“O socialismo do futuro terá as cores das sociedades que por ele
optarem”
Miguel Urbano
Rodrigues acredita que um socialismo humanizado abrirá ao homem a
possibilidade de desenvolver todas as suas potencialidades e de se
realizar integralmente, liberto das forças que o oprimem há milênios
“O mundo está num
caos em conseqüência da crise global do capitalismo”. Assim, o
jornalista e escritor português Miguel Urbano Rodrigues define o atual
cenário mundial. Para ele, a crise atual do capitalismo é estrutural.
Segundo o escritor, a crise, iniciada nos EUA, alastrou à Europa e as
medidas tomadas por Bush, primeiro, e Obama depois, em vez de
atenuarem a crise, agravaram-na. “Os EUA, polo do sistema que oprime
grande parte da humanidade, mostram-se incapazes de controlar os
colossais défices do orçamento e da balança comercial”.
Miguel Urbano: crise atual do
capitalismo é estrutural - Foto: Miriam Zomer-Alesc |
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Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Urbano diz que o grande
capital pouco alterou as práticas criminosas e fraudulentas que
originaram a crise. Para ele, a fatura é paga pelos trabalhadores
que tiveram os seus salários brutalmente diminuídos e suprimidas
conquistas históricas. Taxativo, afirma que as guerras fazem parte
das alternativas imperialistas e que as agressões militares são
sempre precedidas de uma campanha midiática de âmbito mundial.
Embora avesso a profecias, Urbano acredita que o socialismo do
futuro terá as cores das sociedades que por ele optarem de acordo
com as suas tradições, cultura e peculiaridades de cada uma.
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Brasil de Fato
– O mundo vive hoje uma de suas maiores crises financeiras. Que
avaliação o senhor faz dessa crise que tem se agudizado principalmente
nos Estados Unidos e na Europa?
Miguel Urbano
Rodrigues – O mundo está num caos em conseqüência da crise global
do capitalismo. É uma crise estrutural. Nos países centrais a teoria
da acumulação não funciona mais de acordo com a lógica do capitalismo
e, na busca de uma solução, os Estados Unidos, polo hegemônico do
sistema, multiplicam as guerras contra países do Terceiro Mundo para
saquear os seus recursos naturais.
As medidas tomadas pelos governos, a seu ver, resolvem os graves
problemas dessa crise? E o agravamento dessa crise, que é estrutural
do capitalismo, a seu ver, irá enfraquecer ainda mais o imperialismo?
A crise, iniciada
nos EUA, alastrou à Europa. As medidas tomadas por Bush, primeiro, e
Obama depois, em vez de atenuarem a crise, agravaram-na. O objetivo
foi salvar a banca, as seguradoras e grandes empresas à beira da
falência como as da indústria do automóvel. Mais de mil bilhões foram
investidos pelo Estado Federal nessa estratégia com resultados
medíocres. Um volume gigantesco de dinheiro (os dólares emitidos) foi
encaminhado para os responsáveis pela crise, enquanto a principal
vítima, os trabalhadores estadunidenses, foi esquecida. Centenas de
milhares de famílias perderam as suas casas, e o desemprego aumentou
muito em consequência de despedimentos maciços. O grande capital pouco
alterou as práticas criminosas e fraudulentas que originaram a crise.
É significativo que o atual secretário do Tesouro, Thimothy Geithner,
que goza da total confiança de Obama, seja um homem de Walt Street
comprometido com as políticas de desregulamentação que tiveram efeitos
funestos.
Na União
Europeia, que é um gigante econômico mas um anão político, a
estratégia adotada para enfrentar a crise foi diferente. A fragilidade
do euro é inseparável do fato de o dólar ser, na prática, a moeda
universal cujas emissões são incontroláveis. O Banco Central Europeu
não pode imitar Washington.
A crise atingiu
primeiro países periféricos, como a Irlanda, a Grécia e Portugal. A
Alemanha e a França, que põem e dispõem em Bruxelas, sobrepondo-se à
Comissão Europeia e às instituições comunitárias em geral, impuseram a
esses três países “políticas de austeridade” orientadas para a redução
drástica dos défices orçamentais e a salvação da banca. A fatura foi
paga pelos trabalhadores que tiveram os seus salários brutalmente
diminuídos, suprimidas conquistas históricas como os subsídios de
Natal e de férias, enquanto setores sociais como a Educação e a Saúde
eram duramente golpeados.
