ENTREVISTA / DÊNIS DE MORAES
“O Brasil é a
vanguarda do atraso da América Latina”
Por Najla Passos
Reproduzido da
revista MídiaComDemocracia nº 13, dezembro de 2012
Considerado um
dos mais lúcidos observadores dos fenômenos da comunicação de massa
no Brasil, o professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia
da Universidade Federal Fluminense (UFF) Dênis de Moraes, tem se
dedicado a estudar como os governos de origens populares da América
Latina enfrentam o monopólio midiático, com legislações e políticas
públicas mais democráticas e inclusivas. Ele tem pesquisado, também,
o potencial da rede mundial de computadores como nova arena de
embates pela hegemonia política e cultural.
Nesta entrevista
à MídiaComDemocracia, o autor de A Batalha da Mídia e Mutações do
visível: da comunicação de massa à comunicação em rede critica o
imobilismo dos sucessivos governos brasileiros frente à necessidade
de se democratizar a comunicação, o que coloca o país em descompasso
com seus vizinhos latinoamericanos. E condena, em especial, a falta
de políticas consequentes de inclusão digital e de fortalecimento da
internet como ferramenta já indispensável à pluralidade de vozes
sociais.
Por que a luta
pela democratização da comunicação é uma necessidade urgente da
sociedade brasileira?
Dênis de Moraes
– A democratização do sistema de comunicação é uma exigência
incontornável e inadiável. A legislação de radiodifusão brasileira
continua sendo uma das mais anacrônicas da América Latina. Até hoje,
não foram regulamentados os artigos 220 e 221 da Constituição
promulgada em 5 de outubro de 1988, que, respectivamente, impedem
monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação de massa (art. 220,
§ 5º) e asseguram preferência, na produção e programação das
emissoras de rádio e televisão, a “finalidades educativas,
artísticas, culturais e informativas”, além da “promoção da cultura
nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive
sua divulgação” (art. 221, I e II).
E como você
avalia a ação do Estado brasileiro neste sentido?
D.M.
– O imobilismo dos sucessivos governos chega a ser alarmante. As
políticas públicas de comunicação, quando existem, são absolutamente
tímidas, limitadas, fragmentadas e desencontradas. Não há uma visão
estratégica, por parte do poder público, sobre o estratégico campo
da comunicação de massa. Isso é grave porque as políticas públicas
são indispensáveis para a afirmação do pluralismo, como também para
definir o que deve ser público e o que pode ser privado,
resguardando o interesse coletivo frente às ambições particulares.
E quais as
consequências deste imobilismo?
D.M.
– As consequências do imobilismo são de várias ordens. A
concentração monopólica da mídia não para de acentuar-se. De maneira
geral, tem-se a percepção de que os governos se omitem em relação a
esse grave problema por receio de contrariar os grandes grupos
privados que controlam, há décadas, o setor. Persiste o coronelismo
eletrônico (concessões diretas ou indiretas de licenças de rádio e
televisão a parlamentares e políticos profissionais). Até quando
vamos testemunhar o fechamento de rádios comunitárias, com a
apreensão, autorizada pela Anatel ou por mandados judiciais, de
equipamentos pela Polícia Federal e o indiciamento dos responsáveis
com base em dispositivos ultrapassados do Código Brasileiro de
Telecomunicações (1962) e da Lei Geral de Telecomunicações (1997)?
E qual o papel
dos movimentos de luta pela democratização da comunicação neste
cenário? Eles têm cumprido adequadamente o papel de diagnosticar e
propor alternativas para este estado de coisas?
D.M.
– Não é por falta de diagnósticos abrangentes e de proposições
consequentes que não se renova o sistema de mídia do Brasil. A 1ª
Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), realizada em
dezembro de 2009 com a expressiva participação de delegados
escolhidos por entidades da sociedade civil, pelo empresariado e
pelo próprio governo, foi um marco histórico em termos de
esclarecimento e discussão pública das questões comunicacionais,
tendo sido precedida por uma série de conferências estaduais e
municipais. A Confecom definiu os temas prioritários que devem ser
enfrentados pelo poder público para a democratização da comunicação
no país. E, no entanto, quase três anos depois, a imensa maioria das
633 proposições da Conferência, ao que se sabe, ainda não foi
incorporada à ação governamental.
