Remoção: há 200
anos é assim que o governo lida com as comunidades no RJ
Com a chegada da
família real ao Brasil, em 1808, 10 mil casas foram pintadas com as
letras “PR”, de Príncipe Regente, abreviatura que significava na
prática que o morador teria que sair de sua casa para dar lugar à
realeza. Logo, a sigla “PR” ficou popularmente conhecida como
“Ponha-se na Rua”. Hoje, as casas removidas no Rio de Janeiro são
marcadas com as letras “SMH”, de Secretaria Municipal de Habitação.
A população também criou um apelido para a sigla: “Sai do Morro
Hoje”.
Essa associação
entre as duas eras de despejo – que afetam sempre a mesma população
– é feita em “Do ‘Ponha-se na Rua’ ao ‘Sai do Morro Hoje’: das
raízes históricas das remoções à construção da “cidade olímpica”,
trabalho de conclusão de curso da jornalista Paula Paiva Paulo. Em
entrevista à Pública, ela fala pela primeira vez sobre o estudo que
revê as transformações no espaço público carioca e as remoções
compulsórias que preparam o cenário. E afirma: Os despejos não
acontecem por “falta de planejamento” urbano. “É simplesmente
privilegiar a especulação imobiliária ao invés do direito a
moradia”, explicita.
APública: Por que
você escolheu esse tema para o trabalho de conclusão?
Paula Paiva
Paulo:
Quando comecei a pensar sobre o tema da minha monografia, não foi
difícil, o tema da habitação sempre me atraiu. A minha ideia inicial
era abordar tudo: um histórico de políticas públicas para habitação,
o que diz a Constituição sobre direito à moradia, qual o déficit do
país, o que esse déficit causa, o descaso do governo, o sonho da
casa própria, e as histórias de pessoas afetadas – pelo menos um
relato de um morador de rua, um de ocupação urbana e um de área de
risco.
Em março de 2012
comecei a participar do Grupo de Trabalho (GT) Remoções do Comitê
Popular Rio para Copa e Olimpíadas, organização civil que reúne
representantes de ONGs, de movimentos sociais, estudantes e qualquer
pessoa que queira discutir e pesquisar sobre as violações de
direitos humanos na preparação para os megaeventos no Rio de
Janeiro. Ao entrar em contato com os moradores de comunidades
ameaçadas, como Arroio Pavuna e Vila Autódromo, achei o meu gancho.
O meu trabalho seria uma grande reportagem sobre as remoções que
estavam acontecendo em razão da Copa do Mundo de 2014 e das
Olimpíadas em 2016.
Das comunidades
removidas para os megaeventos, qual ou quais você acredita serem as
mais emblemáticas desta época?
Considero duas
bem emblemáticas: a Restinga, no Recreio dos Bandeirantes, e o
Metrô-Mangueira, na Mangueira. Na Restinga aconteceu todo o processo
que tem sido padrão de reclamação dos moradores das comunidades
removidas: falta de informação relativa ao projeto, falta de
participação durante as remoções, oferecimento de alternativas
desinteressantes para as famílias e truculência policial no ato da
remoção. Essa última queixa é que torna a Restinga emblemática. O
dia da remoção, dia 17 de dezembro de 2010, uma sexta-feira, foi
considerado muitíssimo traumático pelos moradores. Sem aviso prévio,
com forte aparato policial, remoções acontecendo madrugada adentro,
sem as famílias terem sido indenizadas. Para o defensor público que
atendeu a comunidade na época, Alexandre Mendes, foi a comunidade
que mais sofreu nesse processo.
Já o caso do
Metrô-Mangueira, que fica a 500 metros do Maracanã é emblemático
pela situação que alguns moradores ficaram durante um ano e meio.
Após as primeiras remoções, as casas eram demolidas, e quem ficava
tinha que viver entre os entulhos, que não eram retirados, e
acumulavam lixo, água parada, ratos.Como me disse um ex- morador,
Eomar Freitas: “Se você conseguir entrar em alguma casa que ainda
está de pé, vai ver o odor de merda que tem, e a gente tinha de
almoçar, a gente tinha de jantar, a gente tinha de conviver com esse
cheiro”.
O que mais te
chocou ou entristeceu durante a pesquisa?
