Réquiem para Margaret Thatcher        
     

Por Joaão Gabriel Vieira Bordin*     

Morre a “Dama de Ferro”. Não choremos – embora tenha sido a primeira mulher a ser eleita para o cargo mais alto do Estado inglês, ela não era uma das nossas. Mas também não comemoremos – a semente que ela plantou floresceu, cresceu ao longo das últimas três décadas e deu frutos amargos dos quais ainda hoje nos alimentamos, embora sua árvore se mostre cada vez mais fraca e sem viço. O respeito à morte, seja de quem for, é um imperativo moral de valor universal – se bem que, no íntimo e em determinados casos, soltamos fogos de artifício.

Não obstante, não temos uma só palavra de condolências a expressar em relação à morte de Thatcher. Aqueles que as têm, sem mencionar aqueles que clara e profundamente se condoem do fato, traem-se, pondo de manifesto o lado de que se colocam na luta de classes, tanto no plano político quanto no da perspectiva ideológica – Cameron referiu-se a Thatcher como uma “grande líder”, enquanto Obama disse que os EUA perderam uma “verdadeira amiga”.

Não que existam apenas dois lados, mas, entendido o campo político como um espectro bidimensional, sem dúvida Thatcher e seus acólitos se posicionam junto à extrema-direita contemporânea. Ela, no Reino Unido, e Reagan, nos EUA, foram os grandes mestres dos atuais “neocons” (os neoconservadores do TeaParty e os Tories do Partido Conservador inglês), que combinam uma linha econômica liberal – a qual, diga-se de passagem, não tem nada de progressista – com uma postura conservadora, ou mesmo reacionária, em questões políticas, sociais e culturais – o epíteto “Iron Lady”, aliás, era muito do agrado de Thatcher. Foram eles os precursores do neoliberalismo enquanto agenda política e, por conseguinte, econômica, responsáveis por traduzir a ideologia neoliberal, cujas raízes remontam à década de 1940, em programa de governo.

De certa forma, Thatcher, que era também membro da nobreza, ajudou a moldar o mundo que conhecemos hoje e que tanto ansiamos por mudar – esse mundo onde cada vez menos indivíduos monopolizam parcelas cada vez maiores da riqueza social; onde a miséria e a injustiça social ameaçam arrebentar com o “contrato social”; onde a corrupção política grassa pelos gabinetes políticos impulsionada pela promiscuidade entre poder público e empresas privadas; onde a crise econômica tornou-se norma, emergindo em ciclos cada vez mais rápidos, espocando aqui e ali, e solapando as condições de vida obtidas a duras penas pela classe trabalhadora ao longo da segunda metade do século XX. Parafraseando uma declaração sua que ficou famosa, podemos sintetizar a política thatcherista da seguinte forma: onde houver Estado, nós devemos trazer o mercado.

Foi ela quem mostrou o caminho às classes e governos burgueses de todo o Ocidente de como derrotar o movimento trabalhista e os sindicatos – um dos pilares centrais, senão o central, da agenda neoliberal –, caminho que ficaria exemplarmente demonstrado durante a longa e encarniçada greve dos mineiros em meados dos anos 80, derrotada pela mão de ferro de Thatcher. Era notória também sua simpatia com regimes autoritários, como o pinochetismo no Chile, cuja duvidosa honra de ser o primeiro laboratório de testes do neoliberalismo no mundo era muito elogiada por Thatcher. Durante o processo movido contra o ex-ditador chileno, e que pedia sua extradição pelo promotor espanhol Baltasar Garzón, Thatcher interviu ativamente para que o governo inglês lhe concedesse asilo político.

A direita radicalizada (ou extrema-direita) também deve muito a Thatcher. Afinal, os extremistas de direita de hoje são menos nacionalistas em termos econômicos do que seus pares de meados do século passado, combinando uma linha liberal e não-intervencionista no campo da economia. Um não-intervencionismo que, para além de um sonho de verão da burguesia, não passa de uma palavra retórica: por trás da bandeira de não-intervenção esconde-se a opção por uma outra forma de intervenção, que reduza o poder de barganha dos trabalhadores e que sustente as novas regras do jogo econômico, baseado na socialização dos prejuízos e das exteriorizações oriundas do mercado, garantindo assim a alavancagem dos lucros. Se havia alguma dúvida de que essa palavra de ordem é puramente retórica, a longa crise financeira de 2008 eliminou essa possibilidade – com um programa altamente conservador (pró-família, pró-cristão, pró-nação) no plano cultural e social. O crescente poder eleitoral de partidos como a Frente Nacional, na França, e o Partido da Liberdade da Áustria, desde os anos 80, encontra apoio no thatcherismo e pode-se dizer que, de certa forma, são seus herdeiros.

Mas também os partidos tidos por “esquerda”, especialmente os socialistas no continente e o Partido Trabalhista na Inglaterra, devem muito a ela – devem num sentido negativo, poder-se-ia dizer. Sua política direitista foi tão bem-sucedida ao inaugurar uma nova era que fez do Partido Trabalhista, antes uma agremiação socialdemocrata de tipo keynesiano, um partido tão neoliberal quanto o Partido Conservador – como o Novo Trabalhismo de Tony Blair e seu apoio entusiástico ao “Novo Século Americano” tornou tão evidente. Com efeito, o trabalhista Blair foi não apenas um grande apoiador da Guerra ao Terror, como um defensor intransigente da política neoliberal.

Thatcher ficou 12 anos no poder (o tempo mais longo entre todos os primeiros-ministros ingleses), sendo que os marcos desse período são bastante emblemáticos no que se refere à era que ela ajudou a criar: assume o posto em 1979, um ano marcado pelo segundo choque do petróleo, pela Revolução Iraniana e pela invasão do Afeganistão pelos soviéticos, e entrega-o em 1990, durante o ocaso da URSS e a explosão da primeira Guerra do Golfo. Junto com o fim do gabinete de Thatcher vieram as teorias do “fim da história”, da vitória do capitalismo, do Ocidente etc.

Conhecemos o legado do thatcherismo de cor e salteado. O que precisamos fazer é enterrá-lo, assim como enterraram nesta segunda sua artífice.

 

* João Gabriel Vieira Bordin é cientista social.
Blog: www.laboratoriodialetico.blogspot.com

 

 

Fonte: Correia da Cidadania, 11/4/13.

 


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