Na América
Latina, o quadro parece bem diferente do brasileiro. Diversos
governos progressistas e/ ou de origens populares têm tomado medidas
importantes para atacar os monopólios e democratizar a comunicação
dos seus países. Quais delas você destaca e como acredita que
impactarão nos sistemas de comunicação no continente?
D.M.
– Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que o quadro de
transformações na América Latina não surgiu de maneira espontânea.
No fim dos anos 1990 e começo da década de 2000, em vários países,
houve protestos e mobilizações contra a herança nefasta do
neoliberalismo (desemprego estrutural, cortes de direitos
trabalhistas e previdenciários, agravamento da pobreza, da miséria e
das desigualdades sociais). Na Argentina, Venezuela, México, Equador
e Bolívia, os movimentos sociais conseguiram se rearticular para
enfrentar o neoliberalismo. Neste contexto, entidades reivindicantes
incluíram nas agendas das lutas sociais o direito à comunicação e a
necessidade crucial da democratização da informação e da produção
cultural. A maior novidade foi a posterior adesão dos governos à
causa da democratização da comunicação, que passa, em primeiríssimo
lugar, por mudanças nos marcos regulatórios e nas leis herdadas das
ditaduras militares, que favoreciam os grupos empresariais. A defesa
do direito social e humano à comunicação constitui um relevante
avanço de perspectiva. A participação protagônica do poder público
nas questões comunicacionais é uma demanda insuperável e
indispensável, porque o neoliberalismo tentou nos convencer de que o
mercado seria capaz de distribuir conhecimentos de maneira equânime.
Uma mentira, já que o mercado é elitista e está estratificado, o que
marginaliza os setores populares de maneira dramática. Então, numa
região marcada por desequilíbrios e profundas desigualdades, o
Estado precisa intervir para garantir a soberania nacional – o que,
na atualidade, tem muito que ver com o acesso e o usufruto social
das tecnologias. Nos últimos dez, doze anos, a comunicação ingressou
nas agendas públicas como um dos temas prioritários. E dessa atitude
dos governos progressistas resultaram novas legislações de caráter
antimonopólico. Por exemplo, a chamada Lei de Meios na Argentina, a
Lei de Radiodifusão Comunitária, no Uruguai, e a Lei de Comunicação
Popular, na Venezuela, entre várias outras iniciativas meritórias,
são legislações avançadas e inclusivas, que desfazem privilégios e
discriminações acumulados em décadas de omissão dos poderes
públicos. No Uruguai, a lei permite que a radiodifusão comunitária
seja amplamente legalizada e descentralizada. A comunicação
alternativa, comunitária e popular na Venezuela tem agora condições
e garantias para se desenvolver, inclusive com fomento estatal e
facilidades de regulamentação. Por sua vez, a lei argentina rompe
com a cadeia de submissão do campo da comunicação aos interesses
privados – interesses, por definição, particulares e, em grande
parte, excludentes. A vigência da Lei de Meios é um fato espetacular
não somente para a sociedade argentina, como também para a América
Latina, porque é um paradigma a seguir por seu valor como
instrumento antimonopólico e de fomento ao pluralismo e à
diversidade. Ao coibir a concentração das atividades comunicacionais
nas mãos de poucos grupos, estimula um fluxo informativo com
opiniões e perspectivas diversas, além de ter dispositivos de
incentivo estatal à produção audiovisual independente e à
comunicação comunitária sem fins lucrativos. Por fim, é importante
acentuar que a democratização dos sistemas de comunicação depende de
uma divisão equitativa entre os três setores envolvidos: o
estatal/público, o privado lucrativo e o social não lucrativo.
Depende também de vontade política, compromisso institucional e
respaldo popular, pois não adianta ter leis antimonopólicas se o
poder público não se empenha para fazer cumpri-las.
Neste quadro, o
descompasso entre o Brasil e os seus vizinhos fica ainda mais
evidente...
D.M.
– Historicamente, tem faltado vontade política à Presidência da
República e a uma parte ponderável do Congresso Nacional para
assumir a causa urgente da democratização da comunicação. É uma
lástima que, nesse campo, o Brasil esteja na vanguarda do atraso na
América Latina. Basta olhar a maioria dos países vizinhos para
verificarmos como o nosso país ficou para trás, nos últimos anos, em
termos de providências governamentais em prol da diversidade
informativa e cultural. Espero que a presidenta Dilma rompa com a
inércia de seus antecessores e demonstre vontade política e coragem
para promover mudanças significativas no atual sistema de
comunicação, a partir de consultas aos setores da sociedade civil
envolvidos na questão.
