“Mudanças não podem justificar paralisia da reforma agrária”
Para o professor Sergio Sauer, do Programa de Pós Graduação em Meio Ambiente
e Desenvolvimento Rural da Universidade de Brasília (UnB) “não há novidade”
na proposta de mudar o Incra. “Sempre que se têm resultados ruins, se fala
em mudança”
Em meio as críticas após mais um pífio resultado na incorporação de novas
áreas de reforma agrária pelo governo Dilma – em dois anos, foram 86
desapropriações de terras, desempenho que supera apenas o período Collor – o
Incra sinaliza mudanças da política agrária na tentativa de melhorar a
atuação do órgão.
Reportagem do Brasil de Fato já havia detalhado a reorientação do governo
Dilma no setor, que inclui a descentralização das ações de construção de
moradias e de infraestrutura básica dos assentamentos para outros
ministérios. O presidente da autarquia, Carlos Guedes, afirma que
a meta é
recuperar o prestígio do Incra, desfazendo principalmente a fama de má
gestão.
Para o professor Sergio Sauer, do Programa de Pós Graduação em Meio Ambiente
e Desenvolvimento Rural da Universidade de Brasília (UnB) e relator do
Direito Humano a Terra, Território e Alimentação (Plataforma DhESCA Brasil),
“não há novidade” na proposta de mudar o Incra. “Sempre que se têm
resultados ruins, se fala em mudança”, aponta. A questão não é quem vai
fazer, mas se será feito, avalia o professor.
“Essas pretensas atualizações não podem servir como justificativas para a
imobilidade governamental. Não há qualquer sombra de dúvidas que a reforma
agrária, como uma política estruturante, traz temas como o desafio da
sustentabilidade ambiental e dos direitos à alimentação adequada, não só no
campo, mas do conjunto da população”, situa. Mesmo assim, Sauer desconfia do
empenho do governo em ver a questão sob essa perspectiva. “Toda a temática
agrária não é prioridade para o mandato Dilma”. A seguir, confira a
entrevista de Sergio Sauer ao Brasil de Fato.
Brasil de Fato – Qual a sua impressão sobre a mudanças que estão em curso no
Incra?
Sergio Sauer – A troca na presidência do Incra gerou mudanças nas
pessoas que ocupavam alguns cargos, tanto no próprio Instituto como no MDA
[*no início de 2012, o deputado Pepe Vargas, do PT-RS assumiu o Ministério
do Desenvolvimento Agrário e, meses mais tarde, o economista e servidor
Carlos Guedes foi indicado para a presidência do instituto agrário*]. No
entanto, de uma maneira geral, não houve uma mudança significativa, nem em
termos políticos, nem em termos de direção. Por outro lado, é historicamente
comum quando há baixa execução das ações estratégicas do órgão, a formulação
de discurso enfatizando a necessidade de mudanças administrativas. A
proposta de descentralização das ações do Incra não é nenhuma novidade, pois
já apareceu na administração FHC e foi veementemente criticada pelos
movimentos sociais do campo.
As críticas são aconteceram porque há uma defesa da centralização, mas
porque, primeiro, geralmente, essas mudanças administrativas dispendem muita
energia e os resultados são pífios. Em segundo lugar, as propostas de
descentralização são feitas em uma lógica ideal, ou seja, o Incra deve
"deixar de ser provedor" como se qualquer outro Ministério ou órgão público
estivesse pronto e disposto a assumir tais tarefas e ações nessa área, o que
não é, nem de longe, uma realidade. Mais perigoso do que a perda de
autonomia, as ações e políticas simplesmente não serão executadas,
diminuindo ainda mais o ritmo na implementação das já poucas ações de acesso
à terra e consolidação do setor familiar camponês.
Segundo o presidente do Incra, essas mudanças se inserem na ideia de que é
preciso “atualizar” a reforma agrária e que as zonas de maior concentração
fundiária já não coincidem com os acampamentos onde estão a maior parte das
famílias sem-terra que aguardam para serem incluídas no programa. Em que
medida isso deveria alterar a política?
Novamente, é surpreendente o discurso de "reformar a reforma agrária", pois
essa expressão (e outras correlatas como essa do atual presidente do Incra)
estava em um dos primeiros pronunciamentos do então recém eleito Fernando
Henrique Cardoso, em 1995. O Brasil é historicamente marcado por uma
profunda concentração da propriedade e do acesso à terra. Essa leitura de
que apenas algumas regiões possuem essa concentração não é só um equívoco,
como um mecanismo de justificação de ações pontuais, que em nada alteram a
atual iniquidade no campo. Também é difícil de entender como um pretenso
descompasso entre o número de demandantes por terra – existência de um
número maior sem terra – e níveis mais baixos de concentração possam
justificar a total paralisia nas ações governamentais de desapropriação e
assentamento de famílias.
