‘Os quatorze anos de Chávez à frente da Venezuela trouxeram mais
avanços do que problemas’
Por Valéria Nader
e Gabriel Brito*
Hugo Chávez tem
pela frente mais seis anos na presidência da Venezuela, e seu projeto
bolivariano já alcançou duas décadas na direção política do país. Com
um dos processos eleitorais mais polarizados do planeta, a Venezuela
segue sendo analisada por prismas radicalmente opostos, o que
obscurece o panorama para aqueles que não vivem a realidade local.
O jornalista e
professor da Faculdade Cásper Líbero, Gilberto Maringoni, conhecedor
da realidade venezuelana e também autor do livro A Venezuela que se
inventa: poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez, conversou com
o Correio sobre este controverso país e seu presidente. Para ele, a
vitória de Chávez ilumina a continuidade de um processo iniciado
justamente em seu triunfo de 1998, no auge do neoliberalismo na
América Latina. Apesar das justas críticas ao burocratismo e
centralismo em torno do mandatário, Maringoni acredita que uma derrota
seria desastrosa para o processo político da região, num momento em
que a Venezuela acaba de entrar no Mercosul, abrindo ótimos mercados
para seus parceiros e também ganhando uma “inédita” chance de avançar
rumo a uma maior industrialização.
Quanto ao
centralismo, o entrevistado lembra que o movimento social foi muito
massacrado no país no período anterior, das democracias de fachada do
Pacto de Punto Fijo (1958), tendo sido, de fato, reestruturado de cima
pra baixo, tal como o PSUV (Partido Socialista Unido de Venezuela).
Além disso, destaca que a falta de desenvolvimento industrial e
agrícola também acarreta num outro perfil de classe trabalhadora,
dificultando a organização popular e sindical num país onde os
trabalhadores que orbitam o ramo petrolífero são cerca de 0,3% dos 30
milhões de venezuelanos.
No entanto,
Maringoni acredita na continuidade do processo e destaca a figura de
Nicolas Maduro, ex-chanceler e com forte atuação internacional, como
uma nova liderança a despontar na base chavista. E ironiza o
histrionismo midiático, interno e externo, em torno da figura do
reeleito, ao afirmar que “a população venezuelana não lê esses
jornais, não concorda com eles e continua votando no Chávez”.
A entrevista
completa com Gilberto Maringoni pode ser lida a seguir.
Correio da
Cidadania: Como você avalia a mais recente eleição presidencial
realizada na Venezuela, no último dia 7 de outubro, que terminou com
vitória de Hugo Chávez sobre Henrique Capriles por 55% x 45% de votos,
outorgando ao reeleito mais seis anos no cargo?
Gilberto
Maringoni:
Embora o resultado fosse esperado, vide as pesquisas que davam essa
vantagem, não deixa de ser surpreendente que um chefe de governo, após
14 anos no poder, se reeleja com uma votação percentual semelhante à
primeira eleição. Um governo submetido a todo tipo de pressão,
desgaste, turbulência.
Um governo
nacional é uma entidade muito complexa, não depende somente do chefe
de Estado, de um líder, uma figura, mas de toda a ação das políticas
públicas, cotidianamente, na segurança pública, política de energia,
enfim, naquilo que se traduz no conforto, ou não, da vida do cidadão.
Acho incrível que tenha repetido aquele percentual de 1998.
Em segundo lugar,
sua vitória adquire um caráter não só simbólico, mas importante,
porque a primeira vitória do Chávez foi vista como exceção na América
Latina no final daquele período neoliberal dos anos 90. E logo depois
tivemos uma série de eleições na região que colocou nos governos
líderes que eram críticos, em maior ou menor grau, aos caminhos feitos
pelos governos neoliberais. De modo que o Chávez inaugurou uma fase na
América Latina, o que se confirma não só por ele, mas também com a
eleição ou reeleição de Mujica, Dilma, Kirchner, Evo, Correa... Embora
não tenham muita identidade entre si, contrapuseram-se ao
neoliberalismo.
Correio da
Cidadania: Por outro lado, mesmo com a vitória de Chávez, tivemos um
notório crescimento da direita, agora mais organizada para o jogo
democrático e mais divorciada de tentativas golpistas, ainda que não
completamente. A que se deve essa recuperação, ao menos nas urnas, da
direita do país?
