“Cada país tem o
número de presos que decide politicamente ter”
Para o
ministro da Suprema Corte Argentina, Raúl Eugenio Zaffaroni,
a redução da maioridade penal é também
uma demanda mundial que se relaciona à política de
criminalização da pobreza |
O ministro da
Suprema Corte Argentina e professor titular e diretor do
Departamento de Direito Penal e Criminologia na Universidade de
Buenos Aires, Raúl Eugenio Zaffaroni, fala nesta entrevista à
EPSJV/Fiocruz sobre o direito penal na América Latina e como ele vem
sendo usado para fazer uma ‘limpeza social’. Segundo Zaffaroni, a
demanda da redução da maioridade penal e o combate às drogas seguem
esta mesma linha de criminalização e exclusão do pobre.
Por que o senhor
defende a necessidade de uma identidade latina no direito penal?
Raúl Eugenio
Zaffaroni
– Nossos países estão vivendo um crescimento da legislação
repressiva, porém, deveríamos caminhar para fortalecer a
solidariedade pluriclassista em nosso continente. Não podemos seguir
os modelos europeus e, muito menos, o norte americano, em que a
política criminal é marcada por uma agenda midiática que provoca
emergências passageiras, resultando em leis desconexas, que, passada
a euforia midiática, continuam vigentes.
No Brasil,
estamos diante de um cenário em que a guerra contra as drogas mata
mais do que a droga em si. Como o senhor analisa isso?
É um fenômeno
mundial. Quantos anos demoraria para que o México alcançasse a cifra
de 60 mil mortos por overdose de cocaína? No entanto, já alcançou,
em cinco anos, como resultado da competição para ingressar no
mercado consumidor dos EUA.
Atualmente, a
grande questão do sistema penal brasileiro é a redução da maioridade
penal. Qual é a sua opinião sobre isso? O que deve ser levado em
conta para se limitar essa idade?
A redução da
maioridade penal é também uma demanda mundial que se relaciona à
política de criminalização da pobreza. A intenção é pôr na prisão os
filhos dos setores mais vulneráveis, enquanto os da classe média
continuam protegidos. Embora haja alguns adolescentes assassinos, a
grande maioria dos delitos que eles cometem são de pouquíssima
relevância criminal. O Brasil tem um Estatuto [Estatuto da Criança e
Adolescente] que é modelo para o mundo. Lamento muito que, por causa
da campanha midiática, ele possa ser destruído.
Na Argentina
existe um modelo de responsabilidade penal para adolescentes de 16
anos. Como isso se dá?
Na Argentina, a
responsabilização penal começa aos 16 anos, de maneira atenuada, e
somente é plena a partir dos 18 anos. Não obstante, somos vítimas da
mesma campanha, embora os menores de 16 anos homicidas na cidade de
Buenos Aires, nos últimos dois anos, sejam apenas dois. A ditadura
reduziu a idade de responsabilização para 14 anos e logo teve que
subir de novo para 16, ante ao resultado catastrófico dessa reforma
brutal, como tudo o que fizeram, claro. Ninguém pode exigir que um
adolescente tenha a maturidade de um adulto. Sua inteligência está
desenvolvida, mas seu aspecto emocional não. O que você faria se um
adolescente jogasse um giz em outra pessoa na escola? Em vez disso,
o que você faria se eu jogasse um giz no diretor da faculdade de
direito em uma reunião do conselho diretivo? Não se pode alterar a
natureza das coisas, uma adolescente é uma coisa e um marmanjo de 40
anos, outra.
Muitos
especialistas consideram esse modelo atual de encarceramento dos
jovens falido. Por que a sociedade continua clamando por isso? Qual
seria a alternativa?
Não creio que a
sociedade exija coisa alguma. São os meios de comunicação que
exigem, e a sociedade, da qual fazem parte os adolescentes, é vítima
dos monopólios midiáticos que criam o pânico social. Melhorem a
qualidade de vida das pessoas, eduquem, ofereçam possibilidades de
estudo e trabalho, criem políticas públicas viáveis. Essa é a melhor
forma de lidar com os jovens. O Brasil é um grande país, e tem um
povo extraordinário, o que vocês fazem é muito importante para toda
a região, não se esqueçam disso. E não caiam nas garras dos grupos
econômicos que manipulam a opinião através da mídia. O povo
brasileiro é por natureza solidário e de uma elevada
espiritualidade, quase mística. Não podem se deixar levar por
campanhas que só objetivam destruir a solidariedade e a própria
consciência nacional.
