Salvar os Guarani-Kaiowá?
O grito dos
Guarani de Mato Grosso do Sul é o mesmo grito do cacique da etnia
Taíno, Hatuey, que, em 1511, poucos anos depois da invasão, ao
descobrir que o deus verdadeiros daqueles homens era o ouro, viajou
desde o Haiti até a ilha de Cuba, com 400 guerreiros, para avisar que
o que chegava pelo mar era a destruição
Por Elaine Tavares
Aprendi com meu
irmão, há muitos anos, que não há nada pior no humano do que a
hipócrita (por vezes não intencional) musculação de consciência. E
isso é coisa que acontece muito no meio daqueles que estão no topo ou
no meio da pirâmide social. Olham para o sofrimento dos pobres - a
comunidade das vítimas do sistema - como se fossem coitadinhos, e
sentem pena. Podem até chorar diante de uma foto ou de uma dada
situação. E desde sua pena, buscam ajudar, musculando a consciência.
Um quilo de arroz numa campanha para vítimas da enchente, um agasalho
para as entidades filantrópicas, uma doação ao “criança esperança”.
Depois, consciência musculada, voltam a vida normal, certas de que
fizeram tudo que podiam fazer. Arrisco dizer: isso não é suficiente.
Apazigua a consciência, mas não muda as coisas.
Detectei essa
reação nesses dias em que se resolveu prestar atenção ao sofrimento
indígena. Um grupo de índios Guarani, do Mato Grosso do Sul, que desde
há 500 anos vêm observando a estranha mania dos cristãos – seus
dominadores - em se purificar no sacrifício, resolveu expor a chaga
aberta do sofrimento de sua gente numa concreta vivência sacrificial.
Ou lhes deixam viver nas suas terras, ou se matam, em grupo. Ato
extremo, sofrimento extremo, decisão extrema. Então, como que atiçados
pelo sempre excitante momento do sacrifício, as gentes brasileiras
decidiram começar a falar do “absurdo” que é essa desesperada decisão.
Assim, terminada a novela das oito, que segundo algumas vozes “parou o
país”, agora as redes sociais e todos os que têm espaço de voz nos
meios começaram a discutir a questão dos Guarani que estão prometendo
se matar. Sinto aí certo cheiro de musculação de consciência.
O grito dos
Guarani de Mato Grosso do Sul não é o primeiro nem será o último.
Desde o momento em que os povos originários perceberam que a cruz e a
espada que chegavam com os homens do além-mar eram armas de opressão,
a luta pela manutenção do direito de viverem na sua terra, com seus
deuses e do seu jeito, começou. Ao longo dos anos, com a colonização
europeia, milhões de pessoas foram assassinadas, das formas mais
cruéis, simplesmente porque atrapalhavam o caminho para o ouro e as
riquezas do novo mundo. Essa gente desesperada que hoje grita em
agonia por um naco de terra onde descansar a cabeça, é a mesma gente
que antes da invasão aqui vivia em fartura, nas grandes cidades como
Tenochtitlán, Cuzco, Tiuahanaco, maiores e mais populosas que Madrid,
Lisboa ou Florença no mesmo tempo. Eram homens e mulheres que
conheciam a astronomia, a matemática, a hidráulica, a engenharia. Eram
os que experienciavam uma forma de vida comunitária, na qual ninguém
passava fome, no mesmo tempo em que na Europa medieval as pessoas
padeciam de fome crônica. E foram eles os considerados sem alma, os
passíveis de todo o tipo de selvageria e escravidão, porque não
falavam a língua espanhola ou portuguesa e professavam outra fé, na
variedade dos deuses.
O grito dos
Guarani de Mato Grosso do Sul é o mesmo grito do cacique da etnia
Taíno, Hatuey, que, em 1511, poucos anos depois da invasão, ao
descobrir que o deus verdadeiros daqueles homens era o ouro, viajou
desde o Haiti até a ilha de Cuba, com 400 guerreiros, para avisar que
o que chegava pelo mar era a destruição. Não foi escutado. Mesmo assim
se dispôs a lutar contra os espanhóis e só parou quando foi capturado
e morto na fogueira. Foi vencido pela força dos arcabuzes, tendo seu
povo sido dizimado em castigo. Esse grito segue aí. Também continuam
ressoando os gritos de Cuauhtemotzin, no México, quando em 1520
igualmente iniciou a resistência contra os espanhóis que haviam
assassinado milhares na cidadela de Montezuma, e os de Ruminahuia, que
na região de Quito também se levantou em rebelião contra os que
queriam destruir seu mundo e o dos seus. E o que dizer dos Tamoios no
Brasil de 1562, que chegaram a constituir uma confederação para
enfrentar a vilania portuguesa?
Pois essa gente
tem gritado, lutado, batalhado, peleado desde os primeiros momentos da
invasão. E, desde sempre esses gritos foram abafados, porque os
indígenas não eram vistos como seres capazes de gerir suas vidas. Eram
homens e mulheres dominados que tinham de se render calados e servis.
Só que nunca foi assim. A batalha pelo continente segue aí, desde
então.
Mas, como sempre
acontece, os vencedores impõem suas razões. Os povos indígenas foram
dizimados em nome do progresso e do bem estar dos invasores. Os que
valentemente sobraram acabaram confinados em reservas, ora como bichos
raros, ora como coitadinhos e incapazes. Integrar o índio à sociedade
passou a ser o mantra dos caridosos vencedores. E os que acreditaram
no engodo já viram o que sucedeu. Incorporados a uma sociedade
racista, patriarcal, capitalista, seguem sendo vistos como seres
inferiores, mesmo os que chegaram aos mais altos postos da estrutura
social. Índios, os seres sem alma.
