Governo privatiza as políticas sociais, denuncia Frente em defesa do
SUS
No próximo dia 3 de outubro, a Frente Nacional Contra a Privatização
da Saúde promoverá em todo o país o “Dia Nacional de Luta contra a
Privatização dos Hospitais Universitários”. O ato será uma forma de
reação dos trabalhadores da saúde em relação à criação da Empresa
Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), que o governo federal
criou com a intenção de que ela venha a administrar os HU. Se depender
da Frente, a Ebserh não irá adiante privatizando os hospitais
universitários.
“O governo quer dá a impressão que a Ebserh é dada como certa, mas ela
precisa ser aprovada pelos conselhos universitários”, argumenta a
coordenadora-geral da Frente, Maria Inês Bravo, professora da
Faculdade de Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro. Criada em 2010, a Frente é contra qualquer forma de
privatização da saúde, seja por meio de organizações sociais (OS) e,
agora, pela Ebserh.
Para Maria Inês, o governo Lula prosseguiu e até acelerou a
privatização das políticas públicas, por meio das OS. Nesse contexto,
o papel da Frente é lutar contra. Em entrevista para o site do
ANDES-SN ela conta como foi o surgimento da Frente e mostra por que as
Upas e a Ebserh fazem mal para a saúde.
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Como surgiu a Frente?
Maria Inês Bravo
- A Frente Nacional contra a Privatização da Saúde surgiu em 2010, em
um seminário no Rio de Janeiro, a partir de uma articulação de quatro
fóruns: Rio de Janeiro, Alagoas, Paraná e São Paulo. Inicialmente, a
nossa atuação centrou-se na luta em torno da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 1923/98, que questiona a lei sobre as
organizações social (lei 9637/98). Mais de 500 pessoas participaram
desse seminário, o que superou nossas expectativas. Conhecemos pessoas
de Fóruns que não sabíamos que existiam, como o do Rio Grande do
Norte, e colegas de outras localidades saíram com o compromisso de
criar novos Fóruns. Hoje, já temos 18 fóruns estaduais, em locais como
Minas Gerais, Distrito Federal e Rio Grande do Sul, e 14 municipais.
Em breve serão formalizados mais três fóruns estaduais, os de Vitória,
Mato Grosso do Sul e Sergipe.
Quais os princípios da Frente?
MIB
- Temos como princípios fundamentais a defesa do SUS 100% público,
estatal e de qualidade e uma posição contrária à privatização da
saúde. A Frente remonta historicamente à reforma sanitária construída
nos anos 1980, que articulava uma perspectiva mais ampla da saúde, a
partir da determinação social do processo saúde-doença e de uma
discussão sobre um novo projeto societário. Infelizmente, a maioria
dos históricos desse período tem defendido a reforma flexibilizada.
Mas nós, da Frente, a defendemos nas suas origens. Somos uma Frente
suprapartidária, numa perspectiva de esquerda, que busca unificar as
lutas em torno da reforma sanitária dos anos 1980.
Quais as linhas mestras de atuação da Frente?
MIB
- Temos uma agenda para a saúde com cinco pontos: a) a determinação
social do processo saúde-doença, ou seja, a saúde sendo vista num
contexto mais amplo das desigualdades sociais; b) a discussão sobre
gestão e financiamento da rede pública estatal de serviços de saúde,
ou seja, gestão pública e dinheiro público só para serviço público; c)
modelo assistencial que garanta o acesso universal com serviços de
qualidade, priorizando a atenção básica com retaguarda na média e alta
complexidade, ou seja, a UPA (Unidade de Pronto-Atendimento) não
garante isso; d) política de valorização do trabalhador da saúde e e)
efetivação do controle social.
Que avaliação a Frente faz das UPAS?
MIB
- Somos contra as Upas. Inicialmente, no Rio de Janeiro, elas fizeram
parte de uma tentativa de militarização da saúde, já que foi feito um
concurso dos bombeiros para a implementação das primeiras unidades.
Depois, com a aprovação da lei das Organizações Sociais (OS), foi o
Rio de Janeiro que puxou a atual proposta de Upa, que não está
colocada em nenhum modelo assistencial que eu conheça.
Qual o modelo assistencial defendido pela Frente?
MIB
- O modelo assistencial previsto pela reforma sanitária que defendemos
é hierarquizado, o que não acontece com as Upas. Elas são, na verdade,
unidades pré-hospitalares com o objetivo de reduzir as tensões das
emergências. Não fazem referência e contra-referência, ou seja, não
encaminham para outras unidades. Defendemos a ampliação da atenção
básica. Ou, então, uma experiência que tivemos em meados dos anos
1980, que foram as unidades mistas da Baixada Fluminense. Nelas, você
tinha atendimento primário e a articulação na perspectiva da
emergência. Foi uma reivindicação do movimento de saúde da baixada,
que era ligado à Teologia da Libertação, a dom Mauro Morelli e a dom
Adriano Hipólito. Enquanto nessa experiência se buscava o atendimento
completo, a Upa serve só para amenizar a dor e trata dos sintomas. A
pessoa não tem um acompanhamento. Com isso, a doença vai crescendo.
