender financeiramente, é ainda pior”,
complementa.
Confira a
entrevista:
Agência Patrícia
Galvão - Que demandas na agenda das mulheres lésbicas precisam de
mais visibilidade atualmente no Brasil?
Karen Lucia
Borges Queiroz - Particularmente, considero que uma das principais
demandas é dar visibilidade às legislações já existentes. Por
exemplo, a Lei Maria da Penha é uma lei incrível, que oferece todo
um apoio específico às mulheres lésbicas que sofrem violência
conjugal ou por membros da família, mas que ainda é pouco aplicada
nesses casos.
Na Coturno de
Vênus fizemos uma pesquisa há dois anos que revelou que a maioria
das pessoas, inclusive as mulheres lésbicas, não sabiam que a Lei
Maria da Penha tinha essa abrangência e que podia ser usada para
casos de violência sofrida dentro de casa. Então, uma questão
fundamental é dar visibilidade às legislações hoje vigentes.
Outra questão é a
educação; é preciso mudar esse modelo de educação heteronormativa,
baseada em uma heterossexualidade compulsória. Quanto antes
trabalharmos com crianças e adolescentes questões como a ruptura de
preconceitos e dessa norma tão violenta e já mostrarmos a
homossexualidade feminina como algo natural e normal, mais avanços
vamos conseguir.
Há também a
questão da saúde. A realidade da saúde ainda não mudou, mas houve
mudança na compreensão de certos governantes sobre o tema, e o
próprio Ministério Saúde está tendo uma preocupação maior sobre a
demanda de prevenção de sexo seguro entre mulheres lésbicas. Acho
que um grande desafio no horizonte é transformar isso em uma
realidade prática nos atendimentos cotidianos dessa população.
No caso da Lei
Maria da Penha, como a violência doméstica e familiar atinge o
direito das lésbicas a uma vida livre de violência?
Tanto as relações
entre lésbicas quanto as intrafamiliares são baseadas em modelos de
poder, em uma estrutura hierárquica. As relações entre mulheres,
infelizmente, ainda reproduzem, muitas vezes, um modelo
heterossexual em que há um homem que domina e uma mulher que é
dominada. Mesmo em uma relação entre mulheres, em que não deveria
existir essa hierarquização, esses papéis sociais existem.
Também dentro de
casa há toda uma opressão, um controle dos pais e familiares em cima
da sexualidade da filha. Se essa mulher for adolescente e depender
financeiramente, é ainda pior.
Nesse sentido,
acontecem muitos casos de violência psicológica?
Com certeza. O
simples fato de o pai ou a mãe privar aquela criança ou adolescente
de sair, usando como justificativa a homossexualidade, é uma forma
de violência psicológica, conforme aponta a Lei Maria da Penha, que
pode até chegar a uma situação de cárcere privado.
E esta é uma
realidade muito presente na vida das adolescentes e, às vezes, até
de mulheres lésbicas adultas. Não é só a violência física, mas as
brigas, confiscar celular, não permitir que a filha saia da casa -
tudo isso é violência doméstica contra a mulher, sob a forma de uma
violência psicológica muito grande.
Essa aplicação
inclui as mulheres transexuais?
Sim. A Lei Maria
da Penha tem a abordagem de uma ação afirmativa de equidade de
gênero e de apoio a essa classe mais submissa nos parâmetros da
sociedade. Uma mulher trans, que tem sua vivência como mulher,
certamente é estigmatizada e colocada dentro dos padrões do que é
ser mulher – sem falar de outros preconceitos.
Que barreiras as
mulheres lésbicas sofrem para ter acesso à Justiça?
Há um
desconhecimento muito grande sobre a aplicação da Lei para as
mulheres lésbicas e os profissionais que trabalham nos equipamentos
específicos de violência contra as mulheres, muitas vezes, não têm
sensibilidade para tratar dos casos dentro da Lei Maria da Penha.
Quando estávamos
atuando no Centro de Referência, em 2006, recebíamos muitos casos de
violência e encaminhávamos para os órgãos responsáveis. Na maior
parte das vezes, os atendentes desses órgãos tinham uma grande
dificuldade em aplicar a Lei Maria da Penha. Acabavam caracterizando
como outra coisa, como intriga entre família, por exemplo, e nós
tínhamos que acompanhar essa mulher novamente à Delegacia da Mulher
para conseguir dar continuidade à denúncia sob a Lei Maria da Penha.
E isso ainda
existe, sabemos de casos em que se tenta aplicar a Lei e há uma
grande resistência dos profissionais em fazer o boletim de
ocorrência.
Como isso pode
mudar?
Minimamente, é
preciso haver uma capacitação específica com o recorte da
homossexualidade feminina. Muitas vezes se reproduz o mito de que a
Lei Maria da Penha só serve para mulheres hétero e está vinculada a
brigas de âmbito conjugal. Mesmo nas divulgações dos órgãos
públicos, se dá pouquíssima visibilidade para a aplicação da Lei na
defesa das mulheres lésbicas.
Então, apesar de
uma parte da Lei falar explicitamente em orientação sexual - o que
foi um avanço incrível e que faz toda a diferença na vida dessas
mulheres - acho que o governo falha, talvez até por medo, em dar
visibilidade a isso, porque imagina a demanda que vai existir se
todas as lésbicas que se sentem acuadas e violentadas dentro de casa
exigirem seus direitos.
Hoje em dia, é
possível mensurar se as mulheres lésbicas sofrem mais violência em
casa ou nas ruas?
A violência
acontece tanto na rua quanto em casa. Podemos pensar que, dentro de
casa, a mulher acaba sofrendo mais porque é uma violência frequente
e cotidiana, diferente da rua, onde nem sempre as lésbicas estão
empoderadas para andar de mãos dadas, dar um beijo, ficar à vontade
mesmo.
Então, de certa
forma, dentro de casa a violência está mais presente no dia a dia,
mas é banalizada, naturalizada. Muitas vezes, as próprias mulheres
não veem como violência a situação que estão enfrentando por serem
acostumadas a viver em um ambiente de submissão. E, nesse contexto,
a Lei Maria da Penha é um instrumento poderoso que precisa ser
divulgado.
Então, o governo
precisa dar mais visibilidade, fazer campanhas, propagandas no rádio
e televisão, para explicar que a Lei Maria da Penha se aplica no
caso da violência contra as mulheres lésbicas, entre casais e por
outros membros da família dentro de casa.
Fonte: Brasil de
Fato, 29/8/14.