O que mais me
entristeceu foi o tratamento recebido pelas famílias removidas. É
tudo feito com muita brutalidade, desde o anúncio da remoção. É
pressão o tempo inteiro, e os moradores são tratados como “ilegais”,
independente de sua situação fundiária, mesmo com os direitos
adquiridos que nossas leis nos reservam.
A moradia vai
muito além de quatro paredes, ela está ligada ao direito ao
trabalho, ao lazer, à saúde. É um processo muito traumático, e no
qual não se faz nada para que ele seja menos traumático, muito pelo
contrário. O ideal seria que esses processos fossem acompanhados de
assistência psicológica aos moradores. Na verdade, ideal mesmo é que
se buscassem outras soluções em vez da remoção forçada.
Apesar de não ser
novidade na história do Rio de Janeiro, agora vivemos situação
específica inaugurada por dois megaeventos esportivos e pelas
transformações urbanísticas que eles impõem à cidade. E há um grande
agravante: as remoções estão acontecendo de forma sistêmica e
integrada nas 12 cidades-sede da Copa no Brasil, com a justificativa
da urgência e com uma paixão nacional como bandeira. É praticamente
um herege quem vai de encontro a um projeto desses.
Em seu estudo
você fala de várias outras transformações no espaço público carioca.
Quais foram as principais? Elas também removeram muita gente?
Acredito que a
principal tenha sido a reforma realizada pelo engenheiro Francisco
Pereira Passos, nomeado prefeito do Rio de Janeiro pelo então
presidente Rodrigues Alves, em 1904. Inspirado em Haussmann, o
prefeito de Paris responsável pela sua reforma urbana no final do
século XIX, a reforma de Pereira Passos teve como principais
características o alargamento das principais artérias do Centro, a
criação da Avenida Beira Mar para melhorar o acesso da Zona Sul ao
Centro; a construção do Teatro Municipal; a ligação da Lapa com o
Estácio; guerra aos quiosques e ambulantes; inauguração de estátuas
imponentes e arborização no centro.
Na maioria dos
casos, a prefeitura desapropriou mais prédios do que eram
necessários para depois vender o que ficou valorizado. Em paralelo
às obras da prefeitura, a União também realizou grandes obras, como
a construção da Avenida Central, atual Rio Branco, que demoliu de
duas a três mil casas, o novo porto do Rio de Janeiro, e a abertura
das avenidas que lhe davam acesso, a Francisco Bicalho e a Rodrigues
Alves. É a partir daí que os morros do Centro (Providência, Santo
Antônio, Castelo e outros) até então pouco habitados, passam a ser
rapidamente ocupados. Ainda assim, a maior parte das pessoas que
perderam suas casas não foi para as favelas centrais, e sim para o
subúrbio, principalmente Engenho Novo e Inhaúma.
O que você chama
de era das remoções?
Esse termo foi
retirado do excelente livro do historiador Mário Brum, “Cidade Alta
– História, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional
do Rio de Janeiro”.
Ele se refere ao
período de 1963 a 1975, no qual foram removidas mais de 175 mil
pessoas somente no Rio de Janeiro. O então governador do Estado da
Guanabara, Carlos Lacerda, trabalhou com as duas perspectivas,
primeiro, com o criado Serviço Especial de Recuperação de Favelas e
Habitações Anti-Higiênicas (Serfha), com a perspectiva da
urbanização. Depois, com a extinção do Serfha e a subordinação dos
órgãos habitacionais à Secretaria de Serviços Sociais, criada em
1963, a política habitacional passou a trabalhar com muito empenho
com a perspectiva remocionista, já que, com a especulação
imobiliária, políticos e construtoras tinham interesse na
“desfavelização” da Zona Sul.
De acordo com
Mário Brum, as primeiras remoções foram em áreas de obras, como as
favelas da Avenida Brasil, removidas para a construção do Mercado de
São Sebastião, e a favela do Esqueleto, retirada para a construção
da UERJ, no Maracanã. Em um segundo momento, as remoções visaram
favelas em terrenos de alto valor imobiliário, como o caso da Favela
do Pasmado, em Botafogo.
Com o
financiamento americano (Usaid), entre 1962 e 1965, foram
construídas a Cidade de Deus e as Vilas Kennedy, Aliança e
Esperança. Por outro lado, algumas favelas foram urbanizadas. Em
1964, com o golpe militar e o início da ditadura no Brasil, o
fechamento dos canais democráticos criou as condições necessárias
para as remoções arbitrárias. Além disso, na conjuntura da Guerra
Fria, o favelado era um revolucionário em potencial aos olhos do
governo.
