O poder do agronegócio sobre os Estados na Rio+20
Economista aponta
agroecologia como via para superar o superpoder das transnacionais da
agricultura
Com vasta
experiência na área agroecológica no Brasil, o economista Jean Marc
Von Der Weid participou junto à sociedade civil da ECO 92 e vem
acompanhando desde a década de 1980 os movimentos ambientais no
Brasil. Atualmente é coordenador de Políticas Públicas da ONG
Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) e membro da Articulação
Nacional de Agroecologia (ANA).
Nesta entrevista
ele fala sobre a perspectiva de fracasso da Rio+20, as forças
políticas e interesses que estão em xeque, a falsa visão ambiental da
economia verde e aponta a agroecologia como solução para muitos
problemas climáticos e energéticos no planeta. Segundo o estudioso e
militante, a tendência é uma regionalização da cadeia produtiva
alimentar e a potencialização da agricultura familiar para garantir a
alimentação dos povos.
Você pode
primeiro contextualizar o evento que ocorreu no Rio de Janeiro em 1992
e os compromissos que foram cumpridos ou não nestes 20 anos?
As diferenças entre 1992 e a Rio+20 são radicais e contraditórias.
Porque hoje você tem muito mais crítica sobre o modelo de
desenvolvimento e o sistema capitalista no mundo, e muito mais
informação dos impactos ambientais. No entanto, naquela altura havia
mais interesse dos governos em discutir esses problemas e enfrentar as
questões. É paradoxal, mas é assim. Hoje as multinacionais e grandes
empresas estão atuando a fundo tanto nos espaços nacionais para
definir as políticas e programas de seus governos na Rio+20, como
participando das delegações oficiais e criando espaços paralelos de
debate. Houve uma série de resoluções importantes do ponto de vista do
meio ambiente e do desenvolvimento em 92, que hoje em dia não tem nada
similar sendo discutido: a Convenção da Biodiversidade e a do Clima, a
própria Agenda 21, etc.
De lá para cá
existe, tanto na questão climática, quanto na biodiversidade, um
processo de erosão das decisões que foram tomadas, as resoluções foram
esvaziadas paulatinamente. A questão do clima se transformou depois na
reunião de Copenhagen, que rigorosamente não tem mais nenhum tipo de
compromisso internacional que seja levado a sério. E o governo
estadunidense nunca entrou nos compromissos internacionais sobre a
questão climática. O resultado é uma porcaria, e sequer envolve o
compromisso dos estadunidenses em aplicar as tais resoluções.
A construção da
questão ambiental está muito mais enfraquecida. A fórmula da Rio+20
tem evitado fazer um balanço do que aconteceu nos últimos 20 anos, e o
balanço é lamentável. Você tem algo oficioso pela ONU que pega todos
os acordos feitos de 1992 para cá e sucessivas reuniões daquelas
decisões. Mas não tem nenhuma situação de progresso internacional do
ponto de vista objetivo, e nem do arcabouço jurídico institucional que
deveria reger essas mudanças. Pelo contrário, e o resultado é que
houve uma aceleração do processo de aquecimento global. Na questão da
biodiversidade, estamos perdendo espécies mais rapidamente, sobretudo
porque entrou em jogo a produção transgênica, que foi um arraso em
relação à variedade genética. E várias outras coisas, como perdas de
solo e água.
Até que ponto vai
a influência da participação corporativa nas negociações?
A iniciativa
empresarial apagou o que estava acontecendo e simplesmente começou
tudo de novo. Em 1992 instituiu-se a ideia de desenvolvimento
sustentável, que sempre foi complicada. O princípio era interessante,
mas quando se define sustentabilidade cada um dá a sua definição. A
Monsanto e a Coca Cola dizem que o que elas fazem é sustentável, por
exemplo. Quando você não tem um critério estabelecendo um conceito
universal, cada um faz e fala o que bem entende. Atualmente está sendo
lançado um novo conceito de economia verde que, na prática, é mais do
mesmo pintado de verde. Transgênicos e agrotóxicos são apresentados
como economia verde.
Estamos num
momento muito ruim do ponto de vista do destino da humanidade, porque
os governos estão extremamente enfraquecidos. Essa é outra grande
diferença de 92, quando havia uma expansão da economia internacional
que praticamente só fez acelerar até 2008. Se você descontar a
economia da China e da Índia, que ainda se mantêm em expansão
acelerada, embora o ritmo tenha diminuído, o resto do mundo está
paralisado. Não é um bom momento para você falar em reformar o sistema
e aplicar recursos para mudar a base produtiva, porque os governos não
vão mudar. Eles querem manter as coisas como estão, e rezar para que o
meio ambiente não reclame.
A tendência é que
não ocorram avanços na Rio+20?