Essas Upas são operacionalizadas por organizações sociais. A Frente já
identificou grupos econômicos por trás dessas OS?
MIB
- Essa é uma pesquisa que estamos fazendo. Ainda não conseguimos
identificar os grupos econômicos, mas percebemos que as OS estão se
espalhando. Por exemplo, a Marca, que foi a OS do Rio Grande do Norte
que gerou um processo contra familiares da ex-governadora do Estado,
também está no Rio de Janeiro. O dono da Inip, de Pernambuco, é
secretário de saúde do município do Recife. E eles estão se espalhando
pelo Nordeste. No Rio, também temos as Paulistas, que são ligadas,
infelizmente, a Unifesp. De São Paulo também temos a Iapas. As OS se
multiplicaram mais nos anos 1990, em São Paulo, porque são uma
proposta do Bresser. A partir dos anos 2000 é que elas vão se
ampliando para todo o país. No Rio de Janeiro, as OS foram aprovadas
no município em 2009 e, no Estado, em 2011. Por trás delas também há
toda uma indústria dos laboratórios de an álises clínicas. Já foi
possível constatar que em todos os Estados brasileiros que têm OS, tem
corrupção, com o Ministério Público e os tribunais de contas
questionando. Não conseguimos fazer um contrafato ainda com relação às
fundações, porque elas estão mais efetivamente na Bahia e em Sergipe,
mas estamos investigando. Também ainda não conseguimos contrafatos em
relação à Ebserh.
Mesmo com todos esses problemas, as Upas foram abraçadas pelo
Ministério da Saúde?
MIB
- Sim. Infelizmente elas fazem parte de um programa do governo
federal. O governo do PT não só defende as Upas, como criou a Empresa
Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh). Tudo isso mostra, a
nosso ver, a privatização da saúde. Vimos, nos anos 1990, a
privatização das empresas estatais. Mas o que aconteceu, a partir do
governo Lula, foi a ampliação da privatização das políticas públicas.
E a saúde tem sido a mais atacada. Só no Rio de Janeiro existem 31
organizações sociais qualificadas pelo Estado, sendo que 24 estão na
saúde e as demais estão no esporte e na educação. Por meio das OS, o
governo quer se retirar de cena das suas obrigações de Estado,
delegando os serviços da saúde. Essa é a grande construção do governo:
entregar tudo o que foi construído nos anos 80 pelos trabalhadores da
saúde para a iniciativa privada. Por enquanto, a saúde pública tem
sido mais atacada, mas há o perigo de que a educação seja o próximo
alvo. Não é por acaso que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
apoiou a presidente Dilma pela Ebserh, dizendo, ainda, que mais
adiante seria criada a Empresa de Serviços Educacionais. Ou seja, não
pára por aí. Tem a proposta, por exemplo, de uma empresa para gerir a
Fiocruz.
Como a Frente vê a Ebserh?
MIB
- Somos contra e temos denunciado que universidades estão assinando
contratos com a Ebserh sem passar pelos Conselhos Universitários.
Recentemente, conseguimos que o Conselho Nacional de Saúde aprovasse
duas moções contra a Ebserh. Ela é ruim porque terceiriza os
hospitais, desrespeita a autonomia universitária, desarticula ensino,
pesquisa e extensão e assistência, além de ameaçar o caráter público
da saúde e da educação.
Para o cidadão, por que a Ebserh é ruim?
MIB
- Um exemplo claro diz respeito aos planos de saúde, pois abre brecha
para que exista, de forma oficiosa, uma prioridade de atendimento aos
usuários desses planos. Outra questão é a rotatividade de pessoal, que
cria um atendimento de má qualidade. Na perspectiva da Ebserh, os
contratos devem ser de, no máximo, cinco anos. Consequentemente, não
fixa o trabalhador de saúde, que não cria vínculo e compromisso com a
instituição. O primeiro edital, que foi na Universidade Federal do
Piauí, foi para contratação por seis meses. Como a Ebserh tem um
contrato com a universidade, ela não pode fazer contratos longos, pois
a universidade pode romper. Com isso, os profissionais de saúde terão
sempre insegurança no trabalho. Outra questão é que a gestão
empresarial acaba selecionando algumas patologias e algumas pessoas.