A Itália e a
Espanha encontram-se também à beira de um colapso, na iminência de
pedirem à Comissão Europeia e ao FMI uma “ajuda” que agravaria
extraordinariamente as condições de vida da classe trabalhadora. Na
Espanha o desemprego ultrapassa já os 21%.
A chanceler
Merckel e o presidente Sarkosy estão, porém, conscientes de que os
efeitos da crise atingem também perigosamente os seus países. O Reino
Unido, fora da zona euro, não é exceção; teme igualmente o agravamento
da situação.
Neste contexto o
futuro do euro e da própria União Europeia apresentam-se sombrios. São
a cada semana mais numerosos os políticos e economistas que preconizam
a saída do euro de alguns países.
Obviamente, as
tensões sociais na contestação ao sistema assumem características
explosivas, sobretudo na Grécia, em Portugal, na Espanha e na Itália.
Os EUA e as grandes potências da União Europeia puseram fim às guerras
interimperialistas, substituindo-as por um imperialismo coletivo. O
senhor poderia explicar como têm se dado guerras?
O imperialismo
evoluiu nas últimas décadas para responder à crise do capitalismo. As
guerras interimperialistas que na primeira metade do século 20
devastaram a Europa e a Ásia não vão repetir-se; remotíssima essa
hipótese. As contradições entre as potências imperialistas mantêm-se.
Mas não são hoje antagônicas.
Um imperialismo
coletivo – a expressão é do argentino Cláudio Katz – substituiu o
tradicional.
Os seus contornos
principiaram a definir-se na primeira guerra do Golfo e tornaram-se
nítidos com as agressões aos povos do Afeganistão, do Iraque e da
Líbia.
Hegemonizada
pelos Estados Unidos, formou-se uma aliança tática de que participam o
Reino Unido, a Alemanha e a França, além de sócios menores como a
Itália, a Espanha, o Canadá e a Austrália, inclusive países da Europa
do Leste, ex-socialistas.
Então é esse bloco imperialista que comanda o mundo hoje e fomenta as
guerras?
A superioridade
militar e tecnológica do bloco imperialista permite-lhe, com um custo
de vidas reduzido, atacar e ocupar países do Terceiro Mundo para
saquear os seus recursos naturais, nomeadamente os petrolíferos.
Isso ocorreu já
no Afeganistão, no Iraque e na Líbia. Atinge agora a África com a
intervenção militar dos EUA em Uganda. O Africa Comand, por ora
instalado na Alemanha, anuncia a criação de um exército permanente
para o continente africano, previsto para 100 mil homens.
Obama já afirmou
que a “ajuda militar” (leia-se intervenção) ao Sudão do Sul, ao Congo
e à República Centro Africana depende de um simples pedido a
Washington.
As guerras têm sido as saídas para o capitalismo. Com essa crise,
teremos novas guerras?
As agressões
militares são sempre precedidas de uma campanha midiática de âmbito
mundial. A receita tem sido repetida com algum êxito. Para impedir a
solidariedade internacional com os povos a serem alvo de agressões
previamente planejadas e semear a confusão e a dúvida em milhões de
pessoas nos países desenvolvidos, os Estados Unidos e seus aliados
promovem campanhas de satanização de líderes apresentados como
ditadores implacáveis, ou terroristas que ameaçam a humanidade. A
invasão do Afeganistão foi precedida da diabolização de Bin Laden –
definido como inimigo número 1 dos EUA – e a guerra do Iraque, da
satanização de Sadam Hussein. No caso da Líbia, Kadafi , que um ano
antes era recebido com todas as honras em Paris, Londres, Roma e
Madri, e tratado com deferência por Obama, passou de repente a ser
apresentado como um monstro sanguinário que submetia o seu povo a uma
opressão cruel. O desfecho é conhecido: a aprovação pelo Conselho de
Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) de uma “zona de
exclusão aérea” para “proteger as populações”. Logo depois começaram
os bombardeios de uma guerra que durou sete meses, definida como
“intervenção humanitária”. Sabe-se hoje que a “insurreição” de
Benghasi foi preparada com meses de antecedência por comandos
britânicos e agentes da CIA, dos serviços secretos britânicos e
franceses, e da Mossad israelense.
Como o senhor avalia as consequências dessa crise para os países
pobres, do chamado Terceiro Mundo?
