FRANCISCO, OU A CONSTRUÇÃO DE UM PAPA
Por Frederico José Falcão
A eleição de Jorge Mario Bergoglio para o mais alto posto da última
monarquia absoluta europeia viu-se cercada de uma audiência
parcialmente diversa daquela que, em geral, acompanhou as escolhas
dos últimos papas da Igreja Católica. Em razão da enorme expansão
das comunicações ou por motivos menos nobres (os inúmeros escândalos
que afligem a hierarquia católica em todo o mundo), na verdade
ocorreu nos últimos dias uma concentração das preocupações da grande
mídia – e no Brasil as Organizações Globo reproduzem isso à
perfeição – com jornalistas direcionados, “especialistas” convidados
a se manifestar e toda sorte de palpiteiros que, baseados em suas
“análises” e “conhecimentos” do funcionamento das coisas vaticanas
se arvoraram a levantar o nome do futuro pontífice. Ficou evidente
pelo resultado do conclave que esses experts tinham tantas
informações realmente relevantes como as dos que “chutam” qualquer
resultado antes de um jogo de futebol.
Não satisfeitos com as “barrigas” jornalísticas que produziram, com
tantos “favoritos” que não se realizaram, agora os fazedores de
opinião se lançam a uma nova tarefa: escolhido o novo papa, há que
se construir a “imagem do papa”. E, é evidente, essa imagem deve ser
a mais favorável e angelical possível, por mais que isso seja uma
tarefa das mais espinhosas (lembrem da figura de Ratzinger escolhido
papa e entendam o que quero dizer). Para isso está sendo necessária
toda uma operação de difusão maciça (e irritantemente repetitiva)
daquelas que seriam características típicas de Bergoglio. O fato
dele ter um comportamento sóbrio na sua vida pessoal é repetido
ad nauseam na mídia global (“o novo papa anda de ônibus, faz a
própria comida, ...”) e, a partir daí, vinculam essas práticas a uma
suposta “opção preferencial pelos pobres”. Acrescente-se aí a
escolha do nome Francisco, que é vinculado imediatamente à figura de
Francisco de Assis, místico e despojado católico que antes de ser
canonizado passou por questionamentos e ameaças por parte da cúpula
católica que via sua opção pela vida apartada dos bens materiais e
sua aproximação com a natureza (seria alguma forma de volta aos
padrões dos primeiros cristãos e, mesmo, do próprio Jesus?) como uma
denúncia do fausto e riqueza da Igreja, sendo, então, um risco para
aquela elite que transformava em herege (desviante da verdadeira
doutrina) os que ousassem questionar os seus valores.
Ora, sejamos honestos! O novo papa é um jesuíta e os membros da
Companhia de Jesus têm a tradição da sobriedade de seus hábitos.
Aliás, é relevante dizer que a Companhia não foi criada como uma
Ordem religiosa qualquer. O próprio nome (Companhia) já denotava
desde o início os objetivos de seu criador, Inácio de Loiola:
surgida no contexto da Contra-Reforma católica, em um momento de
reação da Igreja à expansão das ideias da Reforma, os jesuítas se
colocavam como uma força militar-religiosa de combate pelo
catolicismo. Não à toa sua ação no “Novo Mundo” ou no “Oriente”, a
partir do século XVI, voltada a conquistar para a “verdadeira
religião” os ameríndios ou asiáticos que, sem essa ação, estariam à
mercê da pregação da “falsa religião” dos protestantes. A
sobriedade, a postura “militar”, a simplicidade e a austeridade,
além de uma visão muito dura e fechada sobre qualquer questão
doutrinária sempre foram marcas dos jesuítas. E uma das figuras mais
importantes para a tradição jesuítica é a do co-fundador da
Companhia, FRANCISCO de Xavier, também tornado santo como
Inácio de Loiola. A referência, por parte da mídia Global à vida
simples do novo papa, a tentativa de vinculação com Francisco de
Assis, independente de possíveis devoções pessoais de Bergoglio,
funcionam como instrumentos de aceitação mais rápida dos fiéis da
figura do novo papa, seja isso uma distorção da realidade ou não. A
“opção preferencial pelos pobres”, elemento constitutivo da chamada
Teologia da Libertação, destruída em suas bases pelos dois últimos
papas, é agora elemento de apropriação de discurso, já que o
ultraconservador Bergoglio jamais se aproximaria desse projeto
teológico que marcou a América Latina até os anos de 1990.
Se essa mistificação tem um claro acolhimento em parcelas da
população, e, em especial, no meio católico, que busca
desesperadamente uma alternativa eticamente valorizada em meio à
torrente de denúncias das práticas mais terríveis que cercam o
clero, precisam ser enxergadas com um pouco mais de cuidado, seja
pelas lentes de crentes ou daqueles desvinculados de quaisquer
credos religiosos.
