Haddad e Alckmin
juntos para riscar do mapa Favela do Moinho
A Favela do
Moinho está sob disputa acirrada desde que Gilberto Kassab (PSD)
assumiu a prefeitura de São Paulo, em 2006. Naquele ano, o então
prefeito José Serra (PSDB) abandonou a administração municipal para
disputar as eleições ao governo do Estado. Kassab, seu vice e
afilhado político, assumiu a cadeira e, em 2007, como primeira
medida de disputa pela área onde está a Favela do Moinho, entrou com
uma ação para comprar o terreno pertencente a dois particulares.
Essa ação de compra geraria, automaticamente, a desapropriação da
comunidade, que teria de sair dali.
Desde então, os
moradores viram a disputa judicial tornar ainda mais difícil sua
permanência na área. Uma permanência marcada por esgoto a céu
aberto, por falta de água encanada, de energia elétrica e de
pavimentação, por violência policial e pela total omissão do poder
público.
Em 2011 e 2012,
últimos dois anos do segundo mandato de Kassab, a Favela do Moinho
sofreu dois grandes incêndios, que eliminaram mais de um terço dos
barracos da comunidade e deixaram mortos, feridos e milhares de
desabrigados.
No ano passado,
quando ainda era candidato ao governo municipal, o atual prefeito
Fernando Haddad (PT) visitou o Moinho e fez uma promessa aos seus
moradores: se eleito, resolveria a questão fundiária da comunidade e
reurbanizaria a favela, concretizando o desejo da maioria de
permanecer ali. A promessa foi gravada em vídeo e veiculada em TV
aberta como propaganda de campanha.
No cargo, porém,
Haddad deu continuidade aos planos de seu antecessor de erradicar a
Favela do Moinho. Nos últimos meses, tanto o governo municipal
quanto o governo estadual de Geraldo Alckmin (PSDB) vêm tornando a
vida dos moradores especialmente difícil, seja com incursões
ostensivas da PM e da Guarda Civil na comunidade, seja com o
descumprimento do compromisso de realizar saneamento básico na área
ou com o oferecimento, pela prefeitura, de bolsa-aluguel para quem
está na favela se mudar de lá, numa tentativa, segundo moradores e
movimentos de moradia, de esvaziar a comunidade e minguar a
resistência local.
Em reportagem de
maio de 2013 feita pela “Agência Pública” sobre o Moinho, a
assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Habitação afirmou:
a administração Haddad pretende erradicar a favela.
A questão é: por
que Haddad está empenhado em eliminar a favela que prometeu
regularizar e reurbanizar? Por que ele está disposto a assumir o
ônus político e moral do descumprimento de uma promessa tão
estratégica? Quais os interesses por trás da sua decisão? Quais os
planos para a área da favela que não incluem as pessoas que vivem
ali?
Após mais de dois
meses de apuração, o Arquitetura da Gentrificação chegou a algumas
respostas. Acompanhe agora esta “reportagem-linha do tempo” contando
a história da Favela do Moinho, os desafios que a comunidade vem
enfrentando e quem está interessado naquele pedaço de terra que, de
acordo com pesquisas, é o terceiro bairro, de uma lista com 140, com
maior índice de valorização dos preços dos imóveis entre 2008 e
2011: 182%.
Há quase três
décadas
Cravada entre
duas linhas de trem da Companhia Paulista de Trens Paulistanos
(CPTM) e no coração da cidade, o Moinho é a última favela do centro
da capital paulista. Sua história começou há cerca de 25 anos, com a
ocupação do terreno sob o viaduto Engenheiro Orlando Murgel, onde
ficava o antigo Moinho Matarazzo, que lhe rendeu o nome.
Antes dos dois
grandes incêndios de 2011 e 2012, a comunidade chegou a abrigar
1.200 famílias – cerca de 5 mil pessoas. O número hoje, após a
destruição dos barracos pelas chamas, é de 480 famílias. Alessandra
Moja, de 29 anos, é uma das lideranças da favela e integrante do
Movimento Moinho Vivo, organização política local composta por
moradores e parceiros da comunidade. Há 18 anos ali, é uma das
moradoras mais antigas entre os atuais 1.900 habitantes da favela. É
ela quem guia nossa reportagem pela história passada e recente do
Moinho, além de Caio Castor, também morador e integrante do
movimento e realizador do Projeto Comboio, juntamente com Flávia
Lobo. Desde 2012, Caio e Flávia desenvolvem um projeto independente
de pesquisa, urbanismo e comunicação na comunidade.
Em 2007, a
tentativa de compra do terreno pela gestão municipal de Kassab, com
depósito de indenização em dinheiro e pedido de posse provisória da
terra, acrescentou mais um elemento à disputa pela área.
Originalmente, a área do Moinho pertencia à Rede Ferroviária Federal
S/A. Mas, em 1999, por conta de uma dívida de IPTU, o terreno da
empresa foi a leilão. Nessa época, a comunidade já ocupava o local
há pelo menos uma década. No leilão, o empresário Ademir Donizetti
Monteiro e a empresa Mottarone Serviços de Supervisão, Montagens e
Comércio Ltda arremataram o terreno, mas não o registraram. Dessa
forma, as terras continuaram em nome da Rede Ferroviária, que foi à
falência um tempo depois, tendo seus bens e dívidas repassados ao
domínio da União.
A União, por sua
vez, pediu judicialmente a anulação do leilão. A ação ainda corre na
Justiça, após ter sido julgada improcedente em primeira instância e
a Rede Ferroviária Federal ter entrado com recurso. Assim,
prefeitura, Monteiro e Mottarone, Rede Ferroviária Federal e a União
estão na disputa pelo terreno do Moinho.
