No Brasil, uma
nova cultura política e de protesto
“O velho precisa
aprender com o novo”. A opinião é do escritor e jornalista uruguaio
Raúl Zibechi, especialista em processos organizativos de movimentos
sociais latino-americanos, se referindo a atual conjuntura da luta
popular no Brasil após as manifestações de junho.
Para ele, que
esteve presente na Escuelita Zapatista, em Chiapas (México), existe,
em boa parte da luta social, uma rejeição forte em relação à aliança
entre a burguesia e a elite sindicatal no país. “A vida dos pobres
tem melhorado, mas não o seu lugar na estrutura”, ressalta.
Confira a
entrevista.
Brasil de Fato
– Raúl, você apresentará em várias universidades na Cidade do México
seu mais recente livro, chamado Brasil potência. Como você vê as
manifestações que vêm ocorrendo desde junho no Brasil?
Raúl Zibechi
– Maravilhosas. Parece-me que pela primeira vez desde 1989, de
maneira muito superior às manifestações contra Fernando Collor de
Mello, em 1992, o Brasil presencia uma grande mobilização urbana.
Tenho a impressão de que o núcleo de resistência se move do campo
para a cidade. Eu acho que há uma mudança, uma grande mudança
política no Brasil, e isso é um acumulado da resistência à
construção da usina de Belo Monte e da resistência do Movimento
Passe Livre (MPL), que se organizam em dezenas de cidades.
E as críticas que
diziam que lutavam por apenas “20 centavos”?
Não, não. De
forma alguma. É algo muito mais profundo. É possível dizer que é uma
luta contra o consenso lulista, entendido como a aliança das elites
que gerou Lula ou o PT de gênero, que consiste em uma integração da
elite sindical e da administração petista do aparato de
governabilidade. Há uma rejeição forte em relação a isso. A vida dos
pobres tem melhorado, mas não o seu lugar na estrutura; são pobres,
comem melhor, vestem-se melhor, mas o seu lugar estrutural continua
sendo a precariedade, que hoje se manifesta no transporte, dentre
outras coisas.
Então eu estou
muito feliz com essa série de movimentos que ocorreram. Claro que,
agora, os protestos caíram, mas imagine os núcleos do MPL no Brasil,
em São Paulo ou Rio de Janeiro, grupos pequenos de 20 pessoas, no
máximo, fortaleceram-se.
Como podemos
definir estas novas manifestações, este algo “novo” ?
Creio que o que
está nascendo no Brasil é uma nova cultura política, ou uma nova
cultura de protesto, que o MPL encarna de maneira muito clara, a
partir da horizontalidade, da autonomia, de um apartidarismo que não
é antipartidarismo, e o federalismo. Parece-me que é a primeira vez
que isso ocorre, desde que o MST renovou a cultura política
brasileira no início dos anos 1980, renovando a cultura de lutas,
com os assentamentos, acampamentos, ocupando, resistindo,
produzindo, com todo um estilo.
Agora, isso se
manifesta nas áreas urbanas, onde os jovens se formaram de outra
maneira, onde há por exemplo uma cultura do Hip Hop, uma cultura dos
grupos autônomos. Essa cultura política do MST, da qual vêm muitos
deles, enraizada nas cidades, deu outra coisa, distinta do MST, nem
melhor, nem pior, senão diferente, que já tem o seu próprio caminho;
já não são dependentes do apoio do MST. Há um movimento urbano que
caminha, e espero que o MST o acompanhe; eu creio que sim.
Como é que se
encaixam esses movimentos sociais com essas novas manifestações?
Olha, vou tocar
em um tema muito crítico que depois lhe contextualizarei. No dia 24
de junho, em plena onda de manifestações, acontece a chacina da
Maré, em Nova Holanda, com 11 mortos pelo BOPE. Em 11 de julho,
quando os sindicatos fazem sua pauta de reivindicações, não
mencionam a questão da militarização, não mencionam a chacina da
Maré. É uma pauta de reivindicações basicamente corporativa. Eu
penso que a cultura sindical tradicional, especialmente os
sindicatos que hoje lutam, como a Conlutas e a Intersindical,
necessitam se vincular a esses novos movimentos. Assim com também
deveria fazê-lo o MST, que eu acho que é o único que tenta.
Do meu ponto de
vista e com a maior humildade, creio que o MST foi o movimento mais
importante da América do Sul. Todos temos aprendido e seguiremos
aprendendo dele, mas hoje é importante potencializar essas lutas. O
MST está em condições de se relacionar, de aprender com essa nova
cultura política da juventude urbana; creio que pode fazê-lo, porque
possui a ética de luta anticapitalista da mesma maneira que o MPL e
esses outros movimentos também possuem. Eles estão tensionando um
núcleo duro do capitalismo, que é a acumulação por espoliação
urbana, na qual se enquadram as megaobras da Copa do Mundo e dos
Jogos Olímpicos, o sistema de transporte excludente que possui o
Brasil e etc. Portanto, há um desafio, que não é fácil assumir;
sempre o novo questiona o velho: eu sou velho e o novo me questiona.
Devemos aprender com este “novo”.
Em seu livro
Pobreza e Política há uma frase que eu acho muito interessante, você
escreve: “A América Latina é um laboratório de resistências sociais
e, paralelamente, também é um laboratório de programas para aplicar
à insurgência social.” Poderia nos falar um pouco sobre o tema das
políticas sociais assistencialistas?
