As duas faces da
CLT
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Para o sociólogo Ricardo Antunes, legislação trabalhista,
que completa sete décadas neste ano, trouxe ganhos na área
social, mas representou perdas para o sindicalismo
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Em 1º de maio, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) completará
70 anos. Criada por Getúlio Vargas em 1943, durante o Estado Novo, o
texto unificou toda a legislação trabalhista então existente no
Brasil, regulamentando as relações individuais e coletivas do
trabalho.
Em entrevista ao
Brasil de Fato, o professor titular de Sociologia do Trabalho da
Unicamp Ricardo Antunes faz um balanço da legislação trabalhista e
comenta a recente aprovação da chamada PEC das Domésticas. “É uma
herança da escravidão que finalmente começa a ser abolida”, afirma.
Leia a seguir.
Brasil de Fato
- Qual o significado da CLT para a classe trabalhadora
brasileira?
A CLT nasceu em
um contexto muito particular: a vitória de Vargas na chamada
‘revolução’ de 30 e em um rearranjo importante dentro das classes
dominantes no Brasil, onde se gestou um projeto industrializante. Na
sua origem, a CLT consolida, em 1943, toda a legislação social do
trabalho iniciada entre 1930 E 1943.
Essas lutas por
direitosexistem desde o final do século XIX, quando você já tem
notícia de ampliação das greves. Esse movimento se ampliou no século
XX, basta lembrar da grande Greve Geral de 1917. A classe
trabalhadora exigia e lutava por uma melhor regulamentação do
trabalho e da jornada de trabalho. Só que o varguismo foi muito
inteligente: fez com que uma reivindicação operária fosse entendida
como sendo uma doação do Estado, ou seja, ele criou o chamado mito
do pai dos pobres, o Estado bem feitor. A classe operária exigia, e
o Vargas respondia criando essa legislação. Mas não como uma
resposta a uma demanda, e sim como sendo uma antecipação do criador,
daí o mito getulista. No projeto varguista, não haveria nenhum
projeto industrial no Brasil sem regulamentação do trabalho. Por
exemplo, a legislação que estabelecia o salário mínimo é uma
condição fundamental para você estabelecer um patamar mínimo
garantidor da exploração da força de trabalho.
No que concerne à
legislação social do trabalho, a CLT contemplou uma série de
direitos do trabalho muito positivos. Porém, aí vem a outra face: no
que concerne à legislação propriamente sindical, ela tinha um
sentidoclaro de controlar, coibir e eliminar o sindicalismo
autônomo, que existia no pré-30, como a União Operária Metalúrgica,
União dos Trabalhadores Gráficos. Foi uma forma de quebrar o
sindicalismo autônomo. Consequentemente,a CLT não é positiva para os
trabalhadores porque cria um sindicalismo de Estado que elimina,
ceifa, constrange e dificulta a possibilidade de uma luta autônoma
operária. Não é por acaso que muitos sindicalistas diziam que a
Constituição de 37, no que concerne á questão do trabalho, era uma
súmula da Carta Del Lavoro do fascismo italiano. Ela trouxe uma
estrutura sindical verticalizada, burocratizada, centralizada e, no
limite, estatizada. Com a Constituição de 88, muito da estrutura
sindical atrelada ao Estado foi eliminada, mas não é por acaso que
se manteve, a unicidade sindical e o imposto sindical, que são
elementos que impedem o sindicalismo autônomo hoje.
Eu não sou a
favor do sindicato único reconhecido por lei. Sou favorável a que
haja um princípio da unidade sindical – se pudermos ter um
sindicato, melhor; mas não por imposição do Estado. Tem que ser por
uma vontade autônoma dos trabalhadores. Sou inteiramente a favor da
Convenção 87 da OIT [Relativa à Liberdade Sindical e à Proteção do
Direito de Sindicalização], mesmo sabendo que isso vai trazer um
embaralhamento. Mas tem muitas confederações que são puramente
pelegas e vão desaparecer. E isso vai obrigar o sindicalismo a criar
seus organismos autônomos.
Setenta anos
depois, o que os capitalistas querem: acabar coma CLT, e eu sou
inteiramente contra. Se quisermos melhorar a legislação social do
trabalho, vamos tomar a CLT como padrão mínimo e aumentar os
direitos, como acabamos de fazer agora com as mulheres trabalhadoras
empregadas domésticas.
Em relação ao
tema da flexibilização, qual sua opinião sobre o projeto de Acordo
Coletivo Especial?