Diante de cenário
tão frágil, os moradores da favela resolveram se proteger
juridicamente também. Em 2008, com a assessoria jurídica popular do
Escritório Modelo da Pontifícia Universidade Católica (PUC), a
Associação de Moradores da Favela do Moinho entrou com uma ação
coletiva de usucapião. A ação, de acordo com o escritório, garante o
direito à propriedade às pessoas que utilizam um imóvel particular
como sua moradia por mais de cinco anos, desde que não tenham outro
imóvel e as famílias sejam de baixa renda.
Em abril de 2008,
o juiz federal José Marcos Lunardelli deu decisão provisória
assegurando a posse para os moradores até o julgamento final da
ação, que não tem data para acontecer. Com isso, os moradores talvez
estivessem seguros de que permaneceriam na Favela do Moinho sem
serem ameaçados de despejo. Ou talvez não.
Os incêndios
Em 2011, a Favela
do Moinho foi atingida por uma tragédia. Na manhã de 22 de dezembro,
um fogo de grandes proporções tomou o antigo edifício do Moinho
Matarazzo, dentro e em torno do qual viviam 450 famílias da favela –
cerca de 1.800 pessoas. Todas elas ficaram desabrigadas. Um terço
das moradias da comunidade foi eliminado. Na época, a imprensa
noticiou a morte de duas pessoas no incêndio. Os moradores, porém,
acreditam que foram pelo menos 30.
Embora o edifício
fosse de alvenaria, ao contrário dos barracos de madeira que ocupam
a maior parte da comunidade, o fogo se espalhou rapidamente pelo
prédio. Essa é uma das principais estranhezas que Alessandra Moja
aponta sobre o caso: “desde quando tijolo pega fogo?”, pergunta,
reafirmando que a velocidade e intensidade com que as chamas se
espalharam não são explicadas por nenhuma causa espontânea ou
natural.
Alegando que o
fogo abalou a estrutura do prédio e que havia risco de desabamento,
o prefeito Gilberto Kassab decidiu pela implosão do que havia
sobrado dele. Imediatamente, ainda em dezembro, a prefeitura
conseguiu um documento que garantia ao município a posse de parte do
imóvel.
Dez dias depois
do incêndio, em 1º de janeiro de 2012, pouco depois das cinco da
tarde e a um custo de R$ 3,5 milhões, 800 quilos de dinamite
instalados no edifício foram detonados.
Quando a nuvem de
poeira formada pela implosão baixou, moradores da favela,
jornalistas, curiosos e técnicos que assistiam à operação viram, com
surpresa, que o edifício havia ficado quase inteiro em pé. Os 800
quilos de explosivos, considerados por muitos especialistas um
excesso naquele caso, não foram suficientes para levar abaixo o
antigo prédio do Moinho Matarazzo. Em entrevista à imprensa, Kassab
deu sua explicação para o fiasco da implosão que, em sua conta, foi
nota 10. O que ficou em pé do prédio – quase tudo – foi demolido
posteriormente por tratores e escavadeiras.
A medida seguinte
de Gilberto Kassab foi construir um muro de concreto armado de 55
metros de comprimento e 50 centímetros de base construído de fora a
fora, dividindo a favela ao meio e isolando os moradores do terreno
onde ficavam os barracos atingidos pelo incêndio. Além de impedir
que os moradores reocupassem a área destruída, a construção obstruiu
uma importante rota de fuga no caso de um novo incêndio. Cercados
por duas linhas férreas em uso e pelo muro de concreto de Gilberto
Kassab, os moradores do Moinho passaram a contar com uma única rota
de fuga, situada sob o viaduto Engenheiro Orlando Murgel, com
entrada pela rua Dr. Elias Chaves, por onde o caminhão dos bombeiros
não consegue passar.
Laudo do corpo de
bombeiros emitido em outubro de 2012 aponta a “necessidade imediata
de ser criada uma rota de fuga alternativa (…) a qual propicie (…) o
acesso operacional das viaturas de combate a incêndios e das equipes
do corpo de bombeiros”. A rota sugerida no laudo seria pela rua
Silva Pinto, cujo trajeto conduz à parte de trás do muro construído
por Kassab.
Um ano depois da
emissão do laudo, a rota de fuga ainda não havia sido construída, e
os equipamentos do Programa de Prevenção contra Incêndio (Previn) em
assentamentos precários, criado pela gestão Kassab em 2010, não
tinham sido instalados e distribuídos.
Em 17 de setembro
de 2012, outro incêndio atingiu a favela do Moinho, destruindo cerca
de 80 barracos, matando uma pessoa e deixando pelo menos 300
desabrigadas. Um total de 810 famílias que ficaram sem moradia,
tanto no primeiro quanto no segundo incêndio, foram cadastradas pela
prefeitura para receber uma bolsa-aluguel de R$ 450 por família
(valor de 2013). Com esse dinheiro, os desabrigados do Moinho
tiveram de se mudar para moradias precárias, favelas ou cortiços,
longe do centro da cidade. Além do valor insuficiente, os atrasos
constantes no pagamento da bolsa-aluguel fizeram que muitas pessoas
fossem despejadas de suas casas. Algumas delas voltaram ao Moinho.
Haddad não só herdou os atrasos de Kassab como os perpetuou em sua
gestão.
Haddad e a
promessa de urbanizar e regularizar o Moinho
Visto como
potencial contraponto a Kassab e suas políticas habitacionais
excludentes, Fernando Haddad começou sua campanha eleitoral de 2012
dando prioridade aos moradores da última favela do centro da cidade
mais rica da América Latina, ignorados há décadas pelo poder
público. Em visita à comunidade do Moinho, o candidato entrou na
casa de Zeza, moradora local, e gravou um vídeo que se tornou
propaganda política de sua candidatura. À dona Zeza e a todos os
habitantes da comunidade, Haddad prometeu trabalhar para levar
saneamento básico e regularização fundiária para a área.