Agora, assim como qualquer ação humana ou política, a luta pela terra suas
causas e consequências – necessita de constantes releituras. No entanto,
essas pretensas atualizações não podem servir como justificativas para a
imobilidade governamental. Não há qualquer sombra de dúvidas que a reforma
agrária, como uma política estruturante, traz temas como o desafio da
sustentabilidade ambiental e dos direitos à alimentação adequada, não só no
campo mas do conjunto da população. Estamos falando de um bem não renovável,
a terra e o solo fértil, portanto, a reforma agrária continua sendo um tema
atual.
O senhor acredita que houve mudança na política agrária do governo Lula para
o governo Dilma?
Não houve uma mudança significativa das políticas agrárias em geral entre os
dois governos. No entanto, as mudanças para pior, sem sombra de dúvidas,
estão situadas na diminuição – se não na total paralisia – das ações de
desapropriação e assentamento de famílias. Há sempre a necessidade de
reconhecimento da melhoria na implementação de alguns programas, mas não há
novidades, inclusive porque toda a temática agrária não é prioridade para o
mandato Dilma.
A reforma agrária cabe no atual modelo de desenvolvimento econômico do
Brasil para o setor agrícola?
Como disse, acredito que o tema é atual e urgente, pois qualquer olhar sobre
a importância socioambiental da terra recoloca a questão agrária na pauta
política nacional . No entanto, não acredito que seja possível pensar em
qualquer avanço no contexto do atual modelo e momento do agronegócio
exportador de commodities. O atual modelo é excludente e concentrador,
portanto, tende sempre na direção absolutamente oposta a qualquer ação de
democratização do acesso à terra. Isso sem falar na expansão do monopólio do
setor agropecuário, com o crescente domínio das multinacionais que, ao
monopolizar concentram os diferentes serviços do fornecimento de insumos à
comercialização da produção. Isso, associado a uma corrida mundial por
commodities, torna o tema mais candente e de difícil solução.
Existe uma avaliação que o eixo da luta de classes se deslocou,
principalmente, para o mundo do trabalho, devido ao processo recente de
crescimento econômico, aumento do emprego e diminuição da miséria. E que as
políticas sociais do governo, como o Bolsa Família, entre outras, teria
desmobilizado as ações no meio rural. O senhor concorda com essa análise?
Não tenho certeza! Não tenho uma análise precisa sobre as razões que
explicariam as dificuldades de mobilização das populações do campo, mas elas
não estão paralisadas (assim como não há grandes mobilizações dos setores
urbanos). A presença de programas assistenciais certamente é parte das
contradições desse momento histórico. Por outro lado, é preciso reconhecer
que houve uma diminuição sensível das ocupações de terras, mas há várias
outras frentes de lutas, envolvendo outros atores sociais do campo, a
exemplo de quilombolas, povos indígenas, e muitas comunidades que resistem à
expropriação de suas terras e recursos.
Há lugar para o desenvolvimento rural que tenha agricultura familiar e
agronegócio “convivendo” simultaneamente?
A tese de um sistema bimodal de produção e ocupação do campo tem lugar e
vários defensores, ou seja, é possível imaginar e defender uma realidade em
que haveria "lugar para todos" no campo. No entanto, essa não é – e nunca
foi – nossa realidade. Até podemos dizer que infelizmente nunca foi assim,
inclusive há de se reconhecer que os enfrentamentos não são opção de alguns
maniqueístas de plantão. Se há convivência também há muita disputa,
inclusive disputas pela assistência do Estado e por recursos públicos. Os
recentes processos de criminalização de lideranças e movimentos sociais
salientam mais as disputas que a convivência, deixando claro que a questão
não se resolve apenas com um acordo econômico-produtivo.
A questão da terra (que é conceitualmente diferente da questão agrária!)
continua um tema atual, especialmente se olharmos essa terra como parte, por
exemplo, da sustentabilidade social e ambiental. A terra, como um bem não
renovável, adquire outra dimensão, portanto, não pode ser reduzida a uma
noção ou a um problema econômico-produtivo. Não estou querendo vincular com
a dimensão de identidade cultural - tão cara aos nossos povos indígenas e
outras comunidades que dependem de seus territórios -, mas apenas enfatizar
que existe uma dimensão e um desafio vinculado à função socioambiental da
terra, o que é uma perspectiva nova e um desafio imenso!
Fonte: Brasil de Fato, Pedro Rafael de Brasília (DF), 23/1/13.
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