Gilberto
Maringoni:
Essa mudança da direita já acontece há alguns anos, não é de hoje. Ela
começou a se organizar em 2007, quando o Chávez perdeu o plebiscito
constitucional. Mesmo na eleição que o Chávez ganhou do Manuel
Rosales, a oposição já tinha se organizado – e com menos condições que
hoje. Isso mostra que foi ali que ela começou a usar tal tática.
Porque, entre 2002 e 2005, a tática era desconhecer o processo
institucional inaugurado pela eleição do Chávez, o que queria dizer
não reconhecer a reconstitucionalização do país a partir de 2000.
Assim, foram para
o golpe, tentaram tirar o governo à força, fizeram locautes e contaram
com campanhas difamatórias da mídia interna, controlada pela oposição,
além de enorme parte da mídia comercial mundial. Tentaram desconhecer
resultados eleitorais e, não raro, denunciar o processo em organismos
internacionais, sem efeito. Agora, aderem ao jogo democrático, se
organizam e isso é ótimo para a democracia, coloca o debate de ideias
e projetos na ordem do dia e fecha cada vez mais o espaço à sua
tendência de golpismo e também a suas alas mais afeitas a tal conduta.
O governo
venezuelano recolocar a direita na disputa democrática não é qualquer
coisa. Temos aí o exemplo de Paraguai e Honduras, em que a direita
partiu para o golpe e levou, também vencendo internacionalmente nesses
casos e conseguindo de alguma forma se legitimar.
Correio da
Cidadania: Deparar-se com críticas de campos mais progressistas ao
projeto chavista não é algo que ronde muito a imprensa à qual temos
mais acesso, ventríloqua das críticas à direita ao governo
venezuelano. No entanto, com 14 anos à frente do poder, começam a ser
denunciadas, na mídia mais à esquerda, algumas fissuras e desgastes no
projeto e governo chavistas. O que pensa das críticas advindas desses
setores, que acusam, por exemplo, Chávez de barrar a atuação sindical
e mais autônoma dos trabalhadores, abusando do centralismo, e
impedindo a formação de novas lideranças?
Gilberto
Maringoni:
Sim, muitas fragilidades vêm à tona. Não estou lá todo dia pra falar
melhor, mas o que sentia é que a Venezuela viveu um processo nos anos
60, 70 e 80 de repressão ao movimento social, que não se deu de forma
tão aberta, pois a Venezuela não teve ditadura, oficialmente.
Atravessou o período com governos eleitos democraticamente. Mas era
uma fachada. Como sabido, desde o Pacto de Punto Fijo (1958) houve um
acordo de dois partidos majoritários que eliminava o dissenso,
eliminava a esquerda e fazia repressão aberta ao movimento social que
se contrapunha ao jogo de carta marcada, cooptando a parte mais dócil
desse movimento social.
Acontece que a
Venezuela chegou à eleição do Chávez com o movimento social totalmente
desarticulado. Esse movimento começou a se reorganizar a partir de sua
vitória, e de cima pra baixo mesmo. A formação do PSUV (Partido
Socialista Unido Venezuelano) e de uma nova central sindical se deram,
do mesmo modo, muito de cima pra baixo. Fica difícil dizer se há todo
esse controle, mas se trata de uma situação de debilidade do movimento
sindical também. É muito difícil organizar uma base social consistente
com o grau de ataques feitos aos movimentos no período anterior. Mas
nem acho que seja este o problema mais grave. O problema sério é a
falta de alternância e de liderança, o que não depende do Chávez
querer ou não. Ele até tenta. Agora quem vai para a vice-presidência é
o Nicolas Maduro, que foi uma revelação como ministro das Relações
Exteriores e que talvez seja, na cúpula do chavismo, o quadro político
mais preparado para a sucessão. Existe uma tentativa.
Essa é uma
situação comum em países que passam por tensões sociais muito agudas,
como em Cuba (apesar de a Venezuela não ter passado por revolução),
onde a figura do Fidel Castro, mesmo fora do poder, tem uma
preponderância enorme... A população não vê o Fidel apenas como um
líder. Ele é visto como um herói que libertou o país de uma ditadura
se confrontando com o domínio dos EUA, de forma mítica. Na Venezuela
não é muito diferente. O golpe que o Chávez tentou em 1992 se deu numa
situação em que tinha acabado de acontecer a repressão de 1989, o
Caracazo, com 1200 pessoas mortas pelo aparato de segurança. Houve uma
rebelião popular contra o aprofundamento da crise econômica e um
governo corrupto, do Carlos Andrés Perez, que estava desgastado. E aí
o Chávez tentou um golpe de Estado. Não como loucura irresponsável,
mas como saída heroica ao país. O Chávez adquiriu a aura de herói, de
quem enfrentou o golpe em 2002, venceu todos esses enfrentamentos e
agora venceu o câncer. Ele tem características míticas que não
permitem que se coloque qualquer um no seu lugar, não é fácil.
