Pinheirinho, as lágrimas ainda correm sobre um cenário de Guerra
Moradores revelam
as péssimas condições nos alojamentos após despejo. Defensor alerta
que tudo o que ocorreu na Justiça em relação à ocupação foi forjado
O cenário é
desolador, lembra localidades que foram destruídas por um período de
guerra. Difícil não vir à mente de quem observa a ex-ocupação do
Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), um país como o Iraque,
quando atacado pelos Estados Unidos em 2003.
No chão, assim
como em países onde vilarejos foram aniquilados, está a história de
vida de pessoas e famílias, que tiveram que sair às pressas desses
locais sem ter podido carregar nada.
Podemos registrar
a alegria da menina que se maravilha ao encontrar a boneca no meio dos
escombros da alvenaria destruída – não por um tanque em missão de
guerra – mas pelas máquinas da Prefeitura de São José dos Campos.
“Achei que nunca mais ia ver ela, tio”, comenta feliz a menina Talita
de 9 anos para um rapaz emocionado que a acompanha.
“Aqui era a
igreja Madre de Calcutá, aqui era a Praça Zumbi dos Palmares, aqui era
onde fazíamos as assembléias”, explica um morador para um grupo de
estudantes atônitos, que visitam o local na tarde de 2 de fevereiro,
após o ato de protesto que levou a São José 4 mil pessoas em
solidariedade às famílias.
No Pinheirinho, o
resquício de vida teima em sobreviver no local. São bonecas, ursos de
pelúcia, móveis e eletrodomésticos dos mais diversos tipos, de sofá ao
guarda roupa, de geladeira a televisão, além de enciclopédias, livros
e até porta retratos de famílias sorridentes em seus lares.
E, em meio a um
pomar que resistiu a selvageria dos homens da Polícia Militar de São
Paulo está Antonia Almeida sentada, quase murmurando sozinha, ainda se
perguntando e sem resposta. “Não entendo porque fizeram isso com a
gente”.
Entulho Humano
Retiradas de suas
casas no dia 22 de janeiro, além de seus pertences materiais, muitas
das famílias perderam a sociabilidade entre vizinhos, costumes,
culturas e a história de vida feita no bairro Pinheirinho.
“Os policiais me
chamaram de porca e puta. No dia fiquei com muita raiva, hoje já nem
ligo mais. Mas agora o que sinto é a falta de minhas amigas e meus
irmãos que foram para abrigos diferentes” diz comovida uma menina de
15 anos.
Sua mãe intervém:
“O pior, moço, é que tenho seis filhos e no dia todos eles
dispersaram, correram e se defenderam como puderam. Eu só fui achar
dois de meus meninos no dia 24 em outros abrigos e não posso trazer
eles para cá”, reclama Eliete Costa.
Perderam também a
dignidade. Hoje, as famílias do Pinheirinho não conseguem matricular
os filhos em creches e escolas por falta de endereço fixo e nem alugar
casas por conta do preconceito. “Eu não consigo alugar uma casa,
aliás, ninguém consegue, pois se você diz que é do Pinheirinho eles
não alugam” chora a aposentada Marluce Ferreira que ainda viu dois
filhos serem mandado embora dos empregos por serem do Pinheirinho.
“É um absurdo,
fui matricular meu filho mais novo na creche e o mais velho na escola
e eles me impediram, pois disseram que eu não tenho endereço. Poxa
eles tiraram meu endereço” revela a atordoada Michele Aparecida
Fernandes dos Santos.
Sobre a decisão
da prefeitura, quem quiser pode obter o aluguel social no valor de R$
500 por um período de seis meses. “Queremos a casa pois nós tínhamos
casa. Se eu quisesse pagar aluguel eu pagava porque sou trabalhador,
tenho condições, mas tenho direito à moradia também”, cobra o marido
de Michele, o auxiliar de pedreiro Cleiton Lucio Fernandes.
As famílias foram
divididas em quatro alojamentos, localizados nos bairros Dom Pedro,
Morumbi, Vale do Sol e Centro. Elas reclamam da situação crítica pelo
qual passam e denunciam ainda intoxicação por comida oferecida pela
Prefeitura, alergia de cobertores e a contração de doenças.
No caso do
alojamento do Morumbi, no qual ficam Cleiton e Michele, um senhor teve
que ser socorrido às pressas por ter contraído pneumonia. Lá, há
apenas um banheiro com três chuveiros. As divisórias foram feitas com
plásticos pelos próprios moradores, com o objetivo de resguardar um
mínimo de privacidade. Segundo Michele, a situação do seu alojamento é
a menos precária de todos.
Improvisado numa
quadra escolar, nele vivem cerca de 1500 pessoas, acomodados no chão
em colchões, onde homens, mulheres, crianças, jovens, idosos transitam
a todo instante incomodados, parecendo procurar algo que lhes foram
tirado.
O local parece
mais um campo de concentração ou, como muitos dos ocupantes preferem
chamar, entulho humano. “Entulho humano, é isso o que é aqui” diz a
mãe Josinete, com dois filhos no colo. Para ela, “nada melhor do que a
casa da gente”.
