Maria Rita Kehl:
“Cidade com desigualdade é um inferno”
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Em entrevista ao Brasil de Fato,
Maria Rita Kehl analisa que as contradições nas cidades
levam a um desencanto, que está na raiz das mobilizações que
tomaram o país em junho. Foto: Rafael Stedile |
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O principal
problema das grandes cidades é a desigualdade social, que faz do
mesmo território um espaço distinto para as diferentes classes
sociais. As contradições dentro de uma mesma cidade levam ao
sentimento de desencanto, que está na raiz das mobilizações que
tomaram o país em junho.
A avaliação é da
psicanalista Maria Rita Kehl, que é especialista em psicologia
social e em psicanálise. Em entrevista ao Brasil de Fato, Maria Rita
Kehl relaciona desigualdade, juventude e violência policial.
Maria Rita Kehl
foi indicada pela presidenta Dilma Rousseff, em 2010, para integrar
a Comissão Nacional da Verdade, criada para investigar os crimes
cometidos pelo Estado brasileiro durante o regime militar.
Autora do livro
“O Tempo e o Cão” (Boitempo), que debate a depressão na sociedade
contemporânea, ganhou o Prêmio Jabuti na categoria Educação,
Psicologia e Psicanálise.
Brasil de Fato:
Quais os impactos da dinâmica hostil de uma cidade como São Paulo na
população?
Maria Rita Kehl
- A
cidade é uma das invenções mais geniais da humanidade. O que destoa
é a desigualdade. O problema é que a cidade onde mora a moça que faz
a faxina não é a mesma em que eu moro, embora seja o mesmo
município.
Por quê?
A cidade em que
ela mora quase não tem calçamento e quando tem é de péssima
qualidade. Se o lugar é muito maltratado, as pessoas se sentem mal
também. Às vezes o bairro nem é perigoso, mas não tem onde brincar,
não tem árvore, não tem sombra e não tem beleza. Cidade com
desigualdade é um inferno.
Qual a
consequência para a vida das pessoas?
Um sentimento de
permanente desencanto, em termos de uma patologia social. Esse
sentimento deixa as pessoas sensíveis à injustiça. Não dá para dizer
que basta me preocupar com meu umbigo. A cidade é um espaço de
sociabilidade. Não sei se todo mundo que foi protestar em junho vive
mal. Muita gente que tem carro deve ter ido para a rua, como quem
não precisa de saúde pública. E muitos estudantes que vivem em
bairros bacanas.
Como você
caracteriza essa juventude que foi às ruas?
Uma geração com
um sentimento muito grande de desencanto. Vou fazer aqui uma
hipótese: foram duas grandes desilusões. Uma foi dada pela imprensa,
com as denúncias de corrupção do PT – sem entrar na discussão do que
a imprensa fez virar esse caso. A imprensa é muito de direita no
Brasil.
E a segunda
desilusão?
Os governos
petistas diminuíram a desigualdade no que se refere à renda, mas não
diminuíram a desigualdade no que se refere aos meios de produção. A
pessoa pode melhorar sua renda como operária, em uma grande obra,
mas não tem as condições de ser o dono do seu próprio trabalho. Veja
que contradição. Promover a igualdade não é só melhorar a renda, mas
garantir a autonomia. Essa juventude de agora pode sair desse
sentimento de desencanto, que nasceu com essas desilusões. É uma
desilusão com a política, não só com o PT.
O que essa
juventude tem em comum com os jovens que lutaram contra a ditadura?
No século 20,
houve uma relação entre idealismo e juventude, que despertou como
força política. A juventude é mais sensível e menos resignada com os
problemas do mundo. Agora, está inaugurando a sua vida cidadã. Tem a
ideia de que a juventude é nossa esperança, que vai mudar nosso
futuro. Não é uma esperança pelo que vai fazer no futuro, mas pelo
que faz agora. No futuro, serão adultos e vão estar barrigudos. É
hoje que a juventude traz esperança, porque denuncia e não se
conforma.
O que você espera
desse movimento que tomou as ruas em junho?