Há que se
considerar ainda o fato de a Venezuela ser um país muito menos
complexo que o Brasil, por exemplo. Não tem indústria, só a
petroleira. O fato de não ter indústria não significa apenas que o
país não possa produzir bens de consumo mais sofisticados. As relações
entre as classes sociais são muito diferentes. Não existe uma
burguesia venezuelana como no Brasil, com uma classe dominante
industrial, produtiva. As entidades empresariais de lá, e seus
líderes, seriam considerados, com muito boa vontade, médios
empresários no Brasil. Porque o grosso dos ricos venezuelanos vive, ou
vivia, em volta da riqueza e indústria estatais do petróleo. Podemos
pensar em algumas redes empresariais, como telecomunicações, mais
fortes, mas são exceção. O Gustavo Cisneros (empresário com fortuna
avaliada em 6 bilhões de dólares e próximo ao ex-presidente Carlos
Andrés Perez) sequer vive na Venezuela, a maior parte de seus
investimentos está nos EUA, espalhada pela América Latina, Ásia,
Europa...
Isso também faz
com que não se tenha uma classe operária numerosa. De modo que a
esquerda venezuelana tinha uma grande debilidade, não porque seus
militantes fossem menos heroicos ou aguerridos, mas porque a base
social deles era muito pequena em relação ao conjunto da população.
Para se ter ideia, o país tem hoje 30 milhões de habitantes. Na
indústria petroleira, trabalham 110 mil pessoas, direta e
indiretamente, cerca de 0,3% da população. Quais são as outras
atividades que existem por lá? Não tem indústria automobilística, de
informática, não tem uma agricultura potente... Estão todos no setor
de comércio e serviços. E nesses setores, vive-se de importações.
Esta é uma marca
das economias petroleiras, não só da Venezuela. Esses países têm
petróleo, que brota do solo, é exportado, muitas vezes sem muito
refino. Apesar de a Venezuela já fazer refino, recebe uma enxurrada de
dólares, o que leva à valorização da moeda nacional. A partir daí,
começa-se a importar tudo. É muito mais barato na Venezuela importar
carro, computador, qualquer eletrônico, do que produzir internamente.
Tem dinheiro sobrando. O Celso Furtado, em 1957, foi quem percebeu
esse fenômeno, ao escrever um livro, relançado há poucos anos, chamado
Venezuela: subdesenvolvimento com abundância de capital. Ele queria
dizer que, geralmente, o subdesenvolvimento é associado a uma carência
de capital proveniente de países desenvolvidos. A Venezuela tem muito
capital e não se desenvolve. O dinheiro entra, mas, como não há
atividade produtiva consistente, não tem onde ser investido de forma
permanente. Assim, os ricos mandam esse dinheiro pra fora, ele não
fica no país. Por isso o Chávez estabeleceu como política econômica
desses 14 anos a apropriação da riqueza petroleira, com a formação de
um fundo de desenvolvimento e sustento. Parte da riqueza até pode
ficar fora do país pra não valorizar demais a moeda, e essa riqueza
pode ser usada pra desenvolver setores produtivos da economia do país.
Consegue? Não.
Consegue só em algumas áreas. Eliminando o analfabetismo, alavancando
programas sociais importantíssimos. A vida melhorou na Venezuela, o
salário mínimo é o melhor da América Latina, corresponde a 1400 reais,
mas não consegue dar aquela virada pra fazer o país economicamente
autônomo. Ao mesmo tempo em que entra esse dinheiro, pra instalar uma
empresa, além do problema de câmbio e da propensão a importar, não se
tem um mercado interno forte, que permita, por exemplo, a instalação
de uma indústria automobilística de peso.
Correio da
Cidadania: O que pensa ainda das críticas do Partido Comunista local,
que denuncia uma crescente burocratização e corrupção do aparelho
estatal, e a tolerância com a formação de uma nova elite econômica,
apelidada por eles de “boliburguesia”?