Os organizadores
acham que não vai ter avanço. O francês Brice Lalonde, que é
secretário da Rio+20, disse em público que confiava na sociedade civil
para agitar a Conferência. Mas a sociedade civil não está imune aos
problemas que o conjunto da economia mundial está passando. Muitas
organizações sociais estão na defensiva tentando segurar os direitos
conquistados ao longo de 50 anos, porque a contraofensiva patronal
hoje na crise financeira é para derrubar os direitos dos
trabalhadores. A receita aplicada na Grécia é a ameaça para todo
mundo. E ao mesmo tempo as empresas não perdem nada, pelo contrário,
com a ameaça de quebra o Estado sai bancando o prejuízo. Os bancos são
os primeiros beneficiários, os grandes gerentes do sistema financeiro
internacional continuam ganhando uma baba sem restrição nenhuma. Por
outro lado, você tem muito mais capital de conhecimento acumulado pela
sociedade civil, principalmente científico, nos temas chave de 92 e
hoje. A agroecologia ainda não tinha a segurança que tem para dizer
que não é uma aposta, e sim alternativa clara para o desenvolvimento.
Experiências apontam saídas e soluções para a nossa crise sócio-
econômica-ambiental.
Você falou que a
gente vive uma crise ambiental sem precedentes. Quais são as questões
mais graves que a humanidade enfrenta hoje?
Você tem dois
tipos de riscos, um ambiental e outro econômico energético. A questão
ambiental mais grave, nos próximos 50 anos, é o aquecimento global,
cujos efeitos são devastadores e em múltiplas direções. Começando por
desestabilizar o sistema produtivo agrícola de forma brutal, e tudo
com consequência direta na segurança da humanidade. O aquecimento
global pega pesadamente na qualidade da água e quantidade e qualidade
de alimentos. A agricultura está no coração dos problemas energéticos
e do aquecimento global, mas ninguém está discutindo o que vai
acontecer do ponto de vista energético nos próximos tempos.
Uma das propostas
da economia verde na energia é você substituir combustíveis fósseis
por eólico, hidroelétrico, hidráulico, etc. Mas não é discutido a
fundo o quanto precisa fazer e em que velocidade para responder os
problemas de queda na oferta de energia nos próximos 30 anos. Há uma
avaliação cada vez mais generalizada de que a era do petróleo e gás
está acabando, e as implicações são absolutamente colossais para a
humanidade. Não há ainda nenhuma alternativa verde que dê conta dessa
perda. Os custos vão ser muito mais altos, e a dificuldade de
implantação vai exigir um tempo de transição muito grande. A crise vai
pegar mesmo no fígado.
E o Brasil está
vindo com o pré-sal na contra mão da história...
Nós estamos
achando petróleo numa quantidade razoável porque as descobertas no
mundo são cada vez menores e o consumo vem crescendo muito rápido. A
tendência geral é de queda e custos mais altos com impacto enorme na
economia. Isso vai desorganizar a economia do mundo como um todo. O
sistema alimentar mundial, hoje, tem um custo energético monstruoso
para produzir, processar, transportar e uma perda colossal no consumo.
Tem desperdício ao longo da cadeia, mas o desperdício final, sobretudo
nos países mais desenvolvidos, vai além de 30%. Dados apontam para um
desperdício de alimentos nos Estados Unidos é dez vezes superior ao da
África subsaariana. O sistema mundial foi bolado num período de
baixíssimo custo de transporte, com petróleo a preço de banana. O
custo médio nos Estados Unidos de um alimento normal no prato de um
americano é de 5 mil milhas de viagem. No Canadá são 12 mil em média,
então esse tipo de situação vai ser completamente desarticulada e
desorganizada. E se fizer biodiesel e álcool combustíveis, vai pegar
na cadeia alimentar pesadamente. O Fidel Castro fez uma comparação
dizendo que o álcool combustível, com esse negócio do biodiesel, é
botar em concorrência a alimentação do pobre com o carro do rico.
Você falou da
crise climática e uma crise energética, e as duas estão associadas...
Enquanto você não
tem uma solução energética de combustíveis fósseis, a tendência é o
mundo usar até o limite. Na medida em que o petróleo está ficando
caro, por exemplo, está voltando a se utilizar o carvão que é o maior
emissor de gases de efeito estufa. É um círculo vicioso. A aceleração
do processo de substituição não pode vir simplesmente pela extinção do
que existe, você tem que antecipar com alguma solução que evite uma
situação dramática. Os recursos naturais renováveis têm a ver, por
exemplo, com as estruturas: água, solo, biodiversidade, que são
altamente ameaçadas. Nos anos 90 já tinha perda de aproximadamente 46%
de toda a área cultivada em culturas anuais. São em torno de 2 bilhões
de hectares de área de cultivo, e em torno de 12% já está
inviabilizado para produção. Os índices mais pesados são os da
agricultura convencional, o agronegócio, até porque são os que ocupam
as melhores terras do mundo. E a água está acabando por várias razões,
entre elas o aquecimento global, que está interferindo, por exemplo,
nos sistemas de irrigação na Índia e em todos os países dos Andes.