A maior ocupação
da América Latina
O que muita gente
de dentro e fora do Pinheirinho se pergunta é qual seria o verdadeiro
motivo da desocupação. Em um depoimento dado no dia 1o de fevereiro,
em uma audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo, o
Defensor Público de São José dos Campos, Jairo Salvador de Souza, diz
que São José tem um “orçamento anual de um bilhão e setecentos milhões
de reais com uma sobra de caixa em 2011 de quatrocentos milhões de
reais” que, de acordo com ele, daria para “regularizar uns quatro
Pinheirinho”.
Salvador alerta
que tudo o que ocorreu na Justiça em relação à ocupação foi forjado.
“Olha, primeiro era uma liminar de reintegração de posse e não algo
irreversível, que não cabia mais recursos na Justiça. Isso é mentira,
como muito do que se afirmou por aí”.
Segundo ele, o
Tribunal de Justiça de São Paulo não queria julgar dois recursos sobre
o Pinheirinho que há anos estão parados, pois inauguraria uma nova
instância e o caso seguiria para o Supremo Tribunal Federal, “algo que
tiraria o controle do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre o caso”.
O mais grave, em
sua opinião, foi a Juíza Márcia Loureiro da 6ª Vara Cível de São José
revigorar por conta própria a liminar de reintegração de posse
indeferida em 2005 pela Justiça. “Somente um fato novo ou um pedido do
autor recuperaria [o pedido de reintegração]. Ela fez [a liminar] sem
pedido algum”, esclarece o Defensor.
No dia da
desocupação, ele tentou entregar um mandado judicial da Justiça
Federal para suspender a operação comandada pelo coronel Manoel
Messias Melo. Na ocasião, o juiz de direito Rodrigo Capez, assessor da
presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo, informou que o
comandante não obedeceria a ordem judicial da Justiça Federal.
Diante de todo o
imbróglio jurídico, a maior ocupação urbana da América Latina em
extensão de terras (um milhão e trezentos mil metros quadrados),
muitos atores envolvidos diretamente no assunto acham que a ação
truculenta do governo vai além da influencia do mega especulador
financeiro, Naji Nahas, proprietário da massa falida Selecta, que
ficava na área.
“É estratégico
esse ataque ao Pinheirinho. Ali estava assegurada uma moradia e uma
base de luta consolidada, só faltava a desapropriação em definitivo. É
um ataque aos movimentos que lutam por moradia, isso é um dos recados
que o governo quer passar com sua ação no Pinheirinho”, defende o
coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MSTS), Guilherme.
Algo que Oscar Silva Borges, da Frente de Luta Por Moradia (FLM)
enfatiza.
População
dividida
Em São José dos
Campos o clima entre a população é de revolta ou de dever cumprido.
Por um lado, muitos acham que a Prefeitura e governo de São Paulo
cumpriram seu papel de retirar os invasores da terra alheia, além de
acabar com um lugar violento, que é o discurso empregado pela grande
imprensa.
Por outro lado,
há moradores da cidade que acham que o direito a moradia tem que
prevalecer. “Eu apoio esse pessoal do Pinheirinho. Todo mundo tem que
ter um teto”, diz o aposentado Raimundo Figueiras, observando o ato do
dia 2 de fevereiro.
“Eu apoio os
caras do Pinheirinho, mas tinha muito bandido lá também. Você não viu
na TV os caras dizendo que tinham droga e tudo mais?”, fala o jovem
Gustavo, empregado numa gráfica da cidade.
Já o motorista de
ônibus Rosival da Silva esbraveja, “se a polícia tivesse tirado esses
caras há 8 anos quando eles entraram na terra não precisava fazer nada
disso. Agora fica essa palhaçada, esse povo protestando e parando o
trânsito, o pior é que nem almocei ainda”.
Numa loja de
roupas do centro da cidade duas vendedoras param para ver os
manifestantes passarem. “Acho injusto o despejo como foi”, salienta
Geovana Ribeiro. Já sua amiga Rebeca de Oliveira Euclides, diz ser
contra “despejar [as famílias] sem ao menos se preocupar com outra
opção para elas morarem”.
Dívida perdoada
O juiz José
Henrique Fores Júnior, da 15ª Câmara de Direito Público do Tribunal de
Justiça de São Paulo, liberou a empresa Selecta Comércio e Indústria
S/A, proprietária do terreno que abrigava a comunidade do Pinheirinho,
de pagar R$ 1,6 milhão da dívida de IPTU (Imposto Predial Territorial
Urbano) mantida junto a Prefeitura. A Prefeitura de São José diz que
vai recorrer da decisão.
O valor é
referente ao IPTU de 2004 e 2005. Os advogados da Selecta pediram a
revisão da alíquota desses dois anos. Segundo o advogado das famílias
do Pinheirinho, Antonio Donizete, a empresa nunca pagou IPTU do
terreno, adquirido em 1982. O total da dívida com a administração
municipal chega a R$ 14,6 milhões.
Fonte: Brasil de
Fato, Marcio Zonta e Aline Scarso, 3/2/12.