“Esconder o
racismo não o faz ir embora”, diz ex-pantera negra
|
A ex-pantera negra Ericka Huggins relembra a luta contra o
racismo nos EUA durante os anos de 1960 e 1970 e diz que
ainda há muito que avançar: “me recuso a desistir” |
|
“O governo queria
que esperássemos, mas éramos jovens e impacientes. Esperamos
centenas de anos após o fim da escravidão.” Assim Ericka Huggins,
professora universitária e socióloga, hoje com 64 anos, definiu sua
militância quando era jovem no Partido dos Panteras Negras (em
inglês, BPP – Black Panther Party), nos Estados Unidos.
Ericka esteve
recentemente no Brasil, onde visitou diversas universidades e
escolas para relatar sua história de vida e trajetória no movimento
negro estadunidense nos anos de 1960 e 1970.
Aos 15 anos,
presenciou o histórico discurso de Martin Luther King em defesa dos
direitos civis dos negros, episódio que influenciou sua decisão de
entrar na luta política. Três anos mais tarde, em 1967, entrou para
o BPP, que existia havia um ano. Lá, conheceu John Huggins, que se
tornaria seu marido e companheiro.
O BPP era formado
majoritariamente por jovens: a média de idade de seus integrantes
era 19 anos. Seu propósito era libertar pessoas pobres e oprimidas.
Apesar de ser retratado na mídia como um grupo violento, o partido
realizou diversas ações que beneficiaram as pessoas mais carentes,
como café da manhã gratuito para crianças, criação de clínicas de
saúde, doações de roupas e sapatos e uma escola comunitária na
cidade de Oakland, além do trabalho político com as comunidades.
Por realizar
ações que desafiavam a ordem política vigente nos Estados Unidos, o
BPP se tornou rapidamente uma das maiores ameaças para o Estado,
que, especialmente por meio das forças policiais e do sistema
judiciário, fez de tudo para erradicá-lo.
Em 1973, 28
panteras já haviam sido assassinados, incluindo o marido de Ericka,
que morreu um mês após o nascimento da filha dos dois. Ela o
enterrou em New Haven, cidade natal dele, e lá fundou uma filial do
BPP. Pouco tempo depois foi presa, acusada de conspiração.
Após dois anos na
prisão, conseguiu ser solta e, até 1981, atuou no partido e na
escola comunitária de Oakland.
Nesta entrevista
exclusiva, concedida durante a passagem dela pela Escola Nacional
Florestan Fernandes, ligada ao Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST), Ericka analisa as formas como o racismo se
manifesta na sociedade, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, e
afirma: as ideias racistas são um hábito, calcadas em um sistema
econômico baseado na desigualdade.
Brasil de Fato
— A primeira coisa que pensamos em perguntar é: o que é ser uma
pantera negra?
Ericka Huggins
— Bem, isso foi há 40 anos.
Sim. Mas como
você disse, ainda é uma pantera negra no coração. Então, como foi
antes, ou como é agora?
Os dois.
Naquela época foi
desafiador, difícil. Achávamos que o que estávamos fazendo não era
suficiente, que não faria uma diferença importante, porque nosso
trabalho era tão grande e tão difícil. E agora eu olho para trás e
vejo que tudo o que nós fizemos deixou um marco e fez alguma
diferença para as gerações daquela época e de agora.
Os Panteras
Negras atuavam diretamente com a sua base. Como vocês faziam para
trabalhar com as pessoas?
Nós viemos dessas
pessoas, por isso sabíamos como trabalhar com elas e fazer a
pergunta certa a fim de ajudá-las. Nem todo mundo precisa vir das
pessoas para ajudá-las, mas alguém na sua organização deve estar
diretamente conectado e continuamente se reconectando a elas. E era
isso o que nós fazíamos.
Primeiro dizíamos
quem éramos e por que existíamos. E falávamos na língua delas e
deixávamos claro que gostaríamos de saber do que precisavam. Nós
sabíamos que a brutalidade policial impactava a todos, porque muita
gente vinha ao nosso diretório para dizer “meu filho levou um tiro”
ou “minha filha está presa”. Não os influenciávamos a serem
políticos. E, quando falávamos sobre política, tentávamos garantir
que as necessidades básicas, como se os filhos passariam fome ou
encontrariam um emprego, estivessem resolvidas.
E o que é o
racismo?
(pausa) Qual é
sua pergunta por trás? É uma questão tão ampla.
Gostaria que você
definisse.
Talvez você
pudesse me dizer primeiro o que acha que é e, então, discutimos um
pouco.
É um conceito
criado pela sociedade para separar as pessoas. No caso do racismo,
pela cor da pele. O conceito de que há uma cor boa e uma cor ruim,
inferior.
Sim. Isso é
racismo. Respondeu a sua pergunta. É um sistema de vantagens, de
privilégios baseado na raça. Então, eu e você podemos concorrer a um
emprego. Vamos supor que somos da mesma cor.Como um homem, você
provavelmente vá conseguir um emprego mais rápido do que eu, porque
sou mulher.
