O passado dura muito tempo: as ações antidemocráticas do governo Dilma
na greve nacional das federais
Por Roberto
Leher*
A postura do
governo Dilma frente à greve nacional dos docentes e, mais
recentemente, dos técnicos e administrativos das IFES (Instituições
Federais de Ensino Superior), não pode ser compreendida como uma mera
contenda trabalhista. Se a greve é tão ampla, abrangendo 58 das 59
universidades federais, e foi capaz de lograr grande adesão interna, é
porque conta com a adesão esclarecida de sua base. As vozes dos
professores, animadoramente polissêmicas, convergem, de distintos
modos, para a necessidade de um outro horizonte de futuro para a
universidade pública, abrangendo a carreira, as condições de trabalho
e o padrão remuneratório como fundamentos materiais da autonomia
didático-científica das universidades.
De fato, o
reclamo da falta de autonomia na definição dos cursos é geral,
situação particularmente tensa nos novos campi em que cursos
minimalistas, fast delivery diploma (1), nos moldes do
bacharelado/licenciatura interdisciplinar, proliferam provocando
insatisfação entre os docentes e estudantes. O mesmo sentimento de
indignação frente à perda de autonomia está presente na pós-graduação,
hiper-intensificada e submetida, e ao heterônomo controle produtivista
da CAPES que, cada vez mais, inviabiliza a produção rigorosa e
sistemática de conhecimento e a formação verdadeiramente universitária
de mestres e doutores.
A greve possui
pauta precisa e objetiva: carreira, malha salarial e condições de
trabalho (mais concursos e recursos para as instituições) e é
luminosa: insere na agenda educacional a necessidade de crítica a esse
modelo de expansão da educação superior, muito fortemente inspirado
nos community colleges e no processo de Bolonha e não muito diferente
da expansão na Argentina no triste período menemista.
Os “espíritos do
passado” seguem oprimindo o presente
A semelhança das
políticas educacionais dos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff com
as de Cardoso não decorre da mera cópia, mas, antes, da força das
frações burguesas dominantes no bloco de poder que vem sendo
consolidado desde a primeira eleição de Cardoso e que conhece seu
esplendor nos governos Lula da Silva e Dilma. Tais frações burguesas
dominantes – e agora hegemônicas no bloco de poder – abandonaram
qualquer traço de projeto de nação autopropelido e, por isso,
consideram que a universidade funcional ao modelo não pode possuir
real autonomia. Esse é o impasse de fundo da greve e que leva o
governo Dilma a agir de modo semelhante ao de Cardoso.
Examinando o
movimento de constituição do bloco de poder gerenciado pelos governos
Lula e Dilma não surpreendente que o ex-ministro da educação Fernando
Haddad tenha sido alçado à condição de candidato de Lula da Silva à
prefeitura de São Paulo. Tampouco poderia surpreender o apoio de Paulo
Salim Maluf ao candidato, um gesto político certamente justo. Afinal,
o seu partido, herdeiro da antiga ARENA, é base do governo.
Injustiça mesmo
seria o não apoio de Paulo Renato de Souza à Haddad, se vivo fosse.
Afinal, o pretendente a prefeito lhe prestou sistemática homenagem ao
seguir com maestria as principais diretrizes do octanato de Paulo
Renato no MEC: apoiou decididamente o setor educacional
privado-mercantil, oferecendo subsídios públicos que nem mesmo seu
mentor educacional ousou realizar – como as isenções tributárias ao
setor mercantil, por meio do PROUNI e como os imensos subsídios
públicos do FIES –, despencando a taxa de juros para o comprador da
mercadoria educacional, o que obviamente exige crescentes subsídios
públicos para custear a diferença entre os juros referenciados na taxa
SELIC e os praticados no programa.
O resultado
dessas políticas foi a redução da participação das matrículas das
universidades federais. Embora ampliadas em termos absolutos ao longo
da década, inclusive com os referidos cursos fast delivery e com os
inacreditáveis cursos de graduação a distância constrangedoramente
precários, a taxa de expansão das matrículas federais foi em menor
proporção do que a das privadas turbinadas pelo PROUNI e pelo FIES,
passando de magros 16,6% das matrículas totais em 2001 para 14,7% em
2010 (2), em benefício das grandes corporações e fundos de
investimentos que controlam os principais grupos privados.
Mas a injustiça
seria incomensurável não apenas pelo que Haddad fez em prol do
privado-mercantil. Afinal, a ação geral do governo Dilma na atual
greve das Federais segue o modus operandi cunhado pela dupla Fernando
Henrique Cardoso-Paulo Renato e que, nos anos 1990 e no início da
década de 2000, gerou pesadas críticas dos petistas aos tucanos. A
reiteração dos atos dos tucanos como justos e corretos não pode deixar
de ser compreendida como um tardio, mas honesto, desagravo aos
“injustiçados” tucanos.
