“Nosso déficit não é de casas, é de cidade”
Raquel Rolnik
defende que atualmente não há políticas para moradia, apenas políticas
focadas no setor imobiliário e financeiro
A questão não é apenas a falta de moradia no Brasil. Mas a falta
de espaço e de uma política para o desenvolvimento urbano. Isso em
meio a um quadro de financeirização da construção de imóveis nas
cidades. Assim, os programas de crédito na área de moradia ganham
um aspecto de política anticíclica, mas estão distantes de
resolver a questão da moradia digna no Brasil. Este é o panorama
montado pela relatora especial para o direito à moradia da ONU,
Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista, que esteve em Curitiba, onde
participou de um evento promovido pelo Ministério Público e UFPR.
Visitou também duas comunidades da região metropolitana que serão
afetadas pelas obras da Copa do Mundo. Entre uma atividade e
outra, concedeu a entrevista abaixo ao Brasil de Fato. |
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A arquiteta e
urbanista
Raquel Rolnik - Foto: UN |
Brasil de Fato –
O tema das cidades foi pautado, nas eleições municipais, com a atenção
que merece, na sua avaliação?
Raquel Rolnik –
Os momentos eleitorais, no Brasil, infelizmente são pouco pautados e
se constituem pouco como embates de projetos de cidade. Há uma
dimensão político-partidária, e raramente o debate se dá em torno de
projetos alternativos de cidade, no amplo espectro em que isso está
acontecendo no Brasil. Por outro lado, começamos a perceber entre os
cidadãos um movimento maior de interesse pela cidade, pela política
urbana, fruto do próprio amadurecimento e consolidação das cidades no
Brasil, mas principalmente em função do enorme mal estar nas cidades
brasileiras e o seu modelo insustentável. Particularmente, o
agravamento dos problemas de mobilidade. Mas a questão da discussão do
modelo de cidade que queremos também começa a ser pautada a partir
daí, em várias instâncias, em vários momentos. Mas ainda estamos longe
de discutir projetos de cidade nos momentos eleitorais.
Parece que os
projetos oscilam entre a construção de obras, ou então numa melhor
gestão dos recursos, mas poucas propostas no âmbito democrático e
popular.
Infelizmente, a
pauta da democratização da cidade é uma pauta dos anos 1990, das
gestões municipais. Ela desapareceu da agenda das gestões municipais.
Ela foi muito importante durante o processo de redemocratização, e
durante o processo de construção de novas coalizões com projetos de
poder, mas hoje ela é absolutamente irrelevante, e, nos 5.564
municípios pode ter algum, mas no geral a gente não vê que o tema da
democratização da gestão, que foi um tema importante, ainda faz parte
da agenda. Nada disso. A discussão hoje primordial está centrada em
cima das obras, mas que obras? E que gestão de serviços? Poderia até
ser uma bela discussão sobre obras e padrão de gestão de serviços, se
isso estivesse ligado a alguma proposta de planejamento da cidade, mas
não é. Curioso, no processo eleitoral anunciam-se mágicas, “vou fazer
um mágica”, quando a gente sabe que a questão mais séria, que nos
ajuda a entender por que nossas cidades não são planejadas, está nas
gestões, que têm que mostrar serviço em quatro anos, para serem
reeleitas, mas nenhum projeto de reestruturação da mobilidade se impõe
em quatro anos. As mudanças que têm que acontecer na realidade
brasileira são mudanças estruturais, em quinze a vinte anos, como em
qualquer país do mundo. Mas os gestores têm que encontrar o que dá
para inaugurar, porque se não der para inaugurar, como vai mostrar o
que se fez?
Quais os outros
entraves desse processo?
Sobre a cidade em
si existem níveis de gestão diferentes: várias agências da União,
governo do estado e município, e nós não construímos no Brasil ainda a
área de Desenvolvimento Urbano, ao contrário da área da Saúde, que
passou por uma reforma do Estado e uma estruturação do Estado. A gente
pode criticar que está bom ou ruim, mas temos um Sistema de Saúde, no
qual você tem mais claramente hierarquizado quais são as competências
dos entes, você tem um processo de controle social, você tem a
universalização do acesso à saúde como meta, então você tem um piso
per capita, você tem um sistema estruturado. Na área do
desenvolvimento urbano, nós não temos um sistema estruturado, nós
temos competências concorrentes. Isso é uma coisa não equacionada,
sobre qual é a competência de cada ente, quais são os mecanismos de
cooperação entre os entes, não tem nenhum sistema estruturado em cima
da universalidade do acesso à cidade como padrão.