Mas se nós
adicionarmos a raça a isso, eu poderia nem concorrer àquele
trabalho. Em alguns países, o racismo é uma doença, porque depois de
se criar uma história de que há uma cor boa e uma cor ruim, as
pessoas que acham que isso é verdade passam para os filhos, que
passam para os filhos, que passam para os filhos…
Você considera o
Brasil um país racista? Porque nós temos aqui a ideia de que vivemos
em uma democracia racial.
O que você acha?
Eu acho que o
Brasil é, sim, racista. A noção de que não existe racismo serve para
esconder essa realidade.
Para varrê-lo
para debaixo do tapete?
Exatamente. Para
esconder que o Brasil é, de fato, racista.
Sim, tal como nos
Estados Unidos, como na Europa. É assim no mundo inteiro. No
entanto, sempre há dinheiro e poder por trás dessa ideia para
fazê-la funcionar e torná-la sistêmica. De outra forma, não duraria.
Todas as instituições da sociedade a naturalizam.
E se não falarmos
do racismo, o que acontece?
Esconder uma
doença não a faz ir embora. Se você tem câncer de pele, não pode
colocar um band-aid por cima. E nós não coexistimos. Se
coexistíssemos, 600 pessoas negras não teriam sido mortas em maio de
2006 na periferia de São Paulo pela polícia. Por que isso acontece?
Também dizem que não há mais racismo nos Estados Unidos porque Obama
foi eleito presidente. Os euro-estadunidenses estão dizendo isso
porque acreditam que o racismo vai acabar por colocarem um homem em
um escritório. Mas isso só vai realmente acabar quando educarmos a
nós mesmos sobre como o racismo se manifesta.
E quando você
percebeu, pela primeira vez, que a sociedade é racista?
Eu tinha em torno
de oito anos de idade. Fui à loja da esquina e havia um menino e uma
menina pequenos por lá, eles eram brancos. Chamaram-me de “negona”
[nigger] e cuspiram em mim. Eu não os conhecia e eles não me
conheciam. Provavelmente, seus pais haviam lhes contado que eu não
era humana. Depois, quando contei à minha mãe, perguntei por que
aquelas crianças eram tão ruins, por que haviam me chamado daquele
jeito. Então minha mãe me explicou sobre a escravidão. Eu espero que
chegue um dia em que os pais não precisem contar a seus filhos a
respeito da diferença da cor da pele. Também espero pelo dia em que
mulheres sejam tratadas ou valorizadas da mesma forma que os homens
são. Isso também começa com as crianças.
Você acredita que
essa mudança começa com as pessoas oprimidas tomando consciência de
sua própria situação?
Isso já acontece.
Mas as pessoas que não são oprimidas também tem de refletir sobre
seu papel. O que você acha que significa ser branco? Significa que
você pode ir a qualquer lugar do mundo?
Normalmente.
O que é normal?
Sem restrições,
sem alguém me perguntar por que vou a tal lugar.
Exatamente. Mas
milhões de pessoas não vivem dessa forma. Para isso mudar, é preciso
entender o que significam as formas de privilégio e discuti-las.
Minha mãe é cega, e sempre penso no privilégio de ter a visão.
Quando encaro algo dessa forma, sinto-me humilde. E quando você se
posiciona ao lado de pessoas que não têm privilégios, está realmente
ajudando. Se entender isso, você se tornará uma pessoa melhor, mais
profunda e mais compassiva e será capaz de passar isso àqueles a sua
volta. As pessoas estariam dizendo e fazendo coisas para acabar com
idéias atrasadas.
Falando a
respeito das mulheres, no começo dos Panteras Negras elas não tinham
o mesmo privilégio dos homens. Então, como foi possível igualar os
direitos das mulheres dentro do partido?
Nós tínhamos
aulas de formação política e conversávamos sobre o assunto.
Falávamos com frequência sobre poder em nossas relações íntimas, em
nossos trabalhos e em nossas aulas de formação política. E as coisas
mudaram. Mas isso não significa que todos mudaram no interior de
seus corações. Porque tínhamos 18 anos e ainda havia alguns que
tinham ideias atrasadas. Toda vez que havia algo sexista surgindo
nós apontávamos. “Você não pode tocar no meu corpo sem a minha
permissão”, “sabe, você não pode me chamar de tal jeito”, “não, eu
não quero dormir com você”, “vivemos coletivamente, mas não dormimos
coletivamente”. Eram coisas simples, que aconteciam no dia a dia.
Pensávamos que veríamos um novo mundo durante nossas vidas, e não
queríamos trazer o velho mundo para o novo.
Os jornais, os
pôsteres e as imagens do movimento eram todas muito bonitas. Por que
essa importância à arte?