Em outubro, a
Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) – entidade que, na
prática, funciona como sindicato dos donos dos grandes conglomerados
de comunicação – se reuniu no Brasil e manifestou sua preocupação
com essas mudanças que têm ocorrido na América Latina, em defesa de
uma suposta “liberdade de expressão”. Esse conceito, que é uma
bandeira histórica dos setores progressistas, está desgastado?
D.M.
– É uma petulância – embora haja quem prefira o substantivo cinismo
– a SIP falar em “liberdade de expressão”. A maioria dos grandes
grupos midiáticos adota critérios e controles editoriais que
frequentemente excluem o contraditório, ou seja, as posturas
críticas e as visões alternativas. Então, com que autoridade a SIP,
que os representa, vem falar em “liberdade de expressão”? É uma
expressão que não reconheço existir no léxico das corporações do
setor. A verdadeira liberdade de expressão está ameaçada, isso sim,
por monopólios que tentam neutralizar ou depreciar as vozes
dissidentes. Os monopólios mantêm uma busca incessante de
privilégios mercantis que, quase sempre, se sobrepõem aos interesses
coletivos, tudo isso em prol da liberdade de empresa. Além disso,
seus editoriais e noticiários tendenciosos atacam os governos
progressistas que qualificam a diversidade informativa e cultural
como item fundamental para a democratização da vida social. As
campanhas opositoras da chamada grande mídia contra presidentes
progressistas são articuladas e insidiosas. Você percebe que as
mesmas matérias hostis e facciosas são republicadas, em vários
países, pelos principais jornais parceiros, todos eles batendo na
tecla de que a liberdade de expressão está em risco. Trata-se de
argumentos falaciosos, que distorcem tudo aquilo que envolve a
regulação democrática da mídia e ocultam da opinião pública as
pretensões políticas e econômicas dos grupos monopólicos. Eles
reagem violentamente quando seus interesses e conveniências são
afetados. Não admitem ceder os privilégios conquistados, na maior
parte das vezes, durante as ditaduras militares. As campanhas são
mais violentas nos quatro países onde os governos se opõem com
firmeza à dominação histórica da mídia: Argentina, Venezuela,
Bolívia e Equador. Este é um eixo de governos comprometidos – de
maneiras diferentes e de acordo com os contextos de cada um em
particular – com a ideia de que a comunicação é um direito humano
que tem que ser respeitado.
E qual sua
avaliação sobre esta reunião da SIP?
D.M.
– A pior possível. A recente festa do patronato da mídia em São
Paulo simplesmente repetiu, monótona e melancolicamente, a
catilinária em favor da liberdade de empresa, das ambições mercantis
e das pretensões monopólicas. A única coisa positiva foi a ausência
da presidenta Dilma Rousseff, que frustrou e irritou os chefes dos
grupos midiáticos. A meu ver, a decisão de ignorar a SIP foi um
ponto alto nos dois primeiros anos de governo de Dilma.
Seus trabalhos
mais recentes analisam também o ativismo na internet. A rede mundial
de computadores é uma nova arena de luta para a construção de
consensos?
D.M.
– Sem dúvida. Em sua vertiginosa expansão, a internet constitui mais
uma arena de embates pela hegemonia cultural e política, da qual já
não podemos abrir mão. No ecossistema virtual, descentralizado e
interativo, desenvolvem-se múltiplas práticas comunicacionais e
jornalísticas viabilizadas pelo desenvolvimento de tecnologias
digitais, à margem dos mecanismos de controle e seleção da mídia
tradicional. As informações são produzidas e disponibilizadas sem
relação de dependência a centros fixos de emissão e enunciação. O
aproveitamento da rede mundial de computadores para a difusão e a
circulação social de conteúdos contra-hegemônicos – isto é, de
contestação às formas de dominação impostas pelas classes e
instituições dominantes – constitui hoje pressuposto para ações
conjugadas e complementares de defesa dos direitos da cidadania, da
justiça social e da liberdade de expressão.
De que modo se dá
a apropriação dessas tecnologias para a disputa contra-hegemônica?
D.M.