A juventude
voltou a ser protagonista. Minha preocupa preocupação é como esse
movimento com bandeiras muito pulverizadas vai voltar a mobilizar. A
questão de voltar o preço da passagem foi uma conquista importante.
E daqui pra frente? Quando os sem-terra saírem às ruas, essa
juventude vai sair junto? O MST é o movimento mais importante do
Brasil. Minha pergunta é: com essa pulverização de muitas causas, é
possível uma política que faça alianças e que resulte em uma
transformação de mais longo prazo?
O Brasil é um
país conservador?
O Brasil tem uma
classe patronal injusta, que não tem vergonha de explorar. Quando a
pessoa ganha o Bolsa Família, para tirar a cabeça da miséria, essa
classe reclama que aquele dinheiro está saindo do imposto dela. É
horrível. Veja o caso da PEC das domésticas. Danuza Leão [colunista
da Folha de S. Paulo] escreveu que era justo as domésticas terem
horário para trabalhar, mas perguntou como ficaria o direito dos
amigos dela de tomar um chá depois das 22h…
O que isso
significa?
A pessoa está tão
fechada no seu mundo que não se toca. Pensam que doméstica ter hora
para dormir tira o direito deles de tomar o chá. É uma alienação
muito profunda e sutil. A grande elite não considera o trabalhador
com direitos iguais, mesmo após a abolição da escravidão.
Você faz parte da
Comissão da Verdade. Como a vida das pessoas é afetada hoje pela
falta de acesso à verdade sobre os crimes da ditadura?
A nossa anistia
teve condições impostas por quem tinha a força. Não houve uma
votação democrática. A gente sente aos poucos os sintomas de não ter
havido uma verdadeira reparação da violência e da ilegalidade do
Estado. O primeiro sintoma evidente é que a brutalidade do Estado
permanece contra os mais pobres. A tortura permanece no Brasil. Só
que isso não sai na imprensa, porque quem poderia denunciar tem
medo. São as mães dos meninos que estão na cadeia, são as mães dos
mortos de maio de 2006.
Os mortos pela
polícia após os ataques do PCC?
Em maio de 2006,
depois dos ataques do PCC [facção criminosa Primeiro Comando da
Capital], a polícia de São Paulo entrou numa ação de vingança. Em
uma ou duas semanas, matou mais do que matou na ditadura militar.
Foram mais de 400 jovens. Só que as mães têm medo de denunciar. Até
hoje tem desaparecidos. A tortura continua, a impunidade da tortura
continua e o medo de denunciar a tortura continua. Porque as
polícias continuam militarizadas. E em alguns Estados, como em São
Paulo, é interesse do governador que continue esse terror que a
polícia espalha entre as classes baixas.
Que outros
resquícios da ditadura ainda continuam?
O Estado continua
autoritário em suas relações com o povo. Se você for em qualquer
repartição pública paulista, você será maltratado. Não
necessariamente vai ser preso, mas vai ser considerado um cidadão de
segunda categoria. Há falta de informação. Não se sabe por que a sua
consulta é agendada somente para dali três meses. Não se sabe por
que o médico não veio. Não se sabe exatamente para que local você
tem que ir. Não te informam direito. Esse autoritarismo, que
continua, é cotidiano. É sintoma de 40 anos de ditadura sem
reparação.
Quais as
consequências da violência nas periferias da cidade?
A principal
consequência é o medo. A violência aprofunda o fosso da
desigualdade. Se o jovem da periferia participar de uma manifestação
na Avenida Paulista, ele não vai ser preso. Mas se fizer uma
manifestação lá no Jardim Ângela ou no Capão Redondo, pode ser
duramente reprimidos e marcados pela polícia.
O que se espera
com o relatório final da Comissão da Verdade?
O que a gente
espera é que, quanto mais informação a sociedade tenha sobre esse
período, menos se apoie a ditadura. Não podemos esquecer que a
ditadura só se impôs porque teve apoio de uma parcela da sociedade.
O relatório pode criar uma rejeição profunda à volta de um regime
como a ditadura, mesmo de quem nunca sofreu nada naquele período. A
gente espera que o relatório vá para as escolas para que até as
crianças possam entender.
Fonte: Brasil de Fato, Mariana Desidério, 4/10/13.