Nesse mesmo ano
foi criado o Banco Nacional de Habitação (BNH), órgão financiador e
responsável por programas habitacionais. As construções dos
conjuntos habitacionais acompanhavam a remoção de favelas. Em 1964,
2273 famílias perderiam suas casas com a remoção completa de
comunidades em Botafogo, Leblon, Ramos, Duque de Caxias; e despejos
parciais no Humaitá, na Gávea, no Caju.
E as remoções
continuaram no ano seguinte, sendo a maior delas a da comunidade do
Esqueleto, no Maracanã. Segundo dados da Cohab, no governo Lacerda
foram removidas 6.290 famílias, sendo 4.800 de janeiro de 64 a julho
de 65. Até 1965, 30 mil pessoas foram removidas, o que foi pouco
perto do que estava por vir.
Em 1968, a
Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg)
ainda realizou seu 2º Congresso. No entanto, com traumáticas
remoções na região da Lagoa Rodrigo de Freitas, a resistência perdeu
espaço para o receio: a resistência dos moradores da Praia do Pinto,
por exemplo, terminou com um misterioso incêndio na favela. Nese
mesmo ano, o governo federal criou a Coordenação da Habitação de
Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (Chisam), com o
objetivo de criar uma política única de favela para o Rio. A Chisam
definia a favela como um “espaço urbano deformado” e sua missão
declarada era erradicá-las. Na ditadura, a Chisam virou a
“autoridade” do programa remocionista. Era ela quem decidia quais
favelas a serem removidas e onde ficariam os conjuntos, pois muitos
terrenos eram do governo federal. E, na prática, quem executava as
coisas era o governo do Estado.
A Chisam, extinta
em 1973, removeu mais de 175 mil moradores de 62 favelas (remoção
total ou parcial), transferindo-os para novas 35.517 unidades
habitacionais em conjuntos nas zonas Norte e Oeste. A construção
desses conjuntos habitacionais nem de longe resolveu o problema da
habitação popular, mas modificou substancialmente a forma-aparência
dos subúrbios, além de levar uma demanda grande de pessoas para onde
não havia a infraestrutura necessária.
Após esse
período, houve o esvaziamento do programa de remoções que tinha um
alto custo político pela resistência dos moradores e que já tinha
cumprido sua função de desocupar áreas de grande valor imobiliário e
desmantelar a organização política dos favelados. Com a
redemocratização do país, houve a revalorização da “moeda voto”.
O que você vê de
diferente entre este histórico de remoções no Rio e o que está
acontecendo agora? Há diferença de abordagem?
Antes era
imperativa a ideia de remoção total das favelas como solução para a
cidade. Isso foi superado depois da grande força dos movimentos
sociais dos anos 80 e da nossa Constituição de 88. No Plano Diretor
do Rio de Janeiro de 1992 se consolida o pensamento de integração
das favelas à cidade; o Plano prevê a urbanização e a regularização
fundiária, e a favela é definida por características técnicas de sua
estrutura, e não mais por características morais dos moradores. Sem
dúvida isso é uma evolução e deu partida a projetos como o
Favela-Bairro.
No entanto, os
movimentos que lutam pelos direitos humanos, sendo o direito à
moradia um deles, não conseguir garantir esse direito na prática. E
esse é um grande passo para trás. Outro passo para trás: apesar de
não haver mais a justificativa da remoção como solução urbanística,
ela está mais mascarada. E há um grande agravante, que são as
remoções acontecendo de forma sistêmica e integrada nas 12
cidades-sede da Copa no Brasil, com a justificativa da urgência e
com uma paixão nacional como bandeira. As obras para mobilidade
urbana e construção de equipamentos esportivos não são consideradas
questionáveis, e quem questiona é chamado de “do contra,
baderneiro”.
A que você acha
que se deve este histórico?
A primeira coisa
que me vem à cabeça é “falta de planejamento urbano”. Mas na verdade
o que não faltou foi planejamento. Acho que esse histórico se deve a
predominância do interesse do capital na construção e ocupação da
cidade. Preferiu-se e ainda se prefere privilegiar a especulação
imobiliária ao direito à moradia.
Fonte: Brasil de Fato, Andrea Dipp, APública, 29/4/13.