Gilberto
Maringoni:
São realidades de qualquer governo. Precisa ver em detalhes. Existe
uma burocracia estatal, onde quem está quer ficar. A burocracia em si
não é ruim, o Estado precisa de uma rotina de iniciativas que tem esse
nome, a própria palavra vem de birô, de escritório. O burocratismo se
dá quando a norma, a lógica, a rotina administrativa, suplantam a
necessidade de suprir demandas.
Não estou
acompanhando em detalhes nesses tempos, mas não duvido, é possível. A
formação de uma nova elite não surpreende, o país segue capitalista,
ainda não socialista. No capitalismo, temos a característica da
concentração de renda, com setores detentores de mais renda que
outros. Mesmo assim, essa concentração caiu. É possível que parte dos
empresários que presta serviço ao Estado tenha se beneficiado disso.
Mas, pelo que vejo, não é uma norma de governo, apenas acontece.
Não estou lá pra
ver, na sintonia fina, e ler a imprensa venezuelana não basta. De lado
a lado, não é muito fácil se informar bem, pois a tomada de posições é
muito forte, com a grande polarização que há e muita troca de
acusação. A formação de novas elites econômicas é algo a ser
combatido, mas não é estranho ao processo.
Correio da
Cidadania: O “Estado-comunal”, que consistiria na formação de comunas
que teriam ordenamento jurídico e autonomia política próprios em
relação aos estados e municípios, é visto por alguns como um
aprofundamento do poder popular, tal como no caso das ‘misiones’; e,
por outros, como uma reincidência no excesso de centralismo
presidencial. Como encara esta experiência?
Gilberto
Maringoni:
Essa proposta comunal já existe há uns quatro anos. O problema da
Venezuela é aumentar a participação popular, incentivar o engajamento
social, com o poder da sociedade exercido de baixo. Isso porque temos
problemas com a institucionalidade burguesa – chamemos pelo nome.
Problemas no Judiciário, câmaras, prefeituras, assembleias
legislativas etc. Não sei como isso vem sendo encaminhado ultimamente,
mas, se é pra democratizar a institucionalidade burguesa, é ótimo.
Porque nela nós temos problemas, o poder constituído funciona
autonomamente em relação às demandas da população. A população vota de
dois em dois anos e depois os poderes funcionam sozinhos. Ter um
judiciário com conselhos cidadãos, assim como assembleias e
prefeituras com poderes emanando de baixo, é muito positivo. Não é
fácil construir isso, trata-se muito mais de uma ação de partido, de
movimentos, de força política na sociedade, do que de decisão por
decreto. Mas, se a ideia de Estado comunal puder ser concretizada na
Venezuela, é muito bom. Tem que ver como se casa com a democratização
da institucionalidade burguesa realmente existente.
Correio da
Cidadania: As críticas progressistas ao governo chavista – tido como
uma das poucas experiências autenticamente soberanas na América Latina
- remetem, de um certo modo, ao próprio senso crítico mais à esquerda
relativo ao governo Lula/Dilma, ambos enfatizando as insuficiências de
um projeto de desenvolvimento basicamente assistencialista, incapaz de
conduzir a uma efetiva emancipação e distribuição da renda nacional. O
que diria frente a esta analogia?
Gilberto
Maringoni:
Não se trata de assistencialismo, essa é a maneira com que a direita
chama qualquer distribuição de renda: “assistencial”, “paternalista”,
“populista” etc. Não é bem assim, o aumento de salário mínimo na
Venezuela é pra todos, direito universal. Os direitos reconhecidos das
minorias são universais. Não tem essa de assistencialismo. Depara-se
com um processo de transformação, de aumento de emprego mesmo sem
industrialização, mas com serviços, incentivo à pequena empresa,
financiamento a pequenas iniciativas, empreendedorismo popular, coisas
muito importantes.
Assistencialismo
é o seguinte: o governo dar uma mesada pro pessoal não fazer nada.
Isso não existe, nem o Bolsa-Família é assim. Há um processo de
conquista social muito acentuado na Venezuela, que vem se dando num
momento difícil do mundo, de crise econômica, do capitalismo e do
neoliberalismo, de agressão do imperialismo, que já tentou e não
conseguiu derrubar o Chávez.
As críticas
existem, devem ser feitas, há burocratismo, há problema na execução de
recursos públicos, mas isso é parte de um processo formador nada fácil
de ser tocado nos tempos que correm e num país sem autonomia
industrial, como é o caso da Venezuela.
