Egito: a
geopolítica por trás dos dias de fúria
Por Achille
Lollo*
A partir do dia
14 de agosto, a Irmandade Muçulmana intensificou as manifestações
nas principais cidades do Egito. Foram mortos 70 policiais, 16
igrejas coptas foram atacadas e vários prédios públicos incendiados.
Em resposta, o
governo do general Abdel Fatah al-Sisi restabeleceu “sem equívocos”
a ordem pública em todo o país.
No dia 20, o
diário Al-Masry Al-Youm informava que, desde o dia 7 haviam morrido
985 pessoas; 4.650 foram feridas e 1.128 continuavam presas. Mesmo
assim, os EUA – em nome dos “interesses nacionais” – apoiaram o
general al-Sisi, tal como apoiaram Mursi e, antes, Mubarak.
Desta vez a crise
egípcia foi representada no Youtube tal como ela é: trágica,
assustadora, complexa e, sobretudo, violenta. De fato, o fuzilamento
de 27 policiais na região da Península do Sinai por parte de um
grupo jihadista; a morte de dois cinegrafistas alvejados por
atiradores islâmicos no Cairo e a prisão de quatro jornalistas
europeus por parte dos militares que os acusavam de ser iguais aos
da Al Jazeera (a emissora do Qatar que manipulou as manifestações na
Síria), enterrou de vez as idílicas imagens da revolução popular e
democrática egípcia, cujo epicentro foi a Praça Tahir.
Hoje, o Egito, em
termos políticos, está à beira de uma guerra civil que, porém, ainda
não começou, porque a maioria dos grupos que compõem a Irmandade
Muçulmana (os situacionistas) não haviam planejado a “insurreição
islâmica”.
Pelo contrário, o
objetivo estratégico dos situacionistas previa reforçar o
partido“Justiça e Liberdade” para transformar o estado laico em
islâmico. Uma complexa operação política e institucional, que faz
lembrar o que aconteceu na Turquia e mais recentemente na Tunísia,
onde foram utilizados os padrões institucionais da democracia para
introduzir os conceitos do estado islâmico centralizado e governado,
apenas, por homens dos partidos ligados a Irmandade Muçulmana.
Jihad ou
democracia?
A imprensa
ocidental, por oportunismo ou por mera ignorância, sempre apresentou
a Irmandade Muçulmana do Egito como um movimento muito compacto e
com poucas frações no seu seio.
Por isso, quando
foi criado o partido Justiça e Liberdade, pouquíssimos jornais
disseram que esse partido surgia em função da vitória que a maioria
“situacionista” havia obtido sobre as tendências extremistas do
fundamentalismo islâmico, ou seja, “os jihadistas”. Tendência que,
no momento em que começou a “Primavera Árabe” na Praça Tahir, já
queria promover um “movimento insurrecional islâmico” contra
Mubarak, mobilizando as classes mais baixas de fé muçulmana para as
empurrar contra o exército e assim determinar o fim do regime de
Mubarak.
Uma estratégia –
que segundo o “comandante” da Irmandade, Mohammed Badie – apontava
seu sucesso na divulgação midiática do “sacrifício dos mártires” que
– em termos políticos – teria permitido aos grupos islâmicos
retirarem a direção política do movimento popular dos
revolucionários da Praça Tahir, na maioria ligados aos sindicatos
progressistas ou aos grupos leigos da sociedade e da esquerda.
Praticamente,
para os jihadistas, o fim do regime de Mubarak podia ser a grande
ocasião para se apoderar do Estado e, na ênfase libertadora,
introduzir de imediato os conceitos e as leis islâmicas.
Uma tática que,
em 2011, os situacionistas consideraram aventureira. Infelizmente,
em 2013, a possibilidade de reativar a “insurreição islâmica” está
na cabeça de grande parte dos líderes da Irmandade Muçulmana e de
muitos “situacionistas” do partido “Justiça e Liberdade”, que se
convenceram disso, logo após o presidente Mursi ser preso pelo
general Abdel Fatah al-Sisi.