– A comunicação virtual proporciona uma ampliação significativa dos
espaços de difusão (portais, sites, blogs, revistas eletrônicas) e
de compartilhamento (redes sociais, listas e fóruns de discussão),
até então separados pela geografia e por dificuldades técnicas e
financeiras. A meta precípua é abrir espaços de divulgação,
participação e intercâmbio que reforcem expectativas para a formação
e a expansão de coalizões contra hegemônicas, baseadas em afinidades
eletivas e objetivos convergentes. Incluem-se aí projetos,
experiências e meios ligados a movimentos sociais, populares e
comunitários, organizações políticas e grupos militantes
compromissados com o enfrentamento do sistema dominante e a
construção de uma hegemonia voltada à emancipação social.
É um espaço que,
potencialmente, viabiliza a mídia alternativa, historicamente
engolida pelos custos operacionais dos veículos tradicionais? Que
permite a articulação de movimentos contra-hegemônicos nacionais e
internacionais?
D.M.
– Observa-se significativa expansão de meios alternativos que
utilizam a internet e tecnologias digitais como ferramentas para uma
comunicação autônoma e diversificada. A instantaneidade, a
transmissão descentralizada, a abrangência global, a rapidez e o
barateamento de custos tornam-se vantagens ponderáveis para o
desenvolvimento de um modo de produção jornalístico que se assenta
em rotinas de criação virtual e práticas cooperativas sem
correspondência nas engrenagens de industrialização da notícia.
Respondo à segunda parte da pergunta, sim, entendo que internet
facilita a coordenação e a articulação dos pontos da rede envolvidos
em causas comuns, possibilitando uma maior circulação de
informações, ideias e interpretações sobre a realidade social e
rompendo, em boa medida, o monopólio informativo instituído pela
mídia hegemônica. Tudo isso, geralmente, em regime colaborativo,
baseado no princípio inclusivo do copyleft (reprodução livre das
informações, desde que citada a fonte original), sem fins
lucrativos, portanto na contramão da obsessão mercantil dos grupos
midiáticos.
E quais são os
reais limites da internet?
D.M.
– Sem deixar de reconhecer os usos sociais benéficos das tecnologias
e o seu potencial para diversificar as práticas comunicacionais,
permitindo o alargamento da liberdade de expressão, devemos
ressalvar que essas mesmas tecnologias não têm o poder de dissolver
graves desigualdades e desequilíbrios socioeconômicos que impedem a
ponderáveis contingentes populacionais o acesso e o usufruto de
conhecimentos, informações e entretenimentos na órbita da rede. A
brecha digital ainda é enorme, sobretudo nas áreas periféricas. Por
outro lado, há necessidade de ampliar a penetração social das mídias
alternativas e comunitárias que se expandem na internet, ainda aquém
do potencial que todos desejamos. Para isso, penso ser necessário um
conjunto de providências articuladas, tais como políticas
consequentes de comunicação eletrônica, criatividade, adequação de
formatos e linguagens a públicos mais abrangentes, melhor
aproveitamento de ferramentas de divulgação e interação, atuação
incisiva e articulada nas redes sociais, o desenvolvimento
sistemático de coberturas e campanhas compartilhadas.
Você criticou,
anteriormente, as limitações das políticas públicas para o setor de
comunicação. No caso do acesso à internet, ainda restrito, vale a
mesma lógica?
D.M.
– A democratização dos acessos depende, entre outros quesitos, de
modelos de desenvolvimento socioeconômico inclusivos; de políticas
que intensifiquem os usos sociais, culturais, educativos e políticos
das tecnologias; do desenvolvimento de infraestruturas de rede em
banda larga; de investimentos públicos consequentes; do barateamento
de custos teleinformáticos; de formação educacional condizente. Daí
a importância de pressões sociais organizadas para que os poderes
públicos se convençam de que é fundamental à descentralização dos
sistemas de comunicação valorizar as plataformas, suportes e meios
alternativos e comunitários que atuam no âmbito digital, através de
programas institucionais de apoio técnico, treinamento e capacitação
tecnológica, fomentos, patrocínios e cotas da publicidade oficial.
Os investimentos públicos são importantes para ajudar a criar
condições de sustentabilidade a experiências que contribuam para a
diversidade informativa e cultural.
***
[Najla Passos,
para MídiaComDemocracia]
Fonte: Observatório da Imprensa, 29/01/2013 na edição 731.