Correio da
Cidadania: O que pensa da aproximação de Chávez com o presidente
colombiano Juan Manuel Santos?
Gilberto
Maringoni:
A aproximação do Chávez com o Santos é uma política de Estado, não de
partido. Ele não pode só bater num país que, ao lado do Brasil, tem a
maior fronteira com a Venezuela, um país que tem essa fronteira
desguarnecida e um intenso comércio bilateral, crescente nos últimos
anos. A aproximação é positiva.
É preciso dizer
que o Juan Manuel Santos não é o Álvaro Uribe. O Uribe fez um governo
mais à direita. Os dois são do espectro da direita, mas Uribe era o
governo do tacape, do enfrentamento pesadíssimo contra as FARC e
também de enfrentamento aberto ao governo Chávez. Era o governo do
Plano Colômbia, governo que recebeu bilhões de dólares, muita coisa
pra um país daquele tamanho, para um plano de defesa inexplicável. Um
plano de defesa que colocava nove bases militares dos EUA no país,
para pouso de aviões bombardeiros, cargueiros etc., tornando o país
quase um protetorado estadunidense.
O Santos não só
deixou de ir adiante com o Plano Colômbia, como deixou de fazer uma
política agressiva contra a Venezuela, como o Uribe fez. Com Uribe,
era quase declaração de guerra. O Santos, mesmo sendo de direita,
procurou o caminho da convivência política mais pacífica. Quem tem de
resolver os problemas do governo colombiano é a população colombiana,
a correlação de forças internas, não tem por que o Chávez entrar nesse
combate. Juan Manuel Santos mostrou querer uma convivência pacífica e
até chamou o Chávez para ajudar nas negociações com as FARCs.
Correio da
Cidadania: Quanto à entrada do país no MERCOSUL, qual a sua avaliação?
Gilberto
Maringoni:
A entrada da Venezuela no Mercosul talvez seja o acontecimento
político-econômico mais importante do continente nos últimos anos.
Isso porque expande o Mercosul de forma inédita. O órgão foi criado
nos anos 90, na época do governo Collor, com apenas quatro países
(Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai), no momento de auge do
neoliberalismo. A autonomia do MERCOSUL, não só como mercado, mas como
área de intercâmbio político, cultural e social, era nula. Era um
projeto 100% neoliberal. Mas o Mercosul vem mudando, não à toa vem
sendo combatido por certa direita do continente.
De toda forma,
tornou-se um mercado espetacular. Abrir um mercado consumidor como a
Venezuela interessa para o empresariado de países como Brasil e
Argentina. E abre também, pela primeira vez, a chance de a Venezuela
ser um mercado não só de petróleo, mas que se expanda, com isenções
aduaneiras e desenvolvimento de novos mercados, implantando novas
indústrias internamente. É um mercado monstruoso em termos de
população e PIB.
No meio disso,
tinha a saída do Paraguai fazendo ruído. Por que eles eram contra a
Venezuela no Mercosul? Era um problema meramente político-ideológico,
porque ao Brasil (mais) e à Argentina (menos), países mais
desenvolvidos, interessava a entrada da Venezuela - o comércio entre
Brasil e Venezuela cresceu sete vezes entre 2002 e 2012. E o Brasil
tem muita a coisa a vender, leite, frango, gado, aviões, automóveis,
assim como a Argentina. O Paraguai não tem nada pra vender pra eles,
por isso pôde ser a ponta de lança dos interesses dos EUA dentro do
bloco, sendo efetivamente o único país a se contrapor à entrada da
Venezuela.
O PIB da
Venezuela, agora incorporado ao Mercosul, é de 320 bilhões de dólares,
fantástico, sendo um país de mercado interno crescente. Com 30 milhões
de venezuelanos, passa-se a ter uma população total nos países do
bloco de mais de 300 milhões, cadeias produtivas, como de energia e
indústria, mais completas. Tanto que vários países querem fazer
acordos de livre comércio na região. Não só Peru e Chile querem ser
parceiros, mas também países como Israel, Egito... É uma área que não
foi derrubada profundamente pela crise internacional, como Europa e
EUA. Os outros países da região têm muito a ganhar. Já o Paraguai, ao
dar o golpe de Estado, rompeu com a cláusula de Ushuaia, que
determinava a não participação de países que tenham quebrado seu
processo democrático.