Primeiro grande
ato da comunidade
A promessa foi
feita, mas não foi cumprida até o décimo mês do primeiro ano de
mandato do petista. Em 5 de julho de 2013, os moradores da Favela do
Moinho organizaram o primeiro grande ato da comunidade para pedir
que Haddad honrasse o compromisso firmado. Em marcha pelas ruas do
centro da cidade, eles caminharam da favela até a sede da
prefeitura, onde uma comissão de negociação já os esperava.
Funcionários da administração municipal souberam do protesto de
antemão por meio do Facebook da comunidade e pela imprensa, e por
isso ficaram a postos.
Lideranças da
favela foram recebidas pelo secretário municipal de Habitação, José
Floriano, e pelo secretário de Relações Governamentais, João Antonio
da Silva Filho. De saída, Floriano ofereceu “um apartamento que vale
R$ 150 mil” fora do Moinho e indenização aos moradores.
A derrubada do
muro de Gilberto Kassab e a construção da rota de fuga, implantação
de sistema de água, luz e esgoto, coleta de lixo e a execução do
Previn, o programa de prevenção a incêndios, entre outras
exigências, foram demandas básicas apresentadas nesse primeiro
encontro entre lideranças da favela e o poder público. As lideranças
citaram à comissão da prefeitura o laudo de 2012 dos bombeiros
recomendando a criação da rota de fuga. Informaram também que o
mesmo documento deu base à determinação do juiz Domingos de Siqueira
Frascino, que decidiu, em 13 de março de 2013, que o município teria
um mês para construir a rota.
Na reunião ficou
decidido, a pedido dos moradores, que a Secretaria de Habitação
(Sehab) se comprometia a convidar todos os órgãos responsáveis por
implementar as demandas apresentadas a visitarem o Moinho em 11 de
julho. Logo depois do encontro, a assessoria de Fernando Haddad
ligou para Alessandra Moja, liderança do Moinho, e marcou uma
reunião entre a comunidade e o prefeito para a manhã de 12 de julho,
na sede da prefeitura.
Em 11 de julho,
como combinado, foram à Favela do Moinho José Floriano, o então
subprefeito da Sé Marcos Barreto, o secretário-adjunto de Relações
Governamentais José Pivato e uma comissão formada por Defesa Civil e
Bombeiros. A visita, segundo os gestores públicos, teve como
objetivo visualizar as reivindicações feitas dias antes na
prefeitura e buscar meios para efetivá-las. Aos moradores presentes
no encontro, o secretário José Floriano afirmou que apenas em 10 de
agosto estabeleceria uma data de início das obras.
Novas promessas
Na reunião com
Haddad no dia seguinte, os moradores voltaram a falar das demandas
básicas e apresentaram o laudo dos bombeiros sobre a necessária rota
de fuga. Na ocasião, o prefeito pareceu ter entendido a urgência do
pedido e prometeu a derrubada do muro para 15 de julho, dali três
dias. Outro compromisso assumido por Haddad a pedido dos moradores
foi a criação de um grupo de trabalho formado por membros da
prefeitura e lideranças da favela. O grupo iria discutir, de modo
frequente, o andamento das melhorias na comunidade.
O prefeito também
se comprometeu a manter os moradores na ZEIS (Zona Especial de
Interesse Social) onde está inserida a Favela do Moinho (ZEIS 3 –
C009 (SE)). As áreas de ZEIS têm perímetro delimitado, são
destinadas à reurbanização, regularização fundiária e construção de
habitação de interesse social, e são regidas por legislação
específica (Decreto 44.667/2004). Com essa promessa, Haddad
descartou a possibilidade de retomada da oferta que havia sido feita
por Kassab, de transferir os moradores do Moinho para habitação
permanente a ser construída perto da ponte dos Remédios, na Zona
Oeste da cidade.
A reunião com o
prefeito foi registrada em
vídeo pelas lideranças da favela.
A derrubada do
muro
Chegada a data
prometida para a derrubada do muro, ninguém apareceu na comunidade
para executar o serviço. De acordo com os moradores, apenas técnicos
da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp)
estiveram no Moinho querendo saber o número de casas de alvenaria e
madeira existentes para instalar os relógios de medição. Em 16 de
julho, bombeiros visitaram a favela, caminharam por lá e, da mesma
forma que chegaram sem falar com ninguém, foram embora sem fazer
contato com a comunidade.
Em 29 de julho,
aconteceu a primeira reunião do grupo de trabalho formado por
moradores do Moinho e gestores públicos. O encontro foi realizado na
Secretaria Municipal de Habitação, no centro da cidade, e contou com
a presença de lideranças da favela e com o então chefe de gabinete
da Subprefeitura da Sé, Maurício Dantas (hoje subprefeito interino).
Segundo os moradores, pouco se avançou naquela primeira reunião. Ao
contrário do que pediu a comunidade, não estava presente no encontro
nenhum representante da Sehab ou da Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Urbano, encabeçada por Fernando de Mello Franco.
Após duas semanas
de atraso no prazo dado pelo prefeito para a derrubada do muro que
divide a favela, os moradores do Moinho decidiram, por conta
própria, abrir a rota de fuga. Em 30 de julho começaram a operação
lenta de derrubada de 4 metros de largura da estrutura de concreto
armado. Essa era a única parte possível de ser demolida, já que o
restante do muro de 55 metros de extensão hoje serve de apoio a
novas moradias, construídas após o incêndio de 2011.