Olha, tenho visto
isto em muitas comunidades hoje em dia: você tem uma comunidade
zapatista e ao lado uma comunidade do PRI (Partido Revolucionário
Institucional), que tem casas de alvenaria, aparentemente muito
bonitas. As políticas sociais são uma forma de dividir as pessoas e
acalmá-las. No caso do Brasil, existe uma gigantesca política
social, o Bolsa Família por exemplo, que chega a milhões de
famílias; sem este programa o Brasil estaria vivenciando um conflito
social muito forte.
As políticas
sociais surgem para controlar os pobres, deve-se entendê-las a
partir desse ponto de vista. É bom que o Estado dê dinheiro aos
pobres, mas o que deve dar, como disse Hugo Chávez, é poder: para
combater a pobreza os pobres têm que ter poder. Aqui está, a meu
ver, uma compreensão equivocada de boa parte da esquerda do
continente de ver as políticas sociais como conquistas, quando são,
na verdade, laboratórios de cooptação de pobres. Mas as políticas
sociais também têm limites muito graves e agora nos deparamos com
este novo desafio. Agora que sabemos que as políticas sociais são
limitadas para mudar a estrutura do problema.
Bom, sabemos que
os governos progressistas são muito melhores do que os governos
conservadores, mas eles têm sérios limites e esses limites não vão
ser quebrados pelos velhos movimentos ou sindicatos, mas sim por uma
nova agenda. O que acontece é que quando os jovens saem às ruas já
não saem disciplinados como anteriormente, saem de outra maneira, e
isso choca, às vezes incomoda; é claro que a direita se utiliza
disso, mas esse é um risco que sempre corremos.
Creio que estamos
em uma nova fase e o Brasil é um exemplo disso. Estamos em uma nova
fase em todos os lugares. No Chile há uma nova geração de movimentos
sociais, com os estudantes, com os Mapuche. No Peru temos uma nova
geração também, a resistência à mineração em Conga, os guardiões dos
lagos etc. Nesse terreno estamos diante de uma nova situação e isso
é para se alegrar e para ver como aprendemos, como nos reajustamos a
esta nova situação.
Se com a
aplicação dessas políticas alguns movimentos perdem espaço, então,
quais estão ganhando?
Bem, quando se
trata de movimentos, devemos ver de quem estamos falando. Falando
dos novos movimentos, refiro-me ao MPL, aos Comitês da Copa, aos
sem-teto, aos movimentos urbanos.Eles estão ganhando uma compreensão
do que seria o agronegócio urbano, pois os megaprojetos são o
agronegócio urbano, aqui é onde vem o novo. Imagine se favelados
começam a tomar as ruas. Você pode imaginar isso? Eu acho que seria
quase uma guerra, mas apenas a classe média tem o direito de sair às
ruas, os sindicatos, os sem-terra. O que acontecerá quando você
deixar sair os favelados? Eles não vão sair em filas como o MST, vão
sair de outra forma, porque é outra cultura. A cultura política dos
favelados é aquela em que não se tem nada a perder, a não ser suas
correntes.
Uma jornalista
brasileira disse recentemente que quando há manifestações na avenida
Paulista, a polícia responde com gás e balas de borracha, mas quando
há manifestações na favela, há balas de verdade. Isto demonstra que
são dois espaços diferentes. Temos que escolher,sem cálculos
mesquinhos, o que eu perco ou o que ganho, de que lado estamos.Isso
é um pensamento de um revolucionário. Onde me coloco? Se não estamos
lá, estamos deixando órfãos de políticas revolucionárias os
favelados .
E para terminar
Raul, conte-nos um pouco sobre sua experiência na Escuelita
Zapatista. O que é liberdade segundo os zapatistas?
Bem, a liberdade
para os zapatistas é a opção pela revolução por um mundo novo. O que
eu vi foram muitas comunidades com uma grande força interior, com
uma decisão de ir até o fim, isso eu vou deixar bem claro, eles
derrotaram as políticas sociais. De uma comunidade de 100 famílias,
restaram apenas 15 famílias zapatistas. Existem outras comunidades
que são inteiras zapatistas. Outras que se perderam. Há de tudo. É o
preço a se pagar para superar, neutralizar e derrotaras políticas
sociais assistencialistas. Deve ter sido muito difícil para eles,
mas por isso estamos aqui. O que eu vi, um poder autônomo, uma
economia autônoma, eles são autossuficientes, sim, na pobreza, mas
eles comem, educam-se, cuidam de sua saúde e defendem seu território
sem o apoio do Estado. Têm seus campos de milho, café, feijão, gado;
têm pequenas vendas cooperativas nas comunidades zapatistas, onde
compram o que não podem produzir: sal, óleo, açúcar, sabão; não têm
que ir para o mercado capitalista. O que está lá é uma outra maneira
de se organizar socialmente, uma revolução.
Tradução e
colaboração: Fábio Alkmin.
* Raul Zibéchi é
escritor e jornalista. Seu mais recente livro é Brasil potência:
entre a integração regional e um novo
imperialismo, editora Consequência, Rio de Janeiro, 2012.
Fonte: Brasil de Fato, Waldo Lao, de San Cristóbal de las Casas,
Chiapas (México), 12/9/13.