É imperativo
lembrar que o general Abdel Fatah al-Sisi foi nomeado por Mursi na
chefia das Forças Armadas porque há mais de dez anos controlava o
Departamento de Segurança e porque o próprio Mursi confiava nele
para realizar, em silêncio, as manobras institucionais que ele e o
partido Justiça e Liberdade pretendiam implementar para espoliar o
novo Estado, com suas características leigas, pluralistas e
democráticas.
Portanto, a
prisão do presidente Mursi – que o próprio Al-Sisi realizou logo
após o golpe – foi o ato político que simbolizou a ruptura da
aliança entre as Forças Armadas e a Irmandade Muçulmana, no momento
em que Mursi – o primeiro presidente eleito com eleições livres –
não só permitiu a dilapidação da economia do país em menos de nove
meses, mas liderou o fim do processo democrático para impor a
criação de um estado islâmico centralizado.
Entretanto, o
erro principal de Mursi e dos situacionistas da Irmandade Islâmica
foi apostar tudo na fidelidade do general Abdel Fatah al-Sisi, e
acreditar que os soldados e os oficiais de baixa patente teriam
apoiado o processo de “islamização do Estado” somente por ser
árabes.
Hoje, as
consequências desse erro político dominam todos os debates no seio
da Irmandade Muçulmana, que por sua parte não tem saídas políticas.
Ou se submete ao novo governo ad interim do general Abdel Fatah
al-Sisi, ou vai enfrentar, despreparada militarmente, as Forças
Armadas em um clima de guerra civil contra a qual os militares foram
treinados durante vinte anos.
Por outro lado,
nem todos os muçulmanos – que são 42% da população – apoiam os
fundamentalistas islâmicos – que não ultrapassam os 12% – e nem
todas as mulheres árabes querem o Estado Islâmico.
O restante, 58%
da população (22 milhões), é, em grande parte, representado pelos
signatários da campanha “Tamarod” que, em 30 de junho, queriam a
destronização do presidente Mursi. Trata-se de uma grande
porcentagem da sociedade egípcia historicamente ligada aos setores
leigos, católicos-coptas, aos sindicatos, à intelectualidade e à
classe média. Enfim, setores que não admitem ser “pisados” e que tem
como líder nacional o premiê nobel El-Baradei.
Interesses dos
EUA
Logo após a
deposição de Mursi, o general Abdel Fatah al-Sisi pediu aos países
do Golfo (Arábia Saudita, Emirados Unidos, Qatar e Bahrein) para
garantir as despesas do Estado egípcio e assim evitar a bancarrota.
Por outro lado,
enviou um mensagem a Obama para reafirmar a manutenção dos acordos
que o Egito assinou em 1978 em Camp David com Israel, debaixo do
monitoramento estadunidense. Na prática isso significa que os EUA
devem continuar a depositar, a cada ano, 1,3 bilhões de dólares no
banco do Exército egípcio não só para sua formação técnica, mas,
sobretudo, para manter o Egito atrelado à geoestratégia
(político-diplomática e militar) estadunidense no Oriente Médio.
Um conceito que
tem muito a ver com a manutenção dos “Interesses Nacionais” dos EUA
e de Israel. De fato, para os EUA é fundamental que o Egito garanta
o livre funcionamento do Canal de Suez, onde transita 70% dos navios
que transportam o petróleo destinado à Europa e aos próprios EUA.
Uma questão que não afeta somente as relações bilaterais entre o
Egito e os EUA, mas que é o ponto central do Tratado de Paz com
Israel, em função do qual os sionistas se retiraram do Sinai,
recebendo em troca o gás da região “à preço de banana” e a livre
circulação de navios e aviões militares estadunidenses e israelenses
no espaço aéreo e nas águas do Egito.
Além disso, o
tratado de Camp David obriga o Exército egípcio a colaborar com o
Pentágono, a CIA e o Exército sionista na luta contra os
terroristas, que na década de 1970 eram os militantes palestinos do
Al-Fatah, FPLP, FDLP – Frentes Democrática e Popular para a
Libertação de Palestina – e Comando Geral-FP, enquanto hoje são os
homens do Hezbollah, da Al-Qaeda e de outros grupos jihadistas
árabes e africanos.