Em 2 de agosto,
uma sexta-feira, por volta das 18 hs, a líder comunitária Alessandra
Moja recebeu no celular uma ligação curiosa: era João Antonio,
secretário de Relações Governamentais, dizendo que os moradores do
Moinho deveriam sair dali porque “o Ministério Público está em cima
de nós”. ”Não dá pra gente brigar com o mundo pra vocês ficarem aí”,
disse o secretário.
Em relato no
Facebook da comunidade, Caio Castor dá detalhes do telefonema. “O
secretário ligou no celular da Alessandra (…) dizendo basicamente
que não poderíamos permanecer na área e que eles tinham resolvido
que daqui 2 anos e meio nós iríamos para o terreno da Rua do Bosque,
no centro [terreno onde a prefeitura afirma, desde a administração
anterior, que serão construídas moradias definitivas para a
população do Moinho. As obras, no entanto, ainda não foram
iniciadas]“. Para Castor, a “ligação atravessada” do secretário se
deu por conta do início da derrubada do muro pela comunidade alguns
dias antes, anunciada por meio das redes sociais.
O dia 4 de
agosto, domingo, foi marcado pelo Segundo Grande Ato em prol da
Favela do Moinho. Dessa vez, a manifestação foi realizada na própria
favela. Houve apresentações de músicos da comunidade e a abertura
oficial do muro, com britadeiras e marretas empunhadas pelos
próprios moradores.
A Polícia Militar
apareceu durante a tarde com o intuito de impedir a derrubada da
estrutura, mas precisou recuar. Os PMs foram informados pelas
lideranças sobre a decisão do juiz autorizando a abertura da rota de
fuga e sobre o direito de os moradores permanecerem na área graças à
tutela antecipada de usucapião concedida pelo juiz federal José
Marcos Lunardelli em 2008.
Em 5 de agosto de
2013 aconteceu a segunda reunião do grupo de trabalho formado por
moradores e poder público para discutir a reurbanização da favela.
Dessa vez, o encontro foi realizado na própria comunidade. Ao verem
a abertura no muro feita um dia antes, os gestores não esconderam o
ar de reprovação. Eles apresentaram aos moradores uma proposta da
prefeitura. Entre os itens, algumas das reivindicações já feitas
pela comunidade e um dado novo: o governo municipal pedia que as
pessoas não reocupassem a área livre onde aconteceu o primeiro
grande incêndio. Insatisfeitas com a oferta, as lideranças se
comprometeram a fazer uma contrapropostaa ser entregue dali uma
semana, no dia 12 de agosto, durante a terceira reunião do grupo de
trabalho.
Começa o silêncio
do poder público
Em 8 de agosto,
uma empreiteira contratada pela prefeitura criou a rota de fuga, que
consistiu na retirada de parte do entulho do antigo prédio demolido
e o mato que se acumulou em quase dois anos de abandono. A limpeza
restringiu-se à criação de uma pequena faixa livre de lixo e
vegetação que continuavam obstruindo a passagem dos moradores mesmo
depois da derrubada parcial do muro.
Prevista para
acontecer em 12 de agosto, a terceira reunião com o grupo de
trabalho no Moinho não se realizou. Os integrantes do poder público
não apareceram na favela na hora marcada e deixaram a comunidade
esperando.
Desde então, e
até hoje, nenhum outro encontro semanal foi realizado, embora os
moradores permaneçam aguardando a comissão da prefeitura sempre às
segundas-feiras, às três da tarde, na Casa Pública da comunidade. As
lideranças acreditam que a recusa do poder público em conversar é
uma represália à não aceitação das propostas do governo municipal
pelos moradores e à afirmação da comunidade de que voltariam a
ocupar o terreno antes isolado pelo muro. “A maior preocupação deles
era garantir que o terreno não fosse reocupado. Em todas as reuniões
repetíamos seguidamente que ocuparíamos de forma organizada e em
todas eles perguntavam e repetiam essa preocupação excessiva. Isso
evidencia o quanto essa gestão está muito mais preocupada em tirar
das pessoas do que garantir a segurança e os direitos”, afirma
Flávia Lobo, membro do Movimento Moinho Vivo.
Reocupação do
terreno
Com a rota de
fuga criada, em 23 de agosto os moradores fizeram o Terceiro Grande
Ato em prol da favela com uma reocupação simbólica do terreno onde
aconteceu o incêndio de 2011. Eles capinaram o campo, limparam,
tiraram entulho e cinzas. Durante a reocupação, instalaram a
estrutura de madeira do que será a sede da associação de moradores.
Essa retomada do terreno vinha sendo discutida há tempos no âmbito
do Projeto Comboio, em parceria com a comunidade. A proposta é que a
reocupação da área, que ainda não foi iniciada, seja feita de forma
organizada para permitir, inclusive, que as obras de saneamento e
instalações elétricas prometidas por Haddad possam ser feitas na
favela. Segundo laudo dos bombeiros de 2012, para realizar as
melhorias será preciso desadensar algumas áreas. O novo espaço
aberto pelos moradores no antigo terreno será essencial para receber
os barracos dos que tiverem de deixar suas casas para as obras de
melhorias.
Aumentam as
incursões da polícia
Desde o início
das manifestações da comunidade pelo cumprimento das promessas de
campanha de Fernando Haddad, a Polícia Militar e a Guarda Civil
Metropolitana intensificaram suas incursões na favela, sempre com
armas em punho e postura intimidadora diante da comunidade,
denunciam os moradores. Além disso, desde a derrubada do muro, em 4
de agosto, as lideranças da favela não conseguiram mais marcar
reuniões do grupo de trabalho com o poder público nem fazer contato
consistente com os gestores, seja por telefone ou e-mail.