É curioso como o noticiário dessa grande mídia esvazia a discussão
da maioria dos temas que hoje são nevrálgicos para o futuro da
Igreja. Aparecem em destaque, além dos já comentados, o peso da
trajetória pastoral do novo papa, ao contrário do renunciante,
intelectual e teólogo. Bergoglio tem no ensino religioso a base da
sua trajetória dentro da Igreja, o que não surpreende, dada a sua
formação jesuítica. Porém, seu extremo conservadorismo, por exemplo,
não é destacado no noticiário Global, a não ser na questão do
casamento homossexual, que contrapôs o agora ex-arcebispo de Buenos
Aires ao governo argentino, que apoiou a aprovação do projeto de lei
que transformou a Argentina no primeiro país a legalizar as uniões
homoafetivas. Outras questões, como a participação das mulheres no
clero católico, o uso de contraceptivos etc, que dividem as opiniões
dos católicos pelo mundo, e sobre as quais o novo papa tem uma
posição contrária fechada e radical, isso tudo fica à margem do
noticiário. Não há aqui a ingenuidade de supor a possibilidade da
existência de um pontífice que rompa de uma vez com valores
estabelecidos, em alguns casos, há séculos. A instituição Igreja
Católica é, em si, conservadora, para dizer o mínimo. Porém, nos
dias de hoje, ocorrem fenômenos que estão afastando, na prática, uma
parcela considerável de fiéis do seio da Igreja. E a falta de
respostas a essa base católica só faz ampliar a sangria, sem que
apareçam, muito pelo contrário, figuras na cúpula da instituição
capazes de construir mediações que represem ou diminuam essas
perdas.
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Enfim, pior mesmo para a própria Igreja é o não enfrentamento dos
grandes escândalos que a cercam e a corroem, sem falar de uma Cúria
romana que parece sempre mais preocupada em lançar o “lixo” para
baixo do tapete do que enfrentar de peito aberto esses problemas. Se
a eleição de Bergoglio permite entender uma certa derrota dos
elementos que controlam essa Cúria (nada indica que ele se alinhe
com a burocracia vaticana), as posições conservadoras do novo papa
não estimulam previsões otimistas de mudanças mais profundas. O não
enfrentamento da corrupção no Banco do Vaticano, da máfia
homossexual na sede do papado e da pedofilia, cujas denúncias não
param de brotar e que esvaziam a Igreja de fiéis (além de seus
cofres, no pagamento de processos que envolvem religiosos por todo o
mundo) são elementos de uma Igreja que parece atordoada como um
boxeador acertado na ponta do queixo. E, em meio a esse “mar de
lama”, a eleição de Bergoglio ainda traz um novo (?) componente de
crise que a Igreja gostaria de esquecer. Tão logo as notícias sobre
o nome do novo pontífice foram divulgadas, choveram nas mídias
“alternativas” denúncias sobre as “relações perigosas” do então
Provincial dos jesuítas argentinos com os militares envolvidos na
carnificina promovida por esses no país durante a ditadura que lá se
estabeleceu nos anos de 1970. Há hoje no país vizinho uma certeza
quanto à cumplicidade da cúpula da Igreja Católica com os chefes
militares que implantaram o regime de terror que matou e torturou
dezenas de milhares de argentinos, além da vinculação com outros
governos ditatoriais do Cone Sul na malfadada Operação Condor.
Berdoglio foi acusado em 2005, pelo advogado e membro de
organizações de direitos humanos Marcelo Parrilli, com base nas
pesquisas realizadas pelo jornalista Horacio Verbitsky
e no livro ‘Igreja e Ditadura', de Emilio Mignone,
de, como responsável pelos jesuítas, ter retirado as garantias que
cobriam
os religiosos Orlando Virgilio Yorio e Francisco Jalics que
realizavam trabalhos sociais no bairro de Bajo Flores e que, dias
depois, foram presos por membros da Marinha, tendo passado meses na
famigerada Escola de Mecânica da Armada (ESMA), um dos mais
terríveis centros de tortura do regime.
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Foto do novo Papa Francisco I ao lado do ditador argentino
Jorge Videla
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Posteriormente, novas acusações recairiam sobre seus ombros. As Avós
da Praça de Maio, organização de denúncia dos crimes da ditadura e
que desenvolveram papel fundamental nas buscas dos “desaparecidos” e
em casos de crianças que foram tiradas de seus pais, acusados de
subversão, e entregues a seus algozes, denunciaram Bergoglio por sua
suposta participação em um desses casos de roubo de bebês, no caso a
neta de Alicia de Cuadra, uma das fundadoras da organização.
A citada vinculação da cúpula católica argentina com a ditadura e,
em especial, as denúncias ainda não devidamente explicadas contra
Bergoglio colocam, nesse momento e para o futuro, mais um grande
peso a ser carregado pela Igreja na sua já dura tarefa de tratar com
o conjunto de enormes problemas. E, alcançado por essas inquietantes
denúncias, que capacidade terá o novo papa de se fazer o líder
inconteste de uma instituição em ebulição e sangramento constante?
Certamente só o futuro, e não os “analistas de plantão” a soldo da
mídia Global, é que poderá nos apresentar as respostas a esses
desafios.