Estes dependem desde o tempo dos incas do derretimento da neve na
estação do verão para alimentar os rios e córregos para fazer
irrigação. O problema é que atualmente você tem invernos em que não
neva. Na Índia é pior ainda, porque os glaciários do Himalaia estão
derretendo e quando acabar o Ganges seca.
Quais
experiências propõem uma alternativa para essa crise energética e
climática que você está desenhando?
Na verdade não há
nenhuma solução elaborada que permita você dizer que tem um modelo
econômico macro, em grande escala, que responda a essas questões
mundialmente. Uma coisa fundamental que já vem sendo batida desde o
relatório de 1972 é a necessidade de alterar o modelo de consumo do
mundo. A começar pelo consumo energético como, por exemplo, a
civilização do automóvel individual que está condenada. Você tem que
criar uma sociedade que funcione com o transporte público e circuitos
mais econômicos. Porque o automóvel, em particular o dirigido por uma
pessoa, é uma das coisas de pior eficiência energética que você pode
achar no mundo. E outras coisas, como no consumo alimentar esse
negócio da milhagem. A pessoa vai ter que se alimentar de acordo com o
que é possível produzir com a menor distância possível para ela
consumir. Então você vai alterar os regimes alimentares mundo afora,
relocalizar o sistema alimentar e, inclusive, mudar as dietas.
Do ponto de vista
da produção, na agricultura o futuro é claramente a agroecologia. É um
sistema de balanço energético positivo. Nos Estados Unidos, para cada
caloria servida ao freguês você investe 10. Com o sistema
agroecológico você vai reduzir a emissão de gases de efeito estufa,
segurar as questões de destruição de solo e a economia no uso de água,
além da conservação de biodiversidade. A agroecologia pode ser operada
em níveis muito variados. É um sistema múltiplo de cultivos e criações
intercalados com vegetação nativa manejado de uma forma sistêmica. A
estratégia da agroecologia é mimetizar os sistemas naturais, você se
aproxima da diversidade natural para usar o seu sistema produtivo. É a
melhor produtividade possível por área, mas tem uma série de
restrições. Para você manejar um sistema altamente diversificado e
complexo, você vai precisar de mão de obra qualificada. E vai ter um
limite da quantidade de área por mão de obra utilizada, pois são
sistemas em que o nível de mecanização é baixo. Uma proposta
agroecológica no limite de seu potencial de diversidade é, por
exemplo, o sistema de Fukuoka, no Japão, cujo cultivo é misturado
dentro do mato. Tudo é essencialmente manual, não tem absolutamente
nenhuma operação mecanizada. Mas você pode fazer coisas
intermediárias, não deixa de ser agroecológico, mas certamente o nível
de eficiência é menor pois o ideal é o máximo de diversidade de
sistema.
Para você fazer
um sistema altamente produtivo de agroecologia vai precisar de
agricultores familiares, que são os que têm interesse e conhecimento.
Não é um sistema que opere bem com mão de obra assalariada, pois esta
só funciona com tarefas simples como cortar cana, colher maçã,
conduzir o gado, etc. Se você vai pedir uma tarefa extremamente
complexa ele não tem interesse, porque vai ganhar igual por hora de
trabalho. E é o trabalho não alienado, com interesse direto de quem
vive daquilo e de tudo que ele acumulou de conhecimento para fazer
aquele negócio. Há uma simbiose perfeita entre a agroecologia levada a
seu limite máximo e a agricultura familiar. Isso significa que no
futuro precisa de muito mais agricultura familiar do que você tem
hoje.
Isso é uma
solução para o inchaço das cidades?
Com certeza, mas
a questão dos Estados Unidos, por exemplo, é que eles têm 2 milhões de
agricultores e precisariam botar 38 milhões no campo. Não é uma coisa
que você faça de uma hora para outra, nem que faça bem. Quando a crise
se colocar, eles vão precisar de gente para produzir alimentos e não
vão ter, pois os desempregados nas cidades não têm conhecimento. Cuba
é um bom exemplo de crise energética, pois viveu numa porrada só o que
o mundo está vivendo aos pouquinhos: a perda da energia fóssil. Eles
dependiam do petróleo russo para operar e de repente parou tudo do dia
para noite, porque a agricultura era toda mecanizada. Eles tiveram que
reformar o sistema produtivo de grandes fazendas mecanizadas em
propriedades familiares cooperativas. O grande problema foi achar
gente, é uma operação complicada porque se perdeu conhecimento. E a
nossa situação dramática no Brasil é um processo de perda de
conhecimento muito grande, porque a reforma agrária estancou. No
período do Lula houve uma evasão violenta de juventude no campo, e
quem é que vai herdar o conhecimento e continuar a tocar as coisas?