Em 10 de setembro
de 2013, a PM fez uma nova incursão no Moinho. Naquele dia,
acontecia nos fundos da favela uma assembleia com moradores,
funcionários da Sehab municipal e o promotor de Justiça de Habitação
e Urbanismo Maurício Ribeiro Lopes. A assembleia foi interrompida
por um morador que avisou que a PM estava “barbarizando” a
comunidade. Lopes foi instado pelos presentes a intervir junto aos
policiais. Acompanhado por dezenas de moradores, o promotor se
dirigiu ao barraco onde estavam os policiais, supostamente à procura
de um traficante. Após uma breve conversa, os PMs deixaram a favela
“escoltados” por Lopes e sob os gritos de “Fora!” dos moradores. No
vídeo a seguir, o promotor aparece em uma ligação explicando o
ocorrido ao assessor do secretário de Segurança Pública, Eduardo
Grella. Sobre a audiência do dia 10 de setembro falaremos mais
abaixo, no item
“Ou vai ou racha. Racha”.
PPP, CPTM e
Secretarias
Em 29 de abril de
2013, a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Habitação,
a Sehab, informou ao repórter Luciano Onça, da “Agência Pública”,
que a Favela do Moinho seria erradicada e que as famílias seriam
atendidas com unidades habitacionais definitivas. A informação ia na
contramão da promessa feita por Haddad em 2012, de regularizar a
questão fundiária da favela e reurbanizá-la.
A partir dessa
declaração oficial, o Arquitetura da Gentrificação começou a
investigar quais os planos concretos do poder público para o
terreno. O silêncio repentino da prefeitura sobre as demandas da
comunidade após a derrubada do muro, as incursões policiais na
favela e a ligação do secretário João Antonio para Alessandra
deixavam entrever que Haddad estava mesmo disposto a descumprir sua
promessa de campanha.
Em mãos, tínhamos
três caminhos para a apuração: o primeiro, a ligação do secretário
municipal de Relações Governamentais a Alessandra comunicando a
necessária saída dos moradores da Favela do Moinho; o segundo, a
Parceria Público-Privada entre governo do Estado, município e
empreiteiras para a construção de 20 mil unidades de habitação
popular no centro da cidade. Em documentos oficiais, a área do
Moinho está inserida no perímetro do projeto, conhecido como PPP de
Habitação do Centro, e que prevê a desapropriação de mais de 900
imóveis na região central para a construção das moradias.
Por fim, tínhamos
um vídeo da CPTM divulgado em 2012 detalhando o enterramento dos 12
km de trilhos do trecho Lapa-Brás, e a construção, na superfície
desse enterramento, de avenidas, ruas, parques e edifícios. A Favela
do Moinho aparece no vídeo quando se mostra os trilhos na
atualidade. Com a projeção em 3D das futuras obras concluídas, a
comunidade desaparece no vídeo, e em seu lugar surge a estação
Campos Elíseos da CPTM.
Os trilhos
representam um entrave para o mercado imobiliário, uma vez que
cindem aquele trecho da cidade, dificultando transposições e
retirando espaço linear de possíveis construções. Da mesma forma, a
Favela do Moinho também é um problema para as construtoras, já que
favelas desvalorizam os imóveis no seu entorno.
O projeto de
enterramento dos trilhos estava previsto na Operação Urbana
Consorciada Lapa-Brás, de 2011. O projeto não foi adiante porque
nenhum concorrente da licitação preencheu os requisitos mínimos.
CPTM primeiro
A assessoria de
imprensa da CPTM confirmou à reportagem que a empresa “está
desenvolvendo projeto funcional para a nova estação na região
central de São Paulo. A conclusão do estudo, prevista para o final
deste ano [2013], indicará a melhor localização para implantação da
nova estação, bem como seus acessos, contemplando a inserção urbana.
A construção dessa estação dependerá também de entendimentos com
outros órgãos para negociação de área no entorno da região onde
ficava [sic] a favela do Moinho”.
“A nova estação”,
prossegue a assessoria, “terá o papel de melhorar a distribuição de
demanda no eixo estruturador das linhas da CPTM, aliviando a
transferência entre as linhas da CPTM na Estação da Luz”. O nome da
nova estação informado pela assessoria no título do e-mail de
resposta era Bom Retiro, e não Campos Elíseos, como aparece no vídeo
de 2012 da companhia.
Em 31 de agosto
deste ano, o jornal “Folha de S. Paulo” publicou reportagem
anunciando a criação de nova estação de trem no centro da cidade. No
texto, a nova estação era citada em uma única frase dita pelo
secretário estadual de Transportes Metropolitanos, Jurandir
Fernandes, como estação Campos Elíseos, a ser construída em frente à
Luz. O nome anunciado pelo secretário não bate com o nome da estação
informada, via e-mail, pela assessoria da CPTM. Da mesma forma, a
localização dada por um e outro diverge um pouco: a estação Bom
Retiro, ao que parece, fica no entorno imediato à Favela do Moinho;
já a Campos Elíseos fica em frente à Luz, distante cerca de dois
quilômetros da favela.
Apesar das
disparidades pontuais de nomes e localização, os planos de nova
estação da CPTM são claros, e têm potencial para se sobrepor à
favela, dada a magnitude das obras do gênero feitas em São Paulo.