Sou inteiramente
contra. É uma visão neocorporativista de sindicato. No limite está
dentro da lógica neoliberal ‘cada um por si’. O negociado não pode
vir sobre o legislado. Posso até aceitar que você negocie acima do
que a legislação exige. Se o índice oficial de aumento de salário é
10, isso não impede que um sindicato forte consiga 20, 30 ou 40. Se
um sindicato é forte, isso tem que ser levado para o conjunto. É um
erro grave que cometeu o sindicato dos metalúrgicos do ABC, e por
isso foi e é enorme a grita no conjunto do país contra essa
proposta.
Em que aspectos a
nossa legislação trabalhista ainda deixa a desejar?
Tenho insistido
nos meus trabalhos que nós temos uma nova morfologia do trabalho.
Temos uma nova configuração da classe trabalhadora. No passado, por
exemplo, tínhamos uma informalidade em um nível muito menor. Hoje a
terceirização e a informalidade são intensas no setor de serviços,
na indústria, no comércio, no serviço público. Hoje metade da classe
trabalhadora brasileira é composta por mulheres. Há países
capitalistas avançados, no norte, onde o contingente feminino é de
mais de 60%. No setor de call center, mais de 70% é composto por
mulheres e não tem tradição de luta sindical porque é uma profissão
muito nova, muito diferente do sindicato dos telefônicos dos anos 60
e 70. Das trabalhadoras domésticas, mais de 90% são mulheres, mais
de 60% são negras e é evidente que, como é uma profissão herança da
escravidão e onde a burla e a informalidade eram crescentes, os
sindicatos não tinham força.
Então houve um
processo grande de terceirização, informalização, feminilização,
[adoção de] tecnologias de informação, trabalho doméstico,
teletrabalho, trabalho part-time [emprego com horários reduzidos], e
o que acabou acontecendo: a nossa velha estrutura sindical
verticalizada, burocratizada, dependente do Estado, já não dá conta.
Quem representa os desempregados? Frequentemente os sindicatos até
proíbem os desempregados de participarem de assembleias porque eles
não pagam a taxa de associação dos sindicatos. Até isso [acontece].
Se o desempregado não tem o sindicato que o representa, ele tem que
criar um movimento como criaram na Argentina, o movimento social dos
desempregados, os piqueteiros. Ou seja, a possibilidade de autonomia
e liberdade sindical, que ainda não conseguimos, abriria novas
formas de organização desses trabalhadores. Sei que criaria uma
situação difícil porque o momento é adverso, e como se faz a
transição é um debate. O que temos que entender é que na Europa
inteira, dos Indignados da Espanha aos Precários Inflexíveis em
Portugal, está se buscando formas de organização que o sindicato já
não dá conta. Quando o sindicato abarca e representa esses
trabalhadores, ótimo; quando o sindicato não consegue abarcá-los
eles vão buscar outras formas de organização. Estamos vendo isso
surgir em várias partes do mundo.
Houve bastante
resistência de alguns setores da sociedade em relação à PEC das
Domésticas. O que essa resistência indica em relação á nossa
sociedade?
Mostra que o
patronato, seja nas fábricas, nas empresas de serviços ou nas
casas, se puder retardar o direito do trabalho, vai retardar. Se
puder burlar, vai burlar. A burla é constante no que diz respeito
aos direitos do trabalho. As empresas de terceirização
frequentemente fecham, e os trabalhadores ficam sem direito nenhum.
E no caso das trabalhadoras domésticas, é bom lembrar, essa é uma
herança colonial, da sociedade escravista, patriarcal, senhorial.
Quando o trabalho escravo foi abolido, não foram os trabalhadores
negros que foram para as indústrias, que recorreram ao imigrante
italiano, alemão, português, espanhol, o imigrante branco. Os
trabalhadores homens e mulheres negros, ex-escravos, foram trabalhar
nas casas. Então foi um prolongamento do trabalho escravo dentro das
famílias. Quando essas famílias mais ricas, com o processo de
modernização capitalista, preferiram se transferir para as cidades,
trouxeram para as cidades essa herança escravista. As classes médias
também reproduziram isso. Basta você ter um padrão de vida um pouco
melhor que você contrata uma empregada, um motorista. É uma herança
da escravidão que finalmente começa a ser abolida. As classes
médias, principalmente os setores mais conservadores, não conseguem
imaginar que as trabalhadoras domésticas também tenham direito de
terem as conquistas que valem para o conjunto da classe
trabalhadora. É uma fotografia da mesquinhez e do nível da
exploração que caracteriza o capitalismo e as classes burguesas no
Brasil.
Fonte: Brasil de Fato, [Patrícia Benvenuti da Redação], 29/4/13.