O custo destas
agressões imperiais para os países por elas atingidos tem sido
altíssimo. Não há estatísticas credíveis sobre as destruições de
infraestruturas e o saque de bens culturais e sobre o número de mortos
civis resultante das guerras no Afeganistão, no Iraque e na Líbia. Mas
o saldo dessa orgia de barbárie ocidental ascende – segundo grandes
jornais da Europa e dos EUA – a centenas de milhares.
A satanização de
Bachar Assad e do seu exército gera o temor de que a intervenção
imperial na Síria esteja iminente. Mas o grande “inimigo” a abater é o
Irã. Motivo: é o único entre os grandes países muçulmanos que não se
submete às exigências do imperialismo.
Israel ameaça
atacar e incita os EUA a bombardear as instalações nucleares de
Natanz. Obama conseguiu que o Conselho de Segurança aprovasse vários
pacotes de sanções ao Irã, mas o Pentágono hesita em envolver-se numa
nova guerra contra um país que dispõe de uma capacidade de retaliar
ponderável. A invasão terrestre está excluída e o bombardeio das
instalações subterrâneas de Natanz com armas convencionais poderia, na
opinião dos especialistas, ser ineficaz.
O balanço das
guerras do Afeganistão e do Iraque não é animador para a Casa Branca.
O presidente Obama ao anunciar a retirada das últimas tropas
estadunidenses do Iraque sabe que mentiu aos seus compatriotas. Num
discurso eleitoreiro, triunfalista, que pode ser qualificado de modelo
de hipocrisia, afirmou que os Estados Unidos alcançaram ali os
objetivos previamente fixados. Na realidade a resistência prossegue e
dezenas de milhares de mercenários substituíram as forças do Exercito
e da Força Aérea. Mas qualquer previsão sobre futuras agressões é
desaconselhável. Tudo se pode esperar da engrenagem do sistema
imperial, comandado por um presidente elogiado como humanista e
defensor da Paz quando, na realidade, a sua estratégia de dominação
planetária configura uma ameaça sem precedentes à humanidade.
Como o senhor avalia o papel de organismos como a ONU, o FMI, o Banco
Mundial e a OMC?
O Fundo Monetário
Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e a Organização Mundial do
Comércio (OMC) são instrumentos do sistema imperial, criados para o
servir. Quanto à Organização da Nações Unidas (ONU), há que
estabelecer a distinção entre a Assembleia-Geral e o seu órgão
executivo, o Conselho de Segurança. A primeira, representativa de
quase 200 Estados, é uma instituição democrática, mas as suas
resoluções somente produzem efeito se referendadas pelo Conselho de
Segurança. Ora este, manipulado pelos EUA, com o apoio do Reino Unido
e da França, funciona há muito como instrumento da vontade dos três,
até porque a Rússia e a China, os outros membros permanentes, não têm
exercido o direito de veto, com raríssimas exceções.
Como o senhor vê os protestos e as mobilizações que têm ocorrido em
vários países, na chamada Primavera Árabe, na Grécia e nos Estados
Unidos?
Em primeiro lugar
é útil esclarecer que a expressão “Primavera Árabe”, muito divulgada
pelos governos ocidentais e pela mídia é, por generalizante, fonte de
confusão. Os levantamentos populares no Egito e na Tunísia foram
espontâneos e inesperados para o imperialismo. Triunfaram ambos,
provocando a queda de Hosni Mubarak e de Ben Ali.
No caso da
Tunisia, a vitória de um partido islamista moderado nas recentes
eleições não representa um problema para o imperialismo. Tudo indica
que as relações dos Estados Unidos e os grandes da União Europeia com
Tunis serão cordiais como eram com o governo da ditadura.
No Egito tudo
permanece em aberto, porque o povo não aceitou o governo dos militares
comprometidos com o imperialismo e continua a exigir a sua renúncia.
No Bahrein e no
Iémen não houve qualquer “primavera”. Washington e os seus aliados
abstiveram-se de criticar os regimes que eram alvo dos protestos
populares. No tocante ao Bahrein, base da IV Frota da US Navy, os EUA
manobraram de modo a que tropas sauditas e dos Emirados do Golfo
invadissem o pequeno país e reprimissem com violência as
manifestações.
Os protestos
populares na Europa e nos Estados Unidos contra regimes de fachada
democrática, que na prática são ditaduras da burguesia e do grande
capital apresentam também características muito diferenciadas.
O acampamento
inicial dos indignados em Madri funcionou como incentivo a movimentos
similares em dezenas de cidades da Europa e dos EUA. Esses jovens
sabem o que rejeitam e os motiva a lutar, mas não definem com um
mínimo de precisão uma alternativa ao capitalismo.