Esconde-esconde
da PPP
Para saber se
haveria conflito ou complementação entre o projeto da CPTM e a
Parceria Público-Privada de Habitação dos governos do Estado e do
município, a reportagem fez contato com a Secretaria Estadual de
Habitação. Por e-mail, a assessoria da Sehab estadual respondeu que
“não prevê, em seu projeto de PPP – Parceria Público Privada para
viabilização de empreendimentos habitacionais no centro paulistano,
intervenções diretas na Favela do Moinho. Isso porque consta que a
Secretaria Municipal de Habitação tem um projeto específico para a
área”.
A afirmação da
Sehab estadual contraria o que está escrito no edital de chamamento
da Casa Paulista, agência do Estado que coordena a PPP. No
documento, o Moinho é citado no setor A do projeto subdividido em
seis lotes que sofrerão intervenção urbana. Com base na informação
recebida, solicitamos à assessoria de imprensa da Secretaria
Municipal de Habitação uma entrevista com o secretário José
Floriano. A entrevista foi negada com o argumento de que Floriano
estava sem agenda para nos receber. Pediram que enviássemos as
perguntas por e-mail, o que foi feito em seguida. A questão
principal era saber quais eram os planos que a Sehab municipal tinha
para o Moinho.
Simultaneamente
ao contato com esta secretaria, procuramos a assessoria de imprensa
da Secretaria Municipal de Relações Governamentais para saber
detalhes sobre o telefonema do secretário João Antonio da Silva
Filho para Alessandra Moja, moradora do Moinho, em 2 de agosto.
Nossas dúvidas
eram: que tipo de pressão ele alegou estar sofrendo do Ministério
Público? Por que o poder público deixou de comparecer às reuniões
com o grupo de trabalho na favela desde 12 de agosto? Por que
retirar os moradores da Favela do Moinho se a promessa de Fernando
Haddad era exatamente o oposto? A entrevista pessoal com o
secretário também foi negada por falta de agenda, e pediram o envio
das perguntas por e-mail, o que também foi feito em seguida.
Em 20 de agosto,
a assessoria de imprensa do secretário João Antonio enviou à
reportagem uma nota oficial dizendo, entre outras coisas, que “em
face do processo de negociação da Prefeitura de São Paulo com a
comissão de representantes dos moradores da Comunidade do Moinho, a
Secretaria Municipal de Relações Governamentais (SMRG) e a
Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB) informam que a
administração municipal cumpre seu papel de manter um canal
permanente de conversação com as lideranças locais, seja na sede do
governo, seja na própria comunidade, como já foi feito em diversas
ocasiões, com a presença de técnicos e equipes da Secretaria
Municipal de Habitação, da Secretaria Municipal de Relações
Governamentais e da Subprefeitura da Sé”.
A nota foi
assinada por João Antonio e pelo secretário municipal de Habitação,
José Floriano. Nenhuma das cinco perguntas pontuais enviadas por
e-mail anteriormente foi respondida. Por telefone, entramos em
contato com Djair Galvão, assessor de imprensa da Secretaria
Municipal de Relações Governamentais para obter as respostas. O
assessor continuou sem responder com precisão às questões objetivas,
disse que o assunto era “delicado” e que o órgão que teria as
informações sobre possíveis planos do governo para a Favela do
Moinho era a Secretaria Municipal de Habitação.
Também por
telefone, fizemos contato com a assessoria de imprensa da Sehab
municipal. Contradizendo o colega Djair Galvão, o assessor Nivaldo
Carboni disse que as informações sobre o Moinho estão a cargo da
Secretaria Municipal de Relações Governamentais e que a secretaria
para a qual ele trabalha não tem nenhum plano concreto para a Favela
do Moinho. Confrontado com informações da Sehab estadual que o
contradiziam, Carboni se irritou: “eu já te disse, não adianta você
ficar me cercando, eu não tenho informações sobre isso [sobre os
planos para o Moinho que a Sehab estadual afirma que a Sehab do
município tem]. Por fim, questionado sobre a nota que sua assessoria
emitiu em 29 de abril de 2013 dizendo que a Favela do Moinho seria
erradicada, Nivaldo Carboni disse que a informação não procede, mas
que também não estava “desmentindo ninguém”.
Mapeamento e
clareza
Não é de se
estranhar o empurra-empurra de uma secretaria para outra e o
mistério em torno da PPP de Habitação do Centro e dos planos para o
Moinho no contexto desse projeto. Anunciada pelo governo do Estado
em abril de 2012, a PPP nunca foi devidamente exposta à apreciação
da sociedade quando ainda estava em fase de elaboração. O Instituto
Urbem, vencedor da licitação para desenvolver o projeto, concluiu os
estudos em outubro de 2012. Mais de um ano depois, esses documentos
nunca foram apresentados na íntegra à população.
Em junho de 2013,
o governador Geraldo Alckmin assinou um decreto desapropriando mais
de 900 imóveis no centro da cidade para serem usados como moradia na
PPP. Em tese, os imóveis estavam vazios ou subutilizados. Eram
“vazios urbanos”, como informou Milton Braga, um dos arquitetos do
Urbem que desenvolveu o projeto.
Mas não demorou
até que os primeiros proprietários atingidos pelo decreto, dezenas
deles, viessem a público reclamar estarem sendo desalojados de suas
casas e comércios há anos consolidados. Diante de tantos
desencontros e obscuridades, o promotor de Justiça Maurício Ribeiro
Lopes, da Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público,
decidiu intervir, e conseguiu, por meio de liminar concedida pela
Justiça em 23 de agosto, suspender temporariamente a PPP. Em atitude
inesperada, porém, o desembargador Xavier de Aquino, que havia
paralisado o projeto, voltou atrás e revogou a própria liminar em 16
de outubro, pondo fim à suspensão da PPP. A ação ainda segue na
Justiça e espera a decisão de outros dois desembargadores.