Correio da
Cidadania: Consumada, de todo modo, a vitória chavista, o que o
governo precisaria levar adiante para conseguir conter o avanço da
direita e aprofundar seu “socialismo do século 21”, dinamizando essa
economia gritantemente dependente da renda petrolífera?
Gilberto
Maringoni:
É difícil dar uma fórmula do que precisa ser feito. Acho que eles
estão agindo. A fase é de uma disputa política concreta, melhorando o
acesso a recursos públicos, mas fazendo a batalha de ideias. A
oposição foi pra batalha de ideias, ganhou grandes setores da classe
média, ganhou espaço entre os pobres... Não dá pra dizer que Capriles
teve 45% de votos só com base na classe média e na burguesia. Não.
Essa é a questão séria: analisar o perfil dos eleitores e fazer o
debate nacional.
Não tenho nenhuma
dúvida que é muito bom o Chávez falar de socialismo político do século
21, como parte da luta política, exaltando um valor de uma sociedade
que não seja comandada pelo mercado. Na prática, o que ele tem feito,
e é muito bom, foi tomar a frente dos mecanismos de planejamento e
controle econômico do Estado, com uma correspondência com o
nacional-desenvolvimentismo, apesar de este ser um conceito de outra
época. Mas tem muito a ver com a ideia de Estado forte, que possa
suprir as necessidades de serviços públicos da população com razoável
competência e dinamismo.
Correio da
Cidadania: Como coloca, finalmente, esse pleito no xadrez político
latino-americano? Qual seu grau de representatividade neste momento?
Gilberto
Maringoni:
Fiquei pensando no oposto, o que seria se ele perdesse. Seria um
desastre. Acredito que a vitória de Chávez joga continuidade nesse
ciclo, mas a Venezuela precisa, pela riqueza do processo político, de
novas lideranças para assumirem o lugar do Chávez, que não ficará pra
sempre. Se sua doença tivesse se agravado, o país teria problemas
nesse sentido, de escolha do sucessor. Mas sua vitória dá luz a um
processo de mudança na América latina, que começou com a própria
eleição dele em 1998.
Correio da
Cidadania: Gostaria de acrescentar algo, especialmente no que se
refere ao tratamento midiático dessa disputa, tanto dentro como fora
da Venezuela?
Gilberto
Maringoni:
Li um artigo no Estado de S. Paulo, traduzido do NY Times, em que o
colunista dizia que a vitória do Chávez era o início do fim do
chavismo. Fui ler para saber por que, e era incrível: quarta vitória
presidencial do Chávez, num processo de 14 anos, que se mantém, e ele
analisa que o crescimento da oposição é o dado mais importante. Claro
que este crescimento é um dado importante, não vamos subestimar. Mas o
tratamento da matéria é aquele que sempre tende a distorcer, a colocar
o governo de Chávez como um governo ditatorial, autoritário.
Há mil problemas,
começando por essa necessária renovação das lideranças, pela
conformação de um movimento social autônomo frente ao governo, que não
seja controlado de cima pra baixo, pelo melhor manejo de recursos
públicos... Tudo isso é verdade, mas os passos que se deram nesses 14
anos são impressionantemente maiores que os defeitos do governo. E
foram passos dados num momento difícil da política mundial, com a
Europa inteira tomada por governos de direita, as tensões dos EUA,
invadindo Afeganistão, Iraque, jogando peso na invasão da Líbia e
ameaçando a Síria e o Irã... O poder bélico da direita mundial nunca
foi tão grande, assim como a crise econômica dessa direita. E a
Venezuela deu a volta por cima, o que não é pouco.
O segredo de
fazer política, na imprensa tendenciosa, é exaltar as próprias
qualidades e os defeitos dos oponentes. Assim é muito fácil. Todo
mundo tem defeitos e qualidades. Se eu exalto minhas virtudes e os
seus defeitos, pronto. Aos olhos da opinião pública, com todo esse
aparato midiático, é o que vale. O noticiário da Globo, Estadão, Folha
é isso, não é surpresa. Mas eles não conseguem mais o que faziam há 10
anos, quando o golpe de Estado na Venezuela foi uma surpresa para os
órgãos daqui. Agora eles têm correspondentes lá, um maior intercâmbio.
Mas a cobertura continua tendenciosa. Fazer o quê? Eles tocam a vida
assim. A população venezuelana não lê esses jornais, não concorda com
eles e continua votando no Chávez.
* Valéria Nader,
economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel
Brito é jornalista.
Fonte: Correio da
Cidadania, 26/10/12.