Inspirado pelos
espanhóis, o acampamento de Manhattan, realizado sob o lema “Ocupem
Wall Street”, alarmou a engrenagem do poder. A solidariedade de
intelectuais progressistas como Noam Chomsky, Michael Moore e James
Petras contribuiu para que o movimento alastrasse a muitas cidades.
No caso estadunidense, os protestos foram uma surpressa? Como o senhor
analisa a reação do governo dos Estados Unidos a estas manifestações?
A reação da
administração Obama foi inicialmente de surpresa. Mas perante a
amplitude assumida pelo movimento recorreu a uma repressão brutal. As
conseqüências dessa opção foram inversas das esperadas pelo governo.
Os acontecimentos de Oakland, na Costa do Pacífico, demonstraram que a
contestação é agora dirigida contra a engrenagem capitalista
responsável pela crise que afeta 99% dos cidadãos e beneficia a apenas
1% , tema de um slogan que já corre pelo país. A profundidade do
descontentamento popular é transparente. Uma certeza: alarma Obama e
Wall Street.
Paralelamente aos
protestos espontâneos referidos, desenvolvem-se na Europa outros,
promovidos pelos sindicatos e por partidos revolucionários.
A greve geral de
novembro, em Portugal, e as grandes manifestações de protesto ali
realizadas traduziram não só a condenação de políticas de direita
impostas por Bruxelas e a submissão ao imperialismo, com perda de
soberania, como a exigência de uma política progressista incompatível
com a engrenagem capitalista.
É sobretudo na
Grécia que as massas exprimem em gigantescas e permanentes
concentrações populares a sua determinação de lutarem contra o sistema
capitalista até a sua destruição Quinze greves gerais num ano,
empreendidas sob a direção de uma Frente Popular na qual o papel do
Partido Comunista da Grécia é fundamental, os trabalhadores da pátria
de Péricles batem-se hoje com heroísmo pela humanidade inteira.
Frente a esse cenário de crise mundial do capitalismo, qual a
alternativa para os povos? Como o senhor vê o futuro da Humanidade?
A única
alternativa credível à barbárie capitalista é o socialismo. O
capitalismo conseguiu superar desde o século 19 sucessivas crises.
Desta vez, porém, enfrenta uma crise estrutural para a qual não
encontra soluções. Os EUA, polo do sistema que oprime grande parte da
humanidade, mostram se incapaze de controlar os colossais défices do
orçamento e da balança comercial. Forjaram um tipo de contracultura
monstruosa que pretendem impor a todo o planeta. Mas o declínio do seu
poder é transparente e irreversível.
Por si só, as
gigantescas reservas de dólares e os títulos do Tesouro
norte-americano que a China e o Japão acumularam, estimados
aproximadamente em dois mil bilhões de dólares, são esclarecedores da
fragilidade da economia dos Estados Unidos, um colosso com pés de
barro, hoje o país mais endividado do mundo.
Sou avesso a
profecias de qualquer natureza. Mas creio que o socialismo do futuro
terá as cores das sociedades que por ele optarem de acordo com as suas
tradições, cultura e peculiaridades de cada uma – um socialismo
humanizado que abrirá ao homem a possibilidade de desenvolver todas as
suas potencialidades e de se realizar integralmente, liberto das
forças que o oprimem há milênios.
<QUEM É>
Miguel Urbano
Rodrigues é jornalista e escritor português. Redator e chefe de
redação de jornais em Portugal antes de se exilar no Brasil, onde foi
editorialista principal do jornal O Estado de S. Paulo e editor
internacional da revista brasileira Visão. Regressando a Portugal após
a Revolução dos Cravos, foi chefe de redação do jornal do Partido
Comunista Português (PCP) Avante!, e diretor de O Diário. Foi ainda
assistente de História Contemporânea na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, presidente da Assembleia Municipal de Moura,
deputado da Assembleia da República pelo PCP entre 1990 e 1995 e
deputado da Assembleias Parlamentares do Conselho da Europa e da União
da Europa Ocidental, tendo sido membro da comissão política desta
última. Tem colaborações publicadas em jornais e revistas de duas
dezenas de países da América Latina e da Europa e é autor de mais de
uma dezena de livros publicados em Portugal e no Brasil.
Fonte: Brasil de
Fato, Nilton Viana, 1/2/12.