Embora as três
secretarias consultadas pela reportagem tenham se furtado a
responder objetivamente às questões sobre a PPP e o Moinho, um
mapeamento dos imóveis desapropriados feito de forma independente
deixou visível, literalmente, os possíveis planos do poder público
para a favela. Com uma lista com mais de 900 endereços contemplados
no decreto e a ajuda do Google Maps, a bióloga Cláudia Roedel,
administradora da página “Desalojados do Alckmin” no Facebook e
membro da Associação Acorda Brasil, que está sendo criada para dar
suporte aos moradores afetados pela PPP, vem marcando no mapa
virtual cada um dos imóveis que serão desapropriados. O mapeamento
ainda está em processo, mas os achados de Cláudia até o momento são
reveladores sobre os planos de Alckmin e Haddad para a região onde
está o Moinho.
No mapa, a Favela
do Moinho aparece cercada por propriedades que darão lugar às novas
e “requalificadas” moradias propostas no projeto do governo
estadual.
Ali, onde o vídeo
da CPTM feito em 2012 mostra uma estação de trem, onde a assessoria
de imprensa da CPTM aponta a criação de uma estação de trem, e onde
o secretário de Transportes Metropolitanos sugere que será
construída uma estação de trem, está cravada a área da qual faz
parte a Favela do Moinho. Em um projeto de R$ 4,6 bilhões como a PPP
de Habitação, que prevê a “requalificação” urbana da região central
para abrigar famílias que ganham até 16 salários mínimos (mais de R$
12 mil) e que tem como agentes de construção os governos estadual e
municipal de acordo firmado com grandes empreiteiras, é evidente que
favela alguma compõe bem com a paisagem.
A Favela do
Moinho está marcada para ser riscada do mapa.
Ou vai ou racha.
Racha
Conforme o tempo
passa e os certames para a execução da PPP e da nova estação de trem
se aproximam, é cada vez mais urgente a retirada dos moradores da
área do Moinho. Agora o poder público municipal passou a usar outro
artifício para acelerar o desmonte da favela. Sem que ninguém
estivesse esperando – e sem que a comunidade fosse consultada –,
Maria José Calderine, da Secretaria Municipal de Habitação, marcou
uma assembleia geral no Moinho para 10 de setembro. A funcionária
limitou-se, por telefone, a comunicar a data ao Escritório Modelo da
PUC, que dá assessoria jurídica aos moradores, e perguntar se
estariam presentes na assembleia. O Escritório Modelo repassou o
recado à comunidade, que recebeu a notícia com surpresa.
Na data marcada,
os moradores se reuniram no terreno recém-capinado nos fundos da
favela, onde aconteceu o primeiro grande incêndio. Ali, foram
instalados um microfone e uma caixa de som para Maria José se
pronunciar. Acompanhando a funcionária da Sehab estava o mesmo
promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo Maurício Ribeiro Lopes,
que conseguiu liminar suspendendo temporariamente a PPP.
O tópico mais
importante da reunião foi a bolsa-aluguel, mas não a paga aos
antigos moradores do Moinho que ficaram sem suas casas por conta dos
incêndios e que precisaram alugar um barraco longe dali. O assunto
principal da assembleia foi a bolsa-aluguel que a Secretaria
Municipal de Habitação estava disposta a pagar para que os moradores
remanescentes do Moinho saíssem de lá. Ao aceitar o auxílio,
explicou Maria José na reunião em 10 de setembro, o morador teria de
se mudar da favela, e seu barraco seria destruído em seguida para
que não houvesse nova ocupação.
A tática não é
nova, denunciam militantes pelo direito à moradia: o poder público
se omite na obrigação de resolver os problemas de saneamento básico
da favela, perpetuando a precariedade da vida de quem nela mora.
Depois, acontecem as incursões policiais intimidadoras, as ameaças
de despejo e o silêncio do governo sobre o futuro da comunidade. Em
seguida, surge a oferta da bolsa-aluguel para que os habitantes
tentem uma moradia melhor fora da área, com a promessa de que uma
habitação definitiva será dada pelo governo num futuro próximo.
Quando e onde essa habitação será entregue, não é dito.
O cansaço, a
insegurança e o medo do despejo fazem que alguns moradores aceitem a
oferta da bolsa, suficiente para pagar aluguel numa outra favela ou
cortiço longe dali. Com a favela esvaziada, mina-se a resistência da
comunidade, e a retomada do espaço pelo poder público torna-se mais
fácil.
A tática do
governo Haddad, que culminou com a bolsa-aluguel oferecida pela
Sehab, é a mesma usada por Gilberto Kassab em sua gestão para tentar
reaver o terreno do Moinho. Alguns dias antes da visita surpresa de
Maria José Calderine à favela, Caio Castor havia relatado o que a
mesma Sehab municipal fez em 2012 com os moradores, tentando
retirá-los do terreno por vias aparentemente “não-violentas”.
Arco Tietê: sai o
Moinho, entra o mercado
Enquanto esta
reportagem era produzida, a Prefeitura de São Paulo lançou, em
setembro, o hotsite oficial do Arco Tietê, parte central do
megaprojeto de intervenção urbana chamado Arco do Futuro,
carro-chefe da campanha de Fernando Haddad em 2012. O objetivo do
Arco Tietê é criar diversas centralidades espalhadas ao longo das
marginais do rio Tietê, gerando polos de emprego, ampliando e
ramificando o viário e aproximando, assim, moradia, trabalho e
transporte. O projeto abarca pelo menos 22 bairros da cidade em
cerca de 5 milhões de metros quadrados, e está previsto para ser
realizado ao longo de 30 anos e ao custo de “dezenas de bilhões de
reais”, como informou o secretário Municipal de Desenvolvimento
Urbano, Fernando de Mello Franco.