O agronegócio
está bem estabelecido no campo brasileiro?
Ainda tem uma
área grande na mão da agricultura familiar, mas a tendência, até por
pressão do governo, é mecanizar isso também. Aquele programa “Mais
alimentos”, que os movimentos chamam de “mais trator”, levou a
mecanização pesada principalmente no sul. Mas em muitos lugares
significou que o cara para mecanizar tem que fazer monocultura,
imediatamente um puxa o outro. Nós temos um patrimônio cultural e um
campesinato bastante rico, mas estamos vivenciando um processo de
erosão de conhecimento e de abandono do campo. No meu cálculo, para o
Brasil seriam necessárias 15 milhões de famílias para o
desenvolvimento agroecológico, e atualmente a agricultura familiar
deve ter 4,5 milhões. No governo Lula você tinha expectativa de
fortalecer a agricultura familiar e apertar um pouco os impactos do
agronegócio, mas não aconteceu. O agronegócio está nadando de braçada
e ganhou força, e querem impor o Código Florestal. Vamos ver se a
Dilma vai ter coragem de vetar.
Você pode fazer
uma radiografia da agroecologia no Brasil?
A agroecologia
deve ter cerca de 40 anos. O nosso programa foi um grande
impulsionador da agroecologia no Brasil, quando começou em 1983 ainda
era algo confinado a alguns profissionais das ciências agrárias
isoladas. Uma garotada da Federação dos Estudantes de Agronomia, os
grupos de agricultura ecológica, era um troço pequeno. Naquela altura
você tinha a agricultura orgânica na direção da agroecologia com a
biodinâmica. De lá para cá houve um avanço muito grande da
agroecologia, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) é uma
expressão de movimento agroecológico significativo que envolve tudo:
conhecimento tradicional, indígena, inovações da agricultura familiar
e científica, etc. Existem exemplos suficientes pelo país afora, não
só em outros países do mundo, que mostram o sucesso da Agroecologia.
São várias sistematizações que têm uma eficiência maior que o sistema
tradicional. Existem óticas e interpretações variadas porque, por
exemplo, tem áreas com uma influência maior do sistema de produção
orgânico, que está mais preocupado em produzir para um nicho de
mercado, pois paga mais caro, mas acho que limita um pouco o sistema
de produção agroecológico: poucos agricultores para poucos
consumidores.
O sistema de
agricultura orgânica no mundo padece desse impasse, porque o sistema
de regulação, de certificação, é um sistema de produção de mercado em
muitos lugares. Eu vi isso na França. Quando teve a crise da vaca
louca houve um hiperaumento de demanda para produtos orgânicos. E o
presidente da Federação de Produtores de Agricultura Orgânica disse
que estavam cheios de agricultores, mas o sistema de certificação
apertou os critérios de conversão. Freou a capacidade de novos
orgânicos entrarem no mercado.
Quais as
dificuldades da aproximação da agricultura familiar com a
agroecologia?
O agricultor
familiar enfrenta muitas barreiras com a legislação sanitária, porque
é montada para beneficiar grandes extensões. E para conversão de um
agricultor à agroecologia você precisa mostrar que o meio ambiente é
importante para ele produzir para ganhar. Frequentemente você entra
com diminuição de custo de produção, tirando o agrotóxico, produzindo
com semente crioula e sem adubo químico. E a tendência desses insumos
é aumentar a um ponto que o cara vai ver que esse sistema mais
integrado não só vai reduzir os custos de produção, como aumentar a
produtividade. E, sobretudo, diminuir o risco. Aos poucos ele começa a
ver que os elementos ambientais jogam um papel no sistema
agroecológico: primeiro deles é a conservação do solo.
Então o maior
desafio da agroecologia é a capacitação?
Capacitação. E
acho que tem uma questão pedagógica, uma abordagem correta é conseguir
mostrar passo a passo que essas práticas têm um impacto importante no
ponto de vista de custo, de risco, de benefício para saúde e
econômico. Isso é uma questão fundamental.
<Quem é>
Jean Marc Von Der Weid é economista e participou da ECO 92. Atualmente
é coordenador de Políticas Públicas da ONG Agricultura Familiar e
Agroecologia (AS-PTA) e membro da Articulação Nacional de Agroecologia
(ANA)
Fonte: Brasil de
Fato, Eduardo Sá, 25/4/12.