Por isso, o
secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-Moon, ao pedir a
libertação do presidente Mohammed Morsi, e dos outros dirigentes
islâmicos presos, não se atreveu em pedir aos EUA de cortar o
financiamento ao Exército egípcio como arma de pressão, porque isso
implicaria a ruptura de um módulo geoestratégico que permite aos EUA
manter no Oriente Médio uma posição de comando.
É evidente que o
presidente Obama, neste momento, vive em dificuldade, porque a
legislação estadunidense proíbe financiar exércitos que lideraram
golpes de Estado contra presidentes democraticamente eleitos. Porém,
muitos analistas acham que para Obama é ainda pior ter apoiado em
silêncio um presidente como Morsi, que queria implementar a
transformação do Estado democrático egípcio em uma ditadura
teocrática.
A propósito,
Mustafa Hagazy, – conselheiro estratégico da presidência ad interim
do Egito – respondendo às críticas dos senadores estadunidenses John
McCain e Lindsey Graham – em uma conferência de imprensa, sublinhou
que “o povo egípcio invadiu as ruas no dia 30 de maio contra o
presidente Mursi e contra o projeto de instaurar o fascismo
teológico e religioso da Irmandade Muçulmana e do próprio Mohammed
Morsi. Hoje estamos tentando conter todos aqueles que querem acabar
com o Estado leigo, mas também estamos lutando contra aqueles que
pretendem usar o terrorismo para acabar com o pluralismo democrático
que o povo egípcio conquistou com a queda de Mubarak.”
É evidente que as
palavras Hagazy soaram como um importante recado para os EUA e,
sobretudo, para Israel. Tanto que o presidente Barack Obama, em sua
última nota sobre a crise egípcia, associa a mesma à manutenção dos
referidos “interesses nacionais”, que, muito provavelmente, devem
ser mantidos para evitar que, após a Líbia, também o Egito fi que
refém do caos provocado por um governo islâmico ou que – ainda pior
– a atual crise desague em uma guerra civil-religiosa, tal como
aconteceu na Síria.
Uma situação que
é temida sobretudo pelos governantes de Israel porque no Sinai há
trinta grupos jihadistas prontos para entrar em território
israelense caso o exército egípcio implemente as medidas de
segurança ao longo da fronteira. De fato, não podemos esquecer que a
maioria dos atuais líderes da Al-Qaeda são todos antigos militantes
da Irmandade Muçulmana do Egito que amargaram as prisões de Mubarak
durante muitos anos e que, desde a década de 1970 apostam na Jihad,
isto é: a guerra santa contra todos os infiéis.
Futuro incerto
No dia 19 de
agosto, apesar de o “comandante” da Irmandade Muçulmana, Mohammed
Badie, ter desafiado as Forças Armadas chamando os fiéis a
manifestar novamente diante da mesquita de Rabaa El Adaweya, em Nasr
City (periferia do Cairo), o general Abdel Fatah al-Sisi ao intervir
na televisão egípcia disse que no governo “havia lugar para todos”.
Uma proposta que para os situacionistas da Irmandade Muçulmana seria
a ocasião para voltar no comando do Partido Justiça e Liberdade e,
assim negociar a volta deles no governo e na comissão que deverá
corrigir a Constituição juntamente com a oposição.
É muito possível,
porém, que a antiga maioria situacionista, neste momento, não tenha
força para retomar a direção do movimento. Por isso deve rejeitar
esta e outras propostas do general Abdel Fatah al-Sisi.
De fato, com o
ex-presidente Mursi ainda preso, os situacionistas pagariam um preço
político extremamente alto, que pode empurrar as bases populares da
Irmandade Muçulmana nos braços dos líderes fundamentalistas e
jihadistas. Algo semelhante aconteceu, em 1992, na Argélia dando
origem a uma guerra civil desastrosa, marcada pelo ódio religioso e
a violência étnica.
* Achille Lollo é
jornalista italiano, correspondente do Brasil de Fato na Itália e
editor do programa TV “Quadrante Informativo”.
Fonte: Brasil de Fato, 28/8/2013.