Porque muitas
pessoas não podiam ler ou escrever, e a arte fala sem precisar de
palavras. Nós críamos arte para a causa do povo e não arte pela
causa da arte. Era muito importante entender as coisas como parte do
mundo real, e não simplesmente como uma retórica política vazia.
Queríamos que as pessoas entendessem como pensar sobre o mundo a
partir da própria experiência. E queríamos que elas vissem a si
mesmas como bonitas. Especialmente porque o mundo inteiro as dizia
que eram feias e estúpidas. Não rebaixávamos ninguém. Não queríamos
diminuir as outras raças ou os outros para nos fazer brilhar. Isso é
o que o racismo faz: umas pessoas parecerem ruins para outras
parecerem boas.
Você pode falar
mais sobre o projeto da escola comunitária de Oakland?
O foco eram os
estudantes, negros e latinos. Uma das coisas mais importantes era
que eles tivessem orgulho de suas identidades. Tínhamos um princípio
chamado “não fofoque, investigue”. Se uma criança tinha uma ideia
preconcebida sobre a outra e nós descobríssemos, dizíamos a ela para
buscar a verdade sobre a pessoa e depois nos contar. E nós tínhamos
um conselho estudantil, formado pelas crianças e por um adulto, que
geralmente ficava quieto, só monitorando, responsável por ajudar os
colegas a cumprirem suas tarefas e ir bem nas aulas. Descobríamos
por esse conselho que algumas crianças tinham dificuldades em
aprender porque a forma como aprendem é diferente, e nós as
ajudávamos. Entendíamos cada criança e nos focávamos em cada
estudante da escola individualmente. Servíamos três refeições por
dia. Tínhamos uma relação com o hospital infantil local, porque se
alguma delas ficasse doentes, queríamos ter certeza de que pudesse
ser atendida sem qualquer custo. Se os pais dos estudantes não
tinham carro, nós os pegávamos de ônibus e levávamos de volta à
noite. Sabíamos os nomes, a idade e éramos amigos dos pais de todas
as crianças.
Como exercitar a
criança a pensar por si mesma sem forçar um método de ensino?
Um jeito é
resolver problemas em grupos. E também dizer a elas o tempo todo o
quão inteligente são. A nossa escola tinha uma música tema, chamada
“Nós podemos fazer o que quisermos”. Quando as crianças são amadas e
incentivadas, elas querem aprender. E nós fizemos o aprendizado algo
divertido, uma aventura.
Observando essa
entrevista, com você nos pedindo respostas a nossas próprias
perguntas, você acha que as concepções que temos sobre raça, gênero
e preconceitos em geral mudariam se nos colocássemos no lugar das
outras pessoas?
Eu acho. Quando
estava na cadeia, me levavam da prisão ao tribunal num carro, e eu
estava sempre algemada. Sempre ia no mesmo carro, com os mesmos
policiais, e sabia que esses dois policiais brancos não me viam como
ser humano. Um deles disse isso. Eles só me chamavam de “a pantera”.
Não me davam bom dia, não me cumprimentavam. Todo dia, durante
meses, fiz esse caminho com eles. Eu ficava isolada na prisão, não
podia sair muito, nem ir ao espaço de lazer. Um dia em que fazia
calor e o sol brilhava com força, ao chegar ao tribunal saí do carro
com a ajuda de um dos policiais. Olhei para o sol e disse: “olha o
sol, está tão lindo, não acha?”. Ele olhou para mim e respondeu:
“sim, Huggins, está lindo mesmo”. Ele estava sorrindo. Depois disso
ficamos amigos. Imagina se nós agíssemos assim numa escala maior. Se
levarmos esse pensamento para o mundo, no dia a dia, e considerarmos
toda pessoa como nós, ou parte de nós. Não importa a cor de pele, a
forma dos olhos, as genitais, ou quem ela ama, ou se é rica ou
pobre. Acho que se fizéssemos isso por alguns minutos no dia ao
redor do mundo, ele mudaria.
Eu tenho
esperança nessa grande possibilidade, mas não á algo que vem das
nossas cabeças, é uma cultura de amor. Nós não estaríamos falando
sobre homofobia, racismo, machismo, classes sociais, violência se
vivêssemos numa cultura de amor. Estaríamos pensando em como as
estrelas ficam no céu, como fazer colheitas melhores… mas tanto
espaço cognitivo é usado tentando se adaptar, tentando batalhar
contra injustiças ridículas.
Como você
consegue falar de uma cultura de amor considerando sua história de
vida?
Porque era isso
que eu sempre quis, e me recuso a desistir disso. Sempre que vejo
violência, ódio ou preconceito dentro de mim sei que sou eu quem
deve me livrar disso. Quando estou com outras pessoas não quero
raiva, tristeza atrás de mim, quero apenas estar bem. Sim, minha
história foi difícil, minha vida foi dura, mas também é bonita.
Fonte: Brasil de Fato, Daniele Silveira, Guilherme Zocchio,
José Coutinho Jr. e Viviane Araújo, 2/10/13, SP.