O que é rural e o
que é urbano no Brasil?
Pesquisadores
acreditam que população rural brasileira seja pelo menos o dobro da
estimada pelo IBGE; raiz do problema está em decreto do governo
Vargas , que define o que é urbano no país
É uma figura pouco
usual para definir uma questão de ordem no Brasil: o que é rural e o
que é urbano? Um grupo coordenado pela professora Tânia Bacelar
(UFPE) e mais 15 pesquisadores pretende destravar esse nó, num
projeto financiado pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário.
O IBGE aponta a
população rural brasileira com 15,64%, quase 30 milhões de
habitantes, segundo o censo de 2010. Os pesquisadores como Tânia
Bacelar acham que pode ser o dobro.
Na raiz do problema
um decreto de 1938, governo Getúlio Vargas, que define como urbano o
perímetro definido pelos prefeitos locais. No Brasil cerca de 4 mil
cidades têm até 20 mil habitantes. Somos 84,36% de brasileiros
urbanos, ou há algo errado nessa história?
O país conta com
5.505 municípios com seus distritos e vilas. O Brasil é o país com o
maior número de cidades do mundo. Lembro quando costumava viajar
pela Belém-Brasília, em direção ao Tocantins, e passava pelos
limites urbanos de municípios localizados nos confins da pátria.
A imagem era
repetida: uma igreja pequena, uma delegacia e o prédio da
prefeitura. Fácil de entender no estado, que na época, a família no
poder comandava a administração pública como se fosse uma capitania
hereditária. Cada município tem direito ao fundo de participação e
de muitas verbas federais. Então, quanto mais, maior a verba.
Empregos
desapareceram
Nas décadas de 1960,
1970 e 1980 o Brasil teve um enorme fluxo de migrantes, na maior
parte em direção ao sudeste. Foram 27 milhões de pessoas que
migraram do rural para o urbano.
Os motivos são
variados, desde a modernização e industrialização do país, a
situação econômica, com falta de empregos na zona rural, o avanço da
agricultura mecanizada e da monocultura e os atrativos culturais das
metrópoles. Na década de 1990, mais para o final, o fluxo
interrompeu e começou a decair.
Ou seja, começou a
crescer a população de centenas de municípios considerados rurais, e
também começou a inverter o fluxo de migrantes, deixando as
metrópoles do sudeste e voltando ao estado de origem.
É preciso entender
que entre 1985 e 2006 cerca de 7 milhões de empregos desapareceram
na zona rural. A queda, arredondada, foi de 23 milhões para 16
milhões de empregos. Também no mesmo período as propriedades com até
10 hectares, que são maioria no Brasil, perderam cerca de 2 milhões
de hectares.
E os donos foram
expulsos para o urbano. Mesmo assim elas envolvem um número acima de
4 milhões de unidades e, além de garantir 70% dos alimentos
consumidos pelos brasileiros, ainda ocupam milhões de pessoas.
Acabar com o modelo
Portanto, a
discussão sobre rural ou urbano não é uma questão teórica. Porque
por trás disso tem o agronegócio e a agricultura industrial movida
pela química, e do outro lado, a agroecologia e a agricultura
familiar, que muito mais do que um modo de produção é um modo de
vida, de convívio social e um modelo cultural, que ajuda a manter o
pouco que resta de ambiente natural em algumas áreas do Brasil,
principalmente na região sul.
A Universidade de
Essex, na Inglaterra, diz que existem cerca de 1,4 milhão de
agricultores que seguem os princípios da agroecologia no mundo, os
pesquisadores dessa instituição acompanham mais de 200 projetos,
corresponde a 30 milhões de hectares.
Eles não têm dúvida
de dizer que o problema do êxodo rural está no avanço do
agronegócio, que desestimula a produção da agricultura familiar e
implica na perda da cultura camponesa e dos povos das comunidades
tradicionais. No mundo cerca de 1,8 bilhão de pessoas habitam
florestas e matas, regiões áridas, encostas íngremes ou terras
inadequadas para produção de alimentos.
O ponto central é
esse: a quem interessa acabar com a agricultura familiar e
camponesa? Se depender das estatísticas, como diz o economista
Ignacy Sachs, o Brasil em poucas décadas se tornaria totalmente
urbano. Uma discussão que também foi levantada desde a década
passada pelo pesquisador José Eli da Veiga.
O plano de realizar
esse delírio deve ser dos capitalistas de Wall Street e os clones
brasileiros com base na experiência estadunidense – aponta a
população rural agrícola em apenas 1%. O problema é que o índice da
população não-agrícola, ou seja, mora na zona rural, mas vive da
economia urbana, se mantém em 20%.
Uma das discussões
que os pesquisadores do projeto bancado pelo MDA deverão definir.
Afinal os setores de serviço e industrial das cidades do interior
fazem parte do rural. Segundo Tânia Bacelar, a ideia é definir as
cidades em faixas demográficas, geográficas e diferenciar nos seis
biomas brasileiros definidos – Amazônia, Pantanal, Pampa, Caatinga,
Mata Atlântica, Cerrado.
No campo os homens e
os velhos
Porém, existem
outras perspectivas desse mesmo problema. A população brasileira
está envelhecendo rapidamente. Em 2025, o Brasil será o sexto país
com maior número de idosos na faixa dos 60 anos – serão cerca de 32
milhões. Uma parte deles vive no campo.