Um exemplo: se a pessoa hoje tem várias doenças crônicas ela
dificilmente consegue se internar na rede privada. Colocam barreiras,
pois ela é cara. Se houver uma gestão empresarial no sistema público,
esse doente crônico ficará sem atendimento. Muita gente não vai
conseguir colocar o pé no hospital porque será barrada na porta.
Entendemos que a assistência deva ser integral, pois o paciente não
necessita só da cura. Ele precisa ter uma assistência
multi-profissional. Esse olhar diferenciado que o sistema público
ainda tem será perdido com essa gestão “flexível” da Ebserh.
Como a Ebserh afetará a formação de novos profissionais?
MIB
- Será uma gestão produtivista, com meta de produção e de trabalho,
que vai acabar com a qualidade da formação. Sabemos que há uma rede de
ensino privado sedenta de espaços para estágios de formação. Então,
com a Ebserh, os hospitais das universidades federais e estaduais
poderão fazer contratos com essas instituições particulares para
receber os alunos de instituições privadas. E isso com recursos
públicos, que será transferidos para a iniciativa privada. As
pesquisas também vão ficar prejudicadas, pois a autonomia do
pesquisador ficará prejudicada, pois ele ficará vinculado a quem paga.
A questão da Ebserh, como de todas as parcerias público-privadas, é
que é uma forma de privatização.
Os trabalhadores da Ebserh serão regidos pelo RJU?
MIB
- ão, haverá, isso sim, uma precarização do trabalho. Os contratos
serão pela CLT, o que vai de encontro à luta histórica dos
trabalhadores das áreas da saúde e da educação por concurso público. É
um contrassenso em relação ao acórdão ddo TCU, que em 2006 determinou
que o governo federal regularizasse a situação dos hospitais
universitários por meio de concurso público e por contração via o
Regime Jurídico Único. Isso é muito grave. A lei diz, inclusive, que
nos primeiros cinco nos haverá processo seletivo simplificado por dois
anos, renovado por mais dois anos, com um acréscimo de mais um ano.
Isso é um precedente, pois a gente não sabe depois se vai ter concurso
público. É uma porta para o clientelismo. Para a Frente, a Ebserh é
toda eivada de inconstitucionalidade. A lei diz que ela não vai
quebrar a autonomia universitári a, mas, na prática, vai, já que há um
artigo que diz que a Ebserh está autorizada a fazer contratos de
pessoal, compras e a gestão do hospital universitário. Ou seja,
materialmente quebra a autonomia e, por tabela, o vínculo com a
universidade. A saída para os hospitais universitários está no
concurso público e não na Ebserh. Defendemos a qualidade dos hospitais
universitários, com financiamento e concurso público.
Como está a mobilização contra a Ebserh?
MIB
- As lutas locais estão acontecendo. Defendemos que a aprovação da
Ebserh passe, necessariamente, pelos Conselhos Universitários. Algumas
universidades tinham encaminhado uma carta de intenção sem que ela
fosse deliberada pelos conselhos, o que também fere o estatuto dessas
universidades, que têm gestão colegiada. Temos denunciado essas
situações e temos conseguido que a decisão passe pelos conselhos. Já
conseguimos que a UFPR, através do conselho universitário,
posiciona-se contra a Ebserh. É importante dizer isso porque muitos
acham que essa lei tem de ser cumprida.
Em todos os lugares em que temos Fórum, há luta contra a Ebserh.
Recentemente, as executivas dos estudantes da medicina, enfermagem,
nutrição, farmácia e serviço social Fizeram um debate junto com a
gente e com seções sindicais do ANDES-SN e se posicionaram contrários
à Ebserh. Enfim, esse debate tem se ampliado e alguns setores têm
assumido posições contrárias à empresa, como, por exemplo, o Centro de
Ciências Humanas e Sociais da UFRJ. Estamos criando as condições. No
Rio de Janeiro, que é aquela monstruosidade, só a UFRJ tem nove
hospitais, mais o da UFF e o da Unirio, temos comissões em cada
hospital para enfrentar e fazer os debates.
Há perspectiva da a Frente se tornar mais ampla, defendendo, por
exemplo, a educação pública?
MIB
- Nós começamos com a saúde, mas no terceiro seminário houve uma
discussão se mudaríamos para nos tornarmos uma Frente contra a
privatização das políticas públicas. Preferimos nos manter como Frente
Nacional da Saúde para poder fazer uma articulação maior com outras
áreas. Mas alguns fóruns já estão sendo criados nessa linha. Em Goiás,
foi formado o Comitê contra as Privatizações de uma forma geral.
Alguns fóruns municipais são fóruns de políticas públicas. Então, a
nossa expectativa é de ser mais abrangente.
Fonte: ANDES-SN, 20/9/12.