Como o senhor
avalia o sistema de encarceramento?
As prisões são
sempre reprodutoras. São máquinas de fixação das condutas
desviantes. Por isso devemos usá-las o menos possível. E, como
muitas prisões latino-americanas, além disso, estão superlotadas e
com altíssimo índice de mortalidade, violência etc., são ainda mais
reprodutoras. O preso, subjetivamente, se desvaloriza. É um milagre
que quem egresse do sistema não reincida.
Enquanto não
podemos eliminar a prisão, é necessário usá-la com muita moderação.
Cada país tem o número de presos que decide politicamente ter. Isso
explica que os EUA tenham o índice mais alto do mundo e o Canadá
quase o mais baixo de todo o mundo. Não porque os canadenses soltem
os homicidas e estupradores, mas porque o nível de criminalidade
média é escolhido de forma política. Não há regra quando se trata de
casos de delinquência mediana, a decisão a respeito é política,
portanto, pode ser arbitrária ou não. Ademais, a maioria de nossos
presos latino-americanos não estão condenados, são processados no
curso da prisão preventiva. Como podemos discutir o tratamento,
quando não sabemos se estamos diante de um culpado?
Como podemos
explicar este foco no tráfico de drogas como o principal mal da
sociedade atual? Ele precisa ser combatido?
A proibição de
tóxicos chegou a um ponto que não sei se tem retorno sem criar um
gravíssimo problema ao sistema financeiro mundial. A única solução é
a legalização, porém não acho que seja possível. A queda acentuada
do preço do serviço de distribuição provocaria uma perda de meio
bilhão de dólares, no mínimo. Esta mais-valia totalmente artificial
entra na espiral financeira mundial, através da lavagem de dinheiro,
que o hemisfério norte monopoliza. Sem essa injeção anual, se
produziria uma recessão mundial. Como se resolve isso? Sinceramente,
não sei. Só sei que isso é resultado de uma política realmente
criminal, no pior sentido da palavra.
No Brasil,
estamos vivendo um fenômeno com o crack. Em estados como Rio de
Janeiro e São Paulo, os usuários estão sendo encaminhados para uma
internação compulsória, uma espécie de encarceramento para o
tratamento. Como o senhor avalia isso?
Não sei o que é
esse crack, suponho que seja um tóxico da miséria, como o nosso
conhecido “paco”. O “paco” é uma mistura de venenos, vidro moído e
um resíduo da cocaína. É um veneno difundido entre as crianças e
adolescentes de bairros pobres, deteriora e mata em pouco tempo,
provoca lesões cerebrais. Como se combate? Quem deve ser preso? Os
meninos que são vítimas? Isso não pode ser vendido sem a conivência
policial, como todos os outros tóxicos proibidos, porém, nesse caso,
é muito mais criminal a conivência. Seria preferível distribuir
maconha. Isso é o resultado letal da proibição. Nós chegamos a isso,
a matar meninos pobres.
Existe alguma
forma de combater a violência sem produção de mais violência por
parte do Estado?
Na própria
pergunta está a resposta. Se o Estado produz violência não faz mais
que reproduzi-la. Cada conflito requer uma solução, temos de ver
qual é a solução. Não existe o crime em abstrato, existem, sim,
conflitos concretos, que podem ser solucionados pela via da
reparação, da conciliação, da terapêutica etc., esgotemos antes de
tudo essas soluções e apenas quando não funcionarem pensemos na
punição e usemos, ainda assim, o mínimo possível a prisão. Não
podemos pensar em soluções com a polícia destruída, mal paga, não
profissionalizada, infestada por cúpulas corruptas etc. Ou não estou
descrevendo uma realidade latino-americana? (Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz)
Fonte: Brasil de Fato, Viviane Tavares, da EPSJV/Fiocruz, 29/7/13.