A migração, que
começou a cair no final da década de 1990, tornou-se seletiva. As
mulheres mais jovens são maioria, na verdade, desde a década de 1980
os demógrafos já registraram este aumento. No caso do Rio Grande do
Sul migraram 22% mais de mulheres do que de homens. Porto Alegre é a
capital que, desde a década de 1950, conta com maior número de
mulheres em relação aos homens.
Dois pesquisadores,
José Carlos Froehlich e Cassiane da Costa Rauber, do curso de
pós-graduação em extensão rural da Universidade de Santa Maria
fizeram um trabalho sobre o êxodo seletivo na região central do
estado, envolve 28 municípios.
Na faixa dos 25 aos
59 anos, 25 municípios apresentaram predomínio de populações
masculinas, evidenciando um processo de masculinização acentuado:
“O êxodo seletivo
intenso ocorre há mais de uma década e se desenha como tendência
futura. A masculinização que se desenvolve silenciosamente pode
comprometer o tecido social dos territórios rurais, tão importante
para a região. Com a emigração jovem agrava-se o processo de
envelhecimento populacional. O celibato entre os rapazes rurais já
se desenha na região”, registraram os pesquisadores.
Em Santa Catarina
este tema já rendeu um documentário “Celibato no Campo”, de Ilka
Goldschmidt e Cassemiro Vitorino. O estado tem para cada grupo de
100 mulheres, 122 homens. Na Europa, conforme um relatório do
Parlamento Europeu do início dos anos 2000, o número de agricultores
com menos de 35 anos se reduzirá a zero em 2020.
O sul da Europa,
principalmente Portugal e Espanha, registram os índices mais altos
de envelhecimento da população rural. O Japão já tem mais de 30% da
população na faixa dos 60 anos.
Quem vai produzir a
comida?
É uma encrenca a
mais na época da modernização digital, da globalização, dos mercados
onipotentes e da mídia desinformada e totalmente urbana. Além disso,
os organismos internacionais, como a FAO, costumam bater na tecla do
aumento da produção de alimentos até 2050, deveria crescer de 2,3
bilhões de toneladas para mais de três bilhões, um aumento de 50%.
Mas não aborda a questão de quem vai produzir esta comida. Será o
agronegócio químico e transgênico, com seus equipamentos cada vez
mais sofisticados?
Ou vai sobrar espaço
para as comunidades familiares, os grupos tradicionais, as
cooperativas de assentados – no RS são 327 assentamentos, em 91
municípios e mais de 13 mil famílias-, ou os faxinais do Paraná, um
sistema antigo implantado pelos ucranianos no final dos anos 1800 e
que ainda tenta sobreviver.
Faxinal é um sistema
que mistura a plantação de erva-mate com as araucárias e que se
traduz numa produção menor, mas mais diversificada. Em 1997, uma lei
estadual definiu o perfil dos faxinais – atualmente são 44, mas em
1994 eram 121, sendo que 19 estão na região de Prudentópolis, numa
extensão de 13.870 hectares.
Na década de 1970 o
Paraná foi o estado que mais contribuiu para a migração no Brasil,
saíram 2,5 milhões de pessoas da zona rural, muitas delas em direção
ao Centro-oeste, e agora, indo para a Amazônia. Como diz uma
moradora de outra área no sul do Brasil, na região do rio
Ibirapuitã, município de Alegrete:
“Às vezes as pessoas
dizem: que buraco. Mas eu adoro esse buraco.”
O depoimento consta
de outro trabalho da Universidade de Santa Maria (extensão rural)
sobre o esvaziamento do pampa gaúcho. A moradora mora a 70 km da
sede do município, ou seja, a cidade.
Os filhos precisam
sair de casa para cursar o ensino médio que não tem na região e não
há transporte público. A passagem custa R$15. Os jovens querem
estudar, querem evoluir, como em qualquer outro lugar do mundo. As
atividades na região se concentram na pecuária de corte ou soja. Não
é nem o emprego urbano que atrai, porque estas cidades continuam
registrando êxodo.
Trabalho em
comunidade
É uma situação
diferente da agricultura familiar colonial, de tradição europeia.
Segundo dados do IBGE de 2006, o RS conta com 378 mil
estabelecimentos agrícolas familiares que ocupavam 992 mil pessoas –
segundo o censo de 2010, 1,6 milhão de pessoas residem em 515 mil
domicílios rurais permanentes.
Eles passaram a
industrializar os seus produtos, como o caso da agroindústria das
famílias Lazzareti e Picolotto, da comunidade linha Savaris, 7 km do
município de Constantina, norte do RS.
Eles desistiram de
plantar milho e depender das cotações de commodities. Resolveram
ampliar uma área de cana-de-açúcar com variedades específicas.
Passaram a produzir açúcar mascavo, melado, schmier (geleia), além
de cachaça e licores em 14 hectares. São sete famílias que dividem
tudo e ainda trouxeram os filhos de volta, que trabalhavam na cidade
como assalariados.
Ainda são
responsáveis pelo controle, recolhimento e entrega de 320 cestas
básicas destinadas as famílias carentes do município, através do
Programa Fome Zero. O selo “Vita Colônia”, da COOPERAC, a
agroindústria da comunidade, é um dos modelos que viabiliza
economicamente a agricultura familiar e camponesa e mantém viva a
chama de um modelo de vida que teima em não desaparecer. E que
pretende entrar nas estatísticas como integrante do desenvolvimento
social e econômico desse país.
Fonte: Brasil de Fato, Por Nádia Tubino, da Carta Maior, 29/4/13.