E o Moinho está
no arco de Fernando Haddad. Na proposta de viabilidade do Arco Tietê
apresentado no hotsite da prefeitura e que serve de diretriz aos
consórcios que apresentarão projetos, na área da favela estão
contempladas duas importantes intervenções: o enterramento dos
trilhos e a criação de um equipamento público que servirá como
“projeto indutor”. “No Estatuto da Cidade, o termo ‘indutor’ tinha o
objetivo de forçar a terra urbana a cumprir sua função social”,
informa a arquiteta e urbanista Luciana Itikawa, do Centro Gaspar
Garcia de Direitos Humanos. Luciana diz que é importante, no
entanto, distinguir os Instrumentos Indutores de Desenvolvimento
Urbano do Estatuto da Cidade dos “projeto indutores” e “obras
indutoras”.
“‘Instrumento
Indutor’, de fato, é um termo técnico mas, nesse caso, ‘projeto
indutor’ ou ‘obra indutora’ estão sendo utilizados no Projeto Arco
Tietê como âncoras inseridas em projetos abrangentes de mudança de
uso e ocupação do solo, e não parece que têm o mesmo viés de
correção, como o IPTU progressivo no tempo, ou os PEUCs
(Parcelamento, Edificação ou Utilização compulsórios), que,
teoricamente, foram pensados para forçar o uso de terrenos vazios ou
ociosos que eram inutilizados muitas vezes com o propósito de
retenção especulativa”, explica Luciana.
Um “projeto
indutor”, nesse caso uma possível estação de trem na área do Moinho,
é um equipamento que irá reconfigurar toda a orla e, sobretudo, irá
adensar o entorno, segundo as regras do Plano Diretor Estratégico,
que determina a potencialização do uso da terra nas áreas onde há
transporte de massa. No entanto, da maneira como está sendo mostrado
no Arco Tietê, o “projeto indutor” poderá ter um efeito contrário,
segundo a urbanista. Em vez de garantir a democratização do direito
à cidade, poderá gerar valorização imobiliária do entorno e afastar
da região a população de menor renda. ”Não está claro se as famílias
que seriam removidas devido às obras da estação e ao encarecimento
do entorno poderão ser contempladas em programas habitacionais
sociais na região”, diz Luciana Itikawa.
Assim como no
projeto de PPP de Habitação e no projeto de criação de uma nova
estação da CPTM, até o momento os moradores da Favela do Moinho não
foram consultados sobre suas necessidades e planos pelos gestores
responsáveis pelo Arco Tietê.
Novo laudo, nova
aposta
Por fim, a mais
recente ameaça à permanência da comunidade na Favela do Moinho: um
novo laudo do Corpo de Bombeiros, emitido em 1º de agosto de 2013,
recomenda a desocupação imediata da área por medidas de segurança. O
documento foi conseguido por acaso pelos moradores por meio de um
funcionário da CPTM. Em contatos feitos com a prefeitura após a data
de sua emissão, a gestão Haddad afirmava que ainda não estava
pronto.
Com distância de
menos de um ano entre um laudo e outro, os dois documentos são muito
parecidos em seu conteúdo no que se refere à recomendação da criação
da rota de fuga. No entanto, no documento deste ano, na última das
30 linhas que o compõem, foi adicionada a frase: “sob o aspecto de
segurança contra incêndio a solução é a imediata desocupação do
local”.
Na reunião que
teve na prefeitura com lideranças da favela em 12 de julho, Fernando
Haddad fez um comentário que ganha outros contornos diante do novo
documento dos bombeiros: “aquele terreno, se não for urbanizado
emfunção de questões técnicas e jurídicas [grifo nosso], não vai
servir à exploração privada”.
Minutos depois da
fala do prefeito, o secretário Municipal de Habitação José Floriano
insistiu na necessidade de uma nova avaliação do Corpo de Bombeiros
mesmo com um laudo já pronto, e declarou: “pode ser que não seja o
muro que eles queiram [derrubar], pode ser o outro lado… o que eles
definirem a gente faz [grifo nosso]“.
Um dia antes
daquela reunião com o prefeito, o mesmo Floriano, em visita à Favela
do Moinho, já havia “adiantado” aos moradores que só poderia dar uma
data de início das obras de melhoria em 10 de agosto – mesmo mês de
emissão do laudo.
Com a potencial
não urbanização por motivos técnicos – o novo parecer dos bombeiros,
nesse caso –, com um claro interesse da CPTM pelo local para a
criação de uma nova estação, e com a valorização do preço da terra
com a PPP e o Arco Tietê no entorno do Moinho, parece estar pronto,
já há algum tempo, o cenário que pode por fim à última favela do
centro da cidade.
Embora seja foco
de disputa, a Favela do Moinho é motivo de união: união dos
interesses que movem governos estadual e municipal, CPTM e setor
imobiliário em direção àquela região. Para todos os efeitos, a
Favela do Moinho é o que unifica o discurso e as políticas públicas
de Alckmin e Haddad, na medida em que ambos veem e tratam a
comunidade como o entrave ao progresso a ser erradicado do centro da
mais rica cidade da América Latina.
A reportagem
tentou ouvir o governador Geraldo Alckmin e o prefeito Fernando
Haddad sobre o caso. A assessoria de Alckmin informou que a posição
oficial do governador é a mesma da Sehab estadual e da CPTM. A
assessoria de Fernando Haddad não enviou qualquer resposta até o
fechamento desta matéria.
Fonte: Brasil de Fato, Sabrina Duran e Fabrício Muriana, [Da
Repórter Brasil], 22/10/13.