O significado e
as perspectivas das mobilizações de rua
É hora do governo
aliar-se ao povo ou pagará a fatura no futuro. Essa é uma das
avaliações de João Pedro Stedile, da coordenação nacional do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) sobre as recentes
mobilizações em todo o país. Segundo ele, há uma crise urbana
instalada nas cidades brasileiras, provocada por essa etapa do
capitalismo financeiro. “As pessoas estão vivendo um inferno nas
grandes cidades, perdendo três, quatro horas por dia no trânsito,
quando poderiam estar com a família, estudando ou tendo atividades
culturais”, afirma. Para o dirigente do MST, a redução da tarifa
interessava muito a todo o povo e esse foi o acerto do Movimento
Passe livre, que soube convocar mobilizações em nome dos interesses
do povo.
Nesta entrevista
exclusiva ao Brasil de Fato, Stedile fala sobre o caráter dessas
mobilizações, e faz um chamamento: devemos ter consciência da
natureza dessas manifestações e irmos todos para a rua disputar
corações e mentes para politizar essa juventude que não tem
experiência da luta de classes. “A juventude está de saco cheio
dessa forma de fazer política burguesa, mercantil”, constata. E faz
uma alerta: o mais grave foi que os partidos da esquerda
institucional, todos eles, se moldaram a esses métodos. Envelheceram
e se burocratizaram. As forças populares e os partidos de esquerda
precisam colocar todas as suas energias para ir para a rua, pois
está ocorrendo, em cada cidade, em cada manifestação, uma disputa
ideológica permanente da luta dos interesses de classes. “Precisamos
explicar para o povo quem são os principais inimigos do povo”.
Brasil de Fato –
Como você analisa as recentes manifestações que vêm sacudindo o
Brasil nas últimas semanas? Qual é a base econômica para elas terem
acontecido?
João Pedro
Stedile – Há muitas avaliações sobre por que estão ocorrendo estas
manifestações. Me somo à análise da professora Ermínia Maricato, que
é nossa maior especialista em temas urbanos e já atuou no Ministério
das Cidades na gestão Olívio Dutra. Ela defende a tese de que há uma
crise urbana instalada nas cidades brasileiras, provocada por essa
etapa do capitalismo financeiro. Houve uma enorme especulação
imobiliária que elevou os preços dos aluguéis e dos terrenos em 150%
nos últimos três anos. O capital financiou – sem nenhum controle
governamental – a venda de automóveis para enviar dinheiro para o
exterior e transformou nosso trânsito um caos. E, nos últimos dez
anos, não houve investimento em transporte público. O programa
habitacional Minha casa, minha vida empurrou os pobres para as
periferias, sem condições de infraestrutura. Tudo isso gerou uma
crise estrutural, em que as pessoas estão vivendo um inferno nas
grandes cidades, perdendo três, quatro horas por dia no trânsito,
quando poderiam estar com a família, estudando ou tendo atividades
culturais. Somado a isso, a péssima qualidade dos serviços públicos,
em especial na saúde e mesmo na educação, desde a escola
fundamental, ensino médio, em que os estudantes saem sem saber fazer
uma redação. E o ensino superior virou loja de vendas de diplomas a
prestações, onde estão 70% dos estudantes universitários.
Do ponto de vista
político, por que isso aconteceu?
Os 15 anos de
neoliberalismo e mais os últimos dez anos de um governo de
composição de classes transformou a forma de fazer política em refém
apenas dos interesses do capital. Os partidos ficaram velhos em suas
práticas e se transformaram em meras siglas que aglutinam, em sua
maioria, oportunistas para ascender a cargos públicos ou disputar
recursos públicos para seus interesses. Toda a juventude nascida
depois das Diretas Já não teve oportunidade de participar da
política. Hoje, para disputar qualquer cargo, por exemplo, o de
vereador, o sujeito precisa ter mais de um milhão de reais. O de
deputado custa ao redor de dez milhões de reais. Os capitalistas
pagam e depois os políticos os obedecem. A juventude está de saco
cheio dessa forma de fazer política burguesa, mercantil. Mas o mais
grave foi que os partidos da esquerda institucional, todos eles, se
moldaram a esses métodos. Envelheceram e se burocratizaram. E,
portanto, gerou na juventude uma ojeriza à forma dos partidos
atuarem. E eles têm razão. A juventude não é apolítica, ao
contrário, tanto é que levou a política para as ruas, mesmo sem ter
consciência do seu significado. Mas está dizendo que não aguenta
mais assistir na televisão essas práticas políticas que sequestraram
o voto das pessoas, baseadas na mentira e na manipulação. E os
partidos de esquerda precisam reapreender que seu papel é organizar
a luta social e politizar a classe trabalhadora. Senão cairão na
vala comum da história.