Há poucos anos o
país acompanhou a polêmica da reserva Raposa Terra do Sol, uma
imensidão de terra indígena que os originários lograram garantir para
si. Quem não se lembra dos ferozes argumentos da distinta sociedade
pensante? “Para quê tanta terra para índios? O que eles vão fazer com
isso? Vão destruir tudo e vender as madeiras.” Esse era o diapasão dos
caridosos brasileiros. E as batalhas pela região do Xingu que estão
aí, se arrastando há anos, sem que ninguém se apiede das almas das
gentes que vão perder seus rios, seus deuses, seu território em nome
de uma barragem para gerar energia aos estrangeiros. E os mesmos
piedosos argumentam que “essa gente” (os índios) é o atraso, a
decadência, o anacrônico, incapaz de ver a importância do progresso
que virá com a devastação da Amazônia.
É que esses
índios são os que, por estarem em grandes grupos e articulados com
movimentos sociais, lutam. Travam a boa batalha contra a destruição do
seu modo de vida. E como valentes guerreiros precisam enfrentar as
armas inimigas que já não são só arcabuzes e cavalos. Vêm acompanhadas
da mídia que fortalece pré-conceitos e visões pré-determinadas do
poder. Esses, os “arruaceiros”, não são dignos de piedade por parte da
sociedade que fica em frente à TV musculando sua consciência.
Então, das
entranhas do cerrado mato-grossense, um pequeno grupo de
Guarani-Kaiowá, que luta desde há anos por demarcação das terras,
sofrendo violência, mortes, assassinatos, desaparição e o sistemático
suicídio de seus jovens guerreiros, resolve usar a última arma que lhe
resta: o próprio corpo, sua humanidade, o corpo coletivo de toda a
gente. O drama dessas famílias vem sendo denunciado ano após ano pelos
Cimi, por jornalistas, por estudiosos, por todos os que se importam,
mas nunca tocou o coração das maiorias. O ataque diário dos
fazendeiros, a violência da justiça local que não os escuta, o
preconceito e o ódio dos que vivem na cidade, picados pela ideia de
que os índios só atrapalham o progresso, tudo isso é tema de debate e
denúncia nos fóruns de luta social. Mas, nunca houve piedade. As
terras seguem sendo griladas, roubadas, subtraídas dos índios. A vida
foi se extinguindo, o espaço se apequenando. Foi preciso um ato
extremo, uma decisão de desespero, para que a nação se voltasse para
esses que são os cordeiros de um novo sacrifício. Agora sim é a hora
da compaixão. Os “atrasados” não estão armados, não estão em luta, não
fazem arruaça. Eles desistiram. Não têm mais força. São muito poucos,
estão sozinhos. Eles desistiram. Já não são mais “perigosos”. São
apenas as ovelhas do sacrifício. Eles desistiram. Estão vencidos.
Então, por esses sim, podemos rezar, chorar, nos apiedar. Sepulcros
caiados. Sociedade apodrecida.
Arrisco dizer que
os Guarani-Kaiowá sabem muito bem dessa hipocrisia ocidental, dessa
pantomima que os piedosos gostam de fazer para parecerem bons. Ah,
eles conhecem essa psicologia desde há 500 anos. E, agora, se valem
disso para expor o seu drama e para testar a “bondade” branca. Mas,
eles não estão brincando. Seu grito de agonia ecoa anos a fio. Nada
nunca foi feito. Já basta. Não há sentido viver quando a vida não pode
se fazer real. Diante de uma justiça que protege o rico, o grileiro, o
ladrão; diante de uma sociedade que vê como normal a miséria e o
abandono de famílias inteiras na beira da estrada; diante do opressivo
preconceito que as pessoas da cidade manejam cotidianamente, o que
fazer? Se vida não há, porque preservar um corpo? A lógica da
simplicidade.
E os
Guarani-Kaiowá colocam a sociedade brasileira diante de um dilema
também. Salvá-los não basta. Definir uma terra para aquelas famílias
não significa o fim do drama indígena no Brasil. O apressado movimento
dos atletas de consciência em demarcar áreas para essas famílias em
particular não acomodará as tensões que eclodem todos os dias nas
áreas permanentemente em disputa entre indígenas e grileiros ou entre
indígenas e Estado. Há que ultrapassar esse limite da resolução de um
drama singular. Há que se colocar de frente com todos os conflitos. Há
que se compreender a realidade indígena, conhecer seus costumes, seus
deuses, seu modo de organizar a vida. Salvar os Guarani-Kaiowá de Mato
Grosso do Sul não pode ser só um ato a mais de musculação de
consciência, praticado numa situação específica, com um grupo
específico. O drama indígena em “nuestra américa”, inaugurado com a
valentia de Hatuey, atravessando perigosas ondas do Haiti até Cuba
para anunciar a desgraça e conclamar a união na luta, não se esgota
naquele grupo de homens, mulheres e crianças que hoje assumem a
condição de cordeiros de sacrifício. Os indígenas não precisam de
nossa pena, nem da nossa comiseração. Eles só precisam ser respeitados
nos seus direitos e na sua vontade de ser quem são.
Os Guarani-Kaiowá
estão a dar uma lição. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça. E
aprenda!
Fonte: Brasil de
Fato, 23/10/12.