De fato, por
ocasião da grande greve dos professores das universidades federais de
2001, a dupla se recusou a negociar com os professores, postergando as
audiências, como se fosse algo indiferente para eles o fato de que
mais de 500 mil estudantes e o conjunto das universidades federais
tivessem de manter 108 dias de greve para lograrem negociações
efetivas (3). Após dois meses de greve, Cardoso e Souza perceberam que
os docentes lutariam por sua dignidade e em prol da defesa da
universidade pública, empreendendo uma cruzada repressiva de grande
monta: elaboraram um decreto para coibir as greves, cortaram os
salários dos professores e bloquearam o repasse de recursos do MEC
para as IFES, retirando o alimento da mesa dos professores,
forçando-os a regressar ao trabalho derrotados, “de joelhos”, no dizer
da liminar contra o bloqueio do pagamento elaborada pelo ministro
Marco Aurélio Mello do STF (4), e de cabeça baixa. Seria uma grande
falta de rigor histórico ignorar que, em 2001, grande parte dos
parlamentares do PT ficou ao lado dos professores, promovendo
denúncias e ações que viabilizassem as negociações.
Contudo, o
terreno político se move sem perder os nexos com a base econômica. As
frações das classes dominantes que dirigem o bloco de poder sempre
pesam nas decisões. A aliança das forças políticas que outrora
estiveram nas trincheiras da oposição a Cardoso com o grande capital
flexibilizou os seus posicionamentos ético-políticos em todos os
domínios, conformando um processo que Gramsci denominou de
transformismo. Por isso, quando onze anos mais tarde, em 17 de maio de
2012, os professores deflagraram a já mencionada robusta greve –
insatisfeitos com o estilhaçamento de sua carreira, com o arrocho
salarial que coloca os docentes no rodapé da remuneração dos
servidores públicos federais e com a inaudita intensificação do
trabalho imposta por uma expansão sem planejamento, recursos e
concursos compatíveis com a expansão dos campi, das matrículas, dos
cursos e da pós-graduação – o governo Dilma, com o silêncio obsequioso
de Aloísio Mercadante, empreende medidas postergatórias e, como a
greve se estende no tempo por sua única responsabilidade, promove
medidas repressivas para derrotar os professores e técnicos e
administrativos.
Com efeito, o
atual governo reproduz os mesmos atos da dupla tucana (2001) na atual
greve das IFES: desmarcou todas as audiências que poderiam abrir o
processo de negociação e mesmo após 53 dias de greve, finge ignorar
que 58 das 59 universidades estão em greve, afetando um milhão de
estudantes, bem como pesquisas e atividades de extensão. A força do
movimento grevista, entretanto, logrou romper o silêncio cúmplice dos
grandes meios de comunicação e não foram poucas as vozes de
importantes setores que se solidarizaram com a greve. Surgiu, assim, a
oportunidade de repetir a história (como farsa). Faltava a medida
repressiva, a mesma de Cardoso e Souza: retirar o alimento dos
professores, esperando, assim, a volta ao trabalho derrotados,
humilhados e cabisbaixos e sem reclamar mais dos seus magros
vencimentos até 2015. E mais: que ficariam silenciados diante da
refuncionalização da universidade pública federal como “escolões” que
ministram aguadas pinceladas de conhecimentos aos futuros
trabalhadores, possibilitando manter os fundamentos do capitalismo
dependente, entre os quais a hiperexploração do trabalho.
A presidenta
Dilma poderia ter examinado melhor as consequências advindas da
aplicação da instrução do Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão (MPOG 552047, de 06/07/2012) impondo o corte de salário dos
grevistas. Trata-se de uma medida inconstitucional, pois desrespeita o
preceito da autonomia universitária. Conforme a memorável liminar
obtida pelo Andes-SN, por ocasião do bloqueio do repasse dos salários
pelo MEC na greve de 2001, o ministro Marco Aurélio de Souza, do STF,
expôs, de modo raramente visto em manifestações do judiciário, que as
universidades estão abrigadas institucionalmente pela Constituição
Federal e, mais especificamente, pelo Art.207 da Carta. Na
interpretação do ministro do STF, nenhuma instância externa à
universidade pode determinar o corte de salários, a não ser o
colegiado superior das instituições (5).