E por que as
manifestações eclodiram somente agora?
Provavelmente
tenha sido mais pela soma de diversos fatores de caráter da
psicologia de massas, do que por alguma decisão política planejada.
Somou-se todo o clima que comentei, mais as denúncias de
superfaturamento das obras dos estádios, que é são um acinte ao
povo. Vejam alguns episódios. A Rede Globo recebeu do governo do
estado do Rio de Janeiro e da prefeitura R$ 20 milhões do dinheiro
público para organizar o showzinho de apenas duas horas do sorteio
dos jogos da Copa das Confederações. O estádio de Brasília custou R$
1,4 bilhão e não tem ônibus na cidade! A ditadura explícita e as
maracutaias que a Fifa/CBF impuseram e que os governos se
submeteram. A reinauguração do Maracanã foi um tapa no povo
brasileiro. As fotos eram claras, no maior templo do futebol mundial
não havia nenhum negro ou mestiço! E aí o aumento das tarifas de
ônibus foi apenas a faísca para acender o sentimento generalizado de
revolta, de indignação. A gasolina para a faísca veio do governo
tucano Geraldo Alckmin, que protegido pela mídia paulista que ele
financia, e acostumado a bater no povo impunemente – como fez no
Pinheirinho e em outros despejos rurais e urbanos – jogou sua
polícia para a barbárie. Aí todo mundo reagiu. Ainda bem que a
juventude acordou. E nisso houve o mérito do Movimento Passe Livre,
que soube capitalizar essa insatisfação popular e organizou os
protestos na hora certa.
Por que a classe
trabalhadora ainda não foi à rua?
É verdade, a
classe trabalhadora ainda não foi para a rua. Quem está na rua são
os filhos da classe média, da classe media baixa, e também alguns
jovens do que o Andre Singer chamaria de subproletariado, que
estudam e trabalham no setor de serviços, que melhoraram as
condições de consumo, mas querem ser ouvidos. Esses últimos
apareceram mais em outras capitais e nas periferias. A redução da
tarifa interessava muito a todo o povo e esse foi o acerto do
Movimento Passe livre, soube convocar mobilizações em nome dos
interesses do povo. E o povo apoiou as manifestações. Isso está
expresso nos índices de popularidade dos jovens, sobretudo quando
foram reprimidos. A classe trabalhadora demora a se mover, mas
quando se move afeta diretamente o capital. Coisa que ainda não
começou acontecer. Acho que as organizações que fazem a mediação com
a classe trabalhadora ainda não compreenderam o momento e estão um
pouco tímidas. Mas a classe, como classe, acho que está disposta a
também lutar. Veja que o número de greves por melhorias salariais já
recuperou os padrões da década de 1980. Acho que é apenas uma
questão de tempo, é só as mediações acertarem nas bandeiras que
possam motivar a classe a se mexer. Nos últimos dias já se percebe
que em algumas cidades menores e nas periferias das grandes cidades
já começam a ter manifestações com bandeiras de reivindicações bem
localizadas. E isso é muito importante.
Vocês do MST e
dos camponeses também não se mexeram ainda...
É verdade. Nas
capitais onde temos assentamentos e agricultores familiares mais
próximos já estamos participando. Inclusive, sou testemunha de que
fomos muito bem recebidos com nossa bandeira vermelha e com nossa
reivindicação de reforma agrária, alimentos saudáveis e baratos para
todo o povo. Acho que nas próximas semanas poderá haver uma adesão
maior, inclusive realizando manifestações dos camponeses nas
rodovias e municípios do interior. Na nossa militância está todo
mundo doido para entrar na briga e se mobilizar. Espero que também
se mexam logo.
Na sua opinião,
qual é a origem da violência que tem acontecido em algumas
manifestações?
Primeiro vamos
relativizar. A burguesia, através de suas televisões, tem usado a
tática de assustar o povo colocando apenas a propaganda dos
baderneiros e quebra-quebra. São minoritários e insignificantes
diante das milhares de pessoas que se mobilizaram. Para a direita,
interessa colocar no imaginário da população que isso é apenas
bagunça e no final, se tiver caos, colocar a culpa no governo e
exigir a presença das Forças Armadas. Espero que o governo não
cometa essa besteira de chamar a guarda nacional e as Forças Armadas
para reprimir as manifestações. É tudo o que a direita sonha! Quem
está provocando as cenas de violência é a forma de intervenção da
Policia Militar. A PM foi preparada desde a ditadura militar para
tratar o povo sempre como inimigo. E nos estados governados pelos
tucanos (SP, RJ e MG), ainda tem a promessa de impunidade. Há grupos
direitistas organizados com orientação de fazer provocações e
saques. Em são Paulo, atuaram grupos fascistas e leões de chácaras
contratados. No Rio de Janeiro, atuaram as milícias organizadas que
protegem seus políticos conservadores. E claro, há também um
substrato de lumpesinato que aparece em qualquer mobilização
popular, seja nos estádios, carnaval, até em festa de igreja,
tentando tirar seus proveitos.
