Os estranhos
visitantes do Dops
O que um
representante da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
(Fiesp) faria em um centro de torturas da ditadura civil-militar
(1964-1985) durante madrugadas? O que levaria um cônsul dos Estados
Unidos a esse mesmo lugar repetidas vezes, por longas horas?
É sobre essas
questões se que se debruçam atualmente os membros da Comissão da
Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Por meio de
investigações, a Comissão apurou que pessoas ligadas à Fiesp e ao
Consulado eram presença constante durante os dias e as noites do
Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo
(Dops), um dos órgãos repressores criados pelo regime.
Para tentar
esclarecer esses fatos, a Comissão Estadual da Verdade realizará
uma audiência pública na próxima segunda-feira (18), às 14h, na
Assembleia Legislativa (Alesp), onde apresentará os documentos que
embasaram as investigações.
Visitas
frequentes
A chave para a
descoberta foi uma pesquisa no “Coincidência”? Cônsul estadunidense
entra no Dops cinco minutos depois do capitão Ênio Pimentel
Silveira, um dos torturadores mais famosos do período - Foto:
Documentos do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Ao checar os
livros de registro de entrada e saída do prédio do Dops, localizado
no centro da capital paulista, integrantes da Comissão Estadual da
Verdade perceberam a frequência de dois nomes, que não faziam parte
das equipes policiais: “Dr. Geraldo Rezende de Matos”, que se
apresentava no formulário como “Fiesp”, e “Dr. Halliwell”, que
assinava como “Consulado Americano”.
Além da
assiduidade, despertaram atenção os horários em que os
representantes da Fiesp e do consulado estadunidense se dirigiam
ao prédio do Dops e as longas horas em que permaneciam ali.
Somente nos meses
de abril a setembro de 1971 (os livros com os outros meses deste
ano desapareceram), Geraldo Rezende de Matos, da Fiesp, dirigiuse
ao local 40 vezes. Em uma dessas visitas, sua entrada ocorreu às
17h30min, mas não consta horário de saída. Como os funcionários da
portaria trabalhavam apenas até 22h, os movimentos feitos depois
deste horário não eram anotados. Significa, então, que Matos teria
ficado além das 22h.
Já em outro
registro, de 24 de abril de 1972, o representante da Fiesp entra no
prédio às 18h20 e sai às 12h35 do dia seguinte, 25 de abril. Foram
cerca de 18 horas no local.
“O que o cara da
Fiesp ia fazer lá? Essa é a pergunta que fazemos”, explica o
coordenador da Comissão Estadual da Verdade, Ivan Seixas.
Seixas, que
também é ex-preso político e membro da Comissão de Familiares dos
Mortos e Desaparecidos Políticos, conta que a Comissão já pediu
esclarecimentos à Fiesp sobre o assunto. A federação, por sua vez,
alega não ter registros de Geraldo Rezende de Matos.
De acordo com
investigações da Comissão, Matos era um empresário ligado aos ramos
de metalurgia, além de possuir uma empresa de seguros e reparação
que atendia militares.
“A Fiesp tem que
explicar isso, não estamos inventando nada”, destaca o presidente
da Comissão Estadual da Verdade, o deputado Adriano Diogo (PT-SP).
“Queremos saber por que uma pessoa que ia ao Dops, [onde] permanecia
horas e madrugadas, assinava como representante da Fiesp”,
completa.
A Fiesp foi
convidada para prestar esclarecimentos sobre o caso na audiência
pública do dia 18. A reportagem entrou em contato com a assessoria
de imprensa da federação, que não soube informar se a instituição
estará representada.
Empresariado
Os vínculos do
empresariado com os agentes da ditadura são assunto antigo de
pesquisas e estudos. O tema é a base do documentário Cidadão
Boilesen (2009), dirigido por Chaim Litewski. O filme, que resgata a
vida do empresário dinamarquês Henning Boilesen, desvela não apenas
as contribuições financeiras do protagonista (então presidente do
grupo Ultra) ao aparato militar, mas de diversas figuras ligadas a
organizações multinacionais e instituições, incluindo a Fiesp.
Em novembro, o
coordenador da Comissão da Verdade, Cláudio Fonteles, divulgou um
texto em que relaciona a Fiesp à produção de armas para os militares
que derrubaram João Goulart da presidência em 1964. No documento,
Fonteles cita um relatório confi dencial produzido pelo Serviço
Nacional de Informações (SNI), hoje sob guarda do Arquivo Nacional,
que descreve a criação do Grupo Permanente de Mobilização
Industrial (GPMI) em 31 de março de 1964, data do golpe. De acordo
com o documento, o órgão teve a função de fornecer “armas e
equipamentos militares aos revolucionários paulistas”.
O caso de Geraldo
Rezende de Matos, no entanto, desperta na Comissão outra suspeita.
Para Seixas, é provável que as idas de Matos ao Dops visassem a
troca de informações entre empresários, a polícia e o Exército.
“Vem à cabeça de todo mundo, quando se fala em empresários e
repressão, o financiamento. Mas nós não estamos trabalhando com essa
hipótese. Para nós, a Fiesp ia lá entregar nomes de operários para
serem reprimidos”, esclarece Seixas.
Consulado
Já o “Dr.
Halliwell” dos livros de registros era Claris Rowley Halliwell
(19182006), cônsul estadunidense no Brasil entre 1971 e 1974.
Junto à Universidade de San Diego, na Califórnia, a Comissão
apurou que Halliwell teria integrado o serviço secreto dos Estados
Unidos, a CIA.
Assim como
Geraldo Rezende de Matos, ele também comparecia com frequência
aoDops, sobretudo à noite, on-de permanecia durante toda a
madrugada. De abril a setembro de 1971, Halliwell esteve no local
31 vezes, de acordo com os registros.
Em uma das idas,
em 5 de abril de 1971, seu ingresso no prédio ocorreu às 12h40min da
tarde, cinco minutos depois da entrada do capitão Ênio Pimentel
Silveira, torturador que ficou conhecido como “Dr. Ney”. Ambos
permaneceram no prédio além das 22h.
As
“coincidências” não param por aí. Nesse mesmo dia, pela manhã, havia
si-do preso e levado para o Dops Devanir José de Carvalho, dirigente
do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Depois de uma série
de torturas, Carvalho faleceu em 7 de abril.
Para Ivan Seixas,
não há como negar o envolvimento do cônsul com os crimes. “Nos
prédios do Dops e da Oban [Operação Bandeirante], quando se
torturava não era segredo. O prédio inteiro ouvia, a vizinhança
também. O mínimo que se pode dizer era que o ‘cara’ [cônsul] era
conivente, mas eu acho que [ele] era participante”, diz Seixas.
Depois de sair do Brasil, Halliwell foi cônsul estadunidense no
Chile – onde, um ano antes, um golpe de Estado havia tirado do poder
Salvador Allende.
“A gente acha que
essas coisas são de filme de ficção científica, que ‘na minha terra não
tem isso’. O ‘cara’ não estava levando os passaportes para a
Disneylândia, era um agente da CIA”, ressalta o deputado Adriano
Diogo, que integrou a militância estudantil durante o regime.
Para o deputado,
a revelação desses registros ajudará a contar a história des-se
período e a revelar quem praticou e engendrou os crimes.“Os
documentos evidenciam a existência de uma enorme organização
criminosa que se reunia nas dependências do Dops para torturar as
pessoas, matar e planejar sequestros”, pontua.
Fonte: Brasil de Fato, Patrícia Benvenuti, 15/2/13.