É possível
avançar na prática da autonomia universitária
As universidades
estão diante de uma oportunidade ímpar para alargar os estreitos
limites da autonomia. Os colegiados superiores das universidades que,
apesar da Carta de 1988, não lograram condições políticas para afirmar
a autonomia constitucional podem aproveitar o ato de inaudita
violência contra a autonomia universitária para se pronunciarem de
modo corajoso e ousado em defesa da auto-aplicabilidade do dispositivo
constitucional. Não basta, portanto, impedir a efetivação do corte
salarial, mas, antes, de empreender enérgica campanha nacional contra
o ato ofensivo à autonomia e em defesa do Artigo 207 da Constituição.
No momento em que
a dupla FHC-Paulo Renato desferiu suas violentas ações contra a
universidade e seus professores, os docentes agiram com dignidade,
coragem e compromisso com a universidade e sua autonomia, fortalecendo
a greve. Não resta dúvida de que o mesmo acontecerá na atual greve:
certamente, a adesão será ainda maior, como ocorreu em 2001, pois os
professores não se calarão diante de tal ofensiva. Caso o governo
Dilma tente repetir o gesto de Cardoso, bloqueando os recursos do MEC,
os acontecimentos de 2001 sugerem cuidado. Após perder as ações
judiciais no STJ e no STF, com as quais o governo Cardoso queria dar
legalidade ao seu ato de violência, somente restou a Paulo Renato de
Souza – que ainda pretendia postergar o cumprimento das decisões
judiciais determinando o imediato repasse de recursos para o pagamento
dos docentes – solicitar um habeas corpus preventivo para não terminar
na prisão.
Diante dos
tristes e preocupantes atos de recrudescimento da violência contra a
universidade que equiparam a presidenta Dilma e seu ministro da
Educação a personagens com a mesma estatura política de seus
antecessores, os setores democráticos não podem se omitir: exigem, de
imediato, a abertura de negociações com os professores, técnicos e
administrativos em greve nas universidades e na educação básica
federal e que o governo não persevere na trilha obscurantista de
coerções contra as instituições de ensino federais brasileiras.
Certamente, não
haverá mudança de rumo na grande política do governo Dilma, mas a
greve nacional das universidades pode convencer os setores mais
esclarecidos de seu governo a admitir que o Estado não pode sufocar
todas as instituições da República. A autonomia universitária sempre
possibilitou melhor retorno social ao povo e, por isso, no lugar de
olhar exclusivamente para a banca, o governo poderia escutar as
universidades brasileiras e admitir que as contradições são fecundas
para a democracia.
Notas:
1) Roberto Leher,
'Fast delivery' diploma: a feição da contrarreforma da educação
superior, Carta Maior,
http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3504
2) BRASIL, MEC,
INEP, Censo da Educação Superior de 2010, DF, INEP, out. 2011.
3) A greve teve
conquistas importantes, como a manutenção do RJU (Regime Jurídico
Único) para os novos docentes, a abertura de concursos e um reajuste
linear para toda categoria, inclusive aposentados, de cerca de 13%.
4) STF (MS
no7.971-DF).
5) “A falta de
repasse de verbas às universidades resulta na realização da justiça
com as próprias mãos, na formalização de ato omissivo conflitante com
a autonomia administrativa e de gestão financeira prevista no artigo
207 da Constituição Federal, havendo-se o Ministério da Educação no
mister de gerenciar as folhas de pagamento pessoal. Por isso mesmo, a
suspensão de ato judicial que garantiu tal repasse não pode ser tida
como enquadrável na ordem jurídica em vigor, de vez que antecipa
definição que não está sequer submetida, em ação própria, ao
Judiciário. Assim, descabe potencializar o fato de o direito de greve,
assegurado constitucionalmente aos servidores, não se encontrar
regulado, mesmo que passados mais de dez anos da promulgação da Carta
de 1988. Vale frisar que, enquanto isso não acontece, tem-se não o
afastamento, em si, do direito, mas a ausência de balizas que possam,
de alguma forma, moldá-lo. O que cumpre pesar é a inexistência de um
dos pressupostos à suspensão da liminar – ameaça de grave lesão à
ordem pública e administrativa. Aliás, sob esse aspecto, o risco
maior, levando-se em conta a busca do entendimento e a autonomia
universitária, está, justamente na supressão do repasse de verba às
universidades” (Marco Aurélio Mello, STF/ MS no7.971-DF).
Leia também:
*
Roberto Leher é doutor em Educação pela Universidade de São
Paulo, professor da Faculdade de Educação e do Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e
coordenador do Observatório Social da América Latina – Brasil/ Clacso
e do Projeto Outro Brasil (Fundação Rosa Luxemburgo).
Fonte: Correio da
Cidadania, 13/7/12.