Há, então, uma
luta de classes nas ruas ou é apenas a juventude manifestando sua
indignação?
É claro que há
uma luta de classes na rua. Embora ainda concentrada na disputa
ideológica. E o que é mais grave, a própria juventude mobilizada,
por sua origem de classe, não tem consciência de que está
participando de uma luta ideológica. Eles estão fazendo política da
melhor forma possível, nas ruas. E aí escrevem nos cartazes: somos
contra os partidos e a política? Por isso têm sido tão difusas as
mensagens nos cartazes. Está ocorrendo, em cada cidade, em cada
manifestação, uma disputa ideológica permanente da luta dos
interesses de classes. Os jovens estão sendo disputados pelas ideias
da direita e pela esquerda. Pelos capitalistas e pela classe
trabalhadora. Por outro lado, são evidentes os sinais da direita
muito bem articulada e de seus serviços de inteligência, que usam a
internet, se escondem atrás das máscaras e procuram criar ondas de
boatos e opiniões pela internet. De repente, uma mensagem estranha
alcança milhares de mensagens. E aí se passa a difundir o resultado
como se ela fosse a expressão da maioria. Esses mecanismos de
manipulação foram usados pela CIA e pelo Departamento de Estado
Estadunidense, na Primavera Árabe, na tentativa de desestabilização
da Venezuela, na guerra da Síria. É claro que eles estão operando
aqui também para alcançar os seus objetivos.
E quais são os
objetivos da direita e suas propostas?
A classe
dominante, os capitalistas, os interesses do império Estadunidense e
seus porta-vozes ideológicos, que aparecem na televisão todos os
dias, têm um grande objetivo: desgastar ao máximo o governo Dilma,
enfraquecer as formas organizativas da classe trabalhadora, derrotar
quaisquer propostas de mudanças estruturais na sociedade brasileira
e ganhar as eleições de 2014, para recompor uma hegemonia total no
comando do Estado brasileiro, que agora está em disputa. Para
alcançar esses objetivos, eles estão ainda tateando, alternando suas
táticas. Às vezes, provocam a violência para desfocar os objetivos
dos jovens.
Às vezes, colocam
nos cartazes dos jovens a sua mensagem. Por exemplo, a manifestação
do sábado (22), embora pequena, em São Paulo, foi totalmente
manipulada por setores direitistas que pautaram apenas a luta contra
a PEC 37, com cartazes estranhamente iguais e palavras de ordem
iguais. Certamente, a maioria dos jovens nem sabem do que se trata.
E é um tema secundário para o povo, mas a direita está tentando
levantar as bandeiras da moralidade, como fez a UDN em tempos
passados. Isso que já estão fazendo no Congresso, logo, logo vão
levar às ruas. Tenho visto nas redes sociais controladas pela
direita, que suas bandeiras, além da PEC 37 são: saída do Renan do
Senado; CPI e transparência dos gastos da Copa; declarar a corrupção
crime hediondo e fim do foro especial para os políticos. Já os
grupos mais fascistas ensaiam Fora Dilma e abaixo-assinados pelo
impeachment. Felizmente, essas bandeiras não têm nada a ver com as
condições de vida das massas, ainda que elas possam ser manipuladas
pela mídia. E, objetivamente podem ser um tiro no pé. Afinal, é a
burguesia brasileira, seus empresários e políticos que são os
maiores corruptos e corruptores. Quem se apropriou dos gastos
exagerados da copa? A Rede Globo e as empreiteiras!
Nesse cenário,
quais os desafios que estão colocados para a classe trabalhadora e
as organizações populares e partidos de esquerda?
Os desafios são
muitos. Primeiro devemos ter consciência da natureza dessas
manifestações e irmos todos para a rua disputar corações e mentes
para politizar essa juventude que não tem experiência na luta de
classes. Segundo, a classe trabalhadora precisa se mover, ir para a
rua, manifestar-se nas fábricas, campos e construções, como diria
Geraldo Vandré. Levantar suas demandas para resolver os problemas
concretos da classe, do ponto de vista econômico e político.
Terceiro, precisamos explicar para o povo quem são os principais
inimigos do povo. E agora são os bancos, as empresas transnacionais
que tomaram conta de nossa economia, os latifundiários do
agronegócio e os especuladores. Precisamos tomar a iniciativa de
pautar o debate na sociedade e exigir a aprovação do projeto de
redução da jornada de trabalho para 40 horas; exigir que a
prioridade de investimentos públicos seja em saúde, educação,
reforma agrária. Mas para isso, o governo precisa cortar juros e
deslocar os recursos do superávit primário, aqueles R$ 200 bilhões
que todo ano vão para apenas 20 mil ricos, rentistas, credores de
uma dívida interna que nunca fizemos, deslocar para investimentos
produtivos e sociais. É isso que a luta de classes coloca para o
governo Dilma: os recursos públicos irão para a burguesia rentista
ou para resolver os problemas do povo? Aprovar em regime de urgência
para que vigore nas próximas eleições uma reforma política de
fôlego, que, no mínimo institua o financiamento publico exclusivo da
campanha. Direito a revogação de mandatos e plebiscitos populares
autoconvocados. Precisamos de uma reforma tributaria que volte a
cobrar ICMS das exportações primárias e penalize a riqueza dos
ricos, e amenize os impostos dos pobres, que são os que mais pagam.
Precisamos que o governo suspenda os leilões do petróleo e todas as
concessões privatizantes de minérios e outras áreas publicas. De
nada adianta aplicar todo os royalties do petróleo em educação, se
os royalties representarão apenas 8% da renda petroleira, e os 92%
irão para as empresas transnacionais que vão ficar com o petróleo
nos leilões! Uma reforma urbana estrutural, que volte a priorizar o
transporte público, de qualidade e com tarifa zero. Já está provado
que não é caro, e nem difícil instituir transporte gratuito para as
massas das capitais. E controlar a especulação imobiliária. E,
finalmente, precisamos aproveitar e aprovar o projeto da Conferência
Nacional de Comunicação, amplamente representativa, de
democratização dos meios de comunicação. Assim, acabar com o
monopólio da Globo, para que o povo e suas organizações populares
tenham amplo acesso a se comunicar, criar seus próprios meios de
comunicação, com recursos públicos. Ouvi de diversos movimentos da
juventude que estão articulando as marchas que talvez essa seja a
única bandeira que unifica a todos: abaixo o monopólio da Globo!
Mas, para que essas bandeiras tenham ressonância na sociedade e
pressionem o governo e os políticos, é imprescindível a classe
trabalhadora se mover.
O que o governo
deveria fazer agora?
Espero que o
governo tenha a sensibilidade e a inteligência de aproveitar esse
apoio, esse clamor que vem das ruas, que é apenas uma síntese de uma
consciência difusa na sociedade, que é hora de mudar. E mudar a
favor do povo. Para isso o governo precisa enfrentar a classe
dominante, em todos os aspectos. Enfrentar a burguesia rentista,
deslocando os pagamentos de juros para investimentos em áreas que
resolvam os problemas do povo. Promover logo as reformas políticas,
tributárias. Encaminhar a aprovação do projeto de democratização dos
meios de comunicação. Criar mecanismos para investimento pesados em
transporte público, que encaminhem para a tarifa zero. Acelerar a
reforma agrária e um plano de produção de alimentos sadios para o
mercado interno. Garantir logo a aplicação de 10% do PIB em recursos
públicos para a educação em todos os níveis, desde as cirandas
infantis nas grandes cidades, ensino fundamental de qualidade até a
universalização do acesso dos jovens a universidade pública. Sem
isso, haverá uma decepção e o governo entregará para a direita a
iniciativa das bandeiras, que levarão a novas manifestações, visando
desgastar o governo até as eleições de 2014. É hora do governo
aliar-se ao povo ou pagará a fatura no futuro.
E que
perspectivas essas mobilizações podem levar para o país nos próximos
meses?
Tudo ainda é uma
incógnita, porque os jovens e as massas estão em disputa. Por isso
que as forças populares e os partidos de esquerda precisam colocar
todas suas energias, para ir para a rua. Manifestar-se, colocar as
bandeiras de luta de reformas que interessam ao povo. Porque a
direita vai fazer a mesma coisa e colocar as suas bandeiras
conservadoras, atrasadas, de criminalização e estigmatização das
ideias de mudanças sociais. Estamos em plena batalha ideológica, que
ninguém sabe ainda qual será o resultado. Em cada cidade, em cada
manifestação, precisamos disputar corações e mentes. E quem ficar de
fora, ficará de fora da historia.
Fonte: Brasil de Fato, Nilton Viana, 25/6/13.