Então, embora não
estejam na agenda, medidas como a reforma urbana, ações previstas no
Estatuto da Cidade, ainda são urgentes?
Sim, mas a
questão é que o Estatuto das Cidades enuncia princípios e diretrizes
importantes, mas na prática nós não fizemos uma reforma do Estado na
área do desenvolvimento urbano, que permita inclusive que os entes
executem esses princípios e diretrizes do Estatuto. Essa é uma
dimensão mais institucional, e a outra é mais política. A economia
política das cidades ainda é conduzida pelos setores que têm na cidade
o seu negócio. São interesses econômicos mais ligados ao setor
imobiliário e ao setor das empreiteiras de obras públicas,
concessionárias de serviço público. Isso aí manda nas cidades, nas
câmaras municipais, e portanto nós não conseguimos romper essa lógica
da hegemonia desse setor nas cidades. Houve uma tentativa de
enfrentamento disso inclusive que passa pela democratização da gestão.
Quem são os interlocutores? São esses elementos presentes na
coalização dominante, então acho que nós temos um desafio enorme para
aplicar a reforma urbana no Brasil. Ela foi anunciada e não foi
implementada. Estamos falando de terra, numa cultura patrimonialista,
então é muito difícil romper a hegemonia patrimonialista na gestão das
cidades.
O quadro de
despejos na Espanha e EUA é um cenário que podemos ver também na
realidade brasileira a médio prazo?
É muito difícil
avaliar. Eu acabei de ler um estudo do Ipea, que discute se o que
estamos vivendo hoje é ou não uma bolha imobiliária. As condições em
que está acontecendo todo esse processo de explosão de preços no
mercado, esse boom da indústria da construção civil, evidentemente
catapultado pela existência de crédito, pela existência de subsídio,
pelo Minha Casa Minha Vida, e pela própria dinâmica do interesse
econômico, pela mudança do padrão e do perfil das empresas
construtoras e incorporadoras no Brasil, que abriram seu capital em
bolsa, completamente diferentes como setor, um setor muito
financeirizado, esse processo é muito diferente do que está
acontecendo na Espanha e que aconteceu nos EUA. Dito isso, por outro
lado se por alguma razão o processo de crescimento econômico for
interrompido e começarmos a viver algum tipo de crise com aumento do
desemprego, e diminuição radical da renda, evidentemente as famílias
endividadas vão ter dificuldade para pagar, mas a pergunta é que não
parece no horizonte que o Brasil vai viver uma crise econômica. É
engraçado que no IPEA há um estudo que provava que era uma bolha, e na
mesma semana saiu o boletim oficial do Ipea provando que não era uma
bolha. O mais evidente é que não vamos resolver o problema da
habitação no Brasil, principalmente para os mais pobres, através dos
programas de crédito, em nenhum lugar se conseguiu isso, e não é no
Brasil que se vai conseguir também.
A classe
trabalhadora no Brasil teve acesso a maiores rendimentos, mas na
questão da moradia há uma pendência muito grande.
Acho que não são
irrelevantes os aumentos de renda e de poder de consumo que os mais
pobres tiveram no Brasil, tudo isso é absolutamente claro, o problema
é que nosso déficit não é de casas, é de cidade, de urbanidade, e isso
o Minha Casa Minha Vida não resolve, tanto é que ele está claramente
estrangulado pela inexistência de áreas urbanizadas adequadas. Então o
Minha Casa Minha Vida, é um programa de dinamização econômica e
geração de empregos, não é uma política habitacional, não é algo que
avalia as necessidades habitacionais e a partir dali desenha uma
política, ele tem outra finalidade. E moradia não é que nem geladeira,
que se arruma dinheiro e leva para casa. O que pode estar aparecendo,
e eu verifiquei isso numa região de Curitiba, é que nós vamos produzir
a partir desse programa áreas inteiras de “não cidade”, com população
de baixa renda, guetos de ‘não cidade’, com todas as consequências que
isso pode ter.
Como vê essa
questão em Curitiba, considerada capital “modelo” de urbanismo?
Para a cidade e
para as pessoas, no caso do Tatuquara (periferia-extrema de Curitiba,
usada para programas de moradia como o MCMV) é uma coisa que hoje nos
mapas da Cohab eu olhei aquilo e eu lembrei imediatamente do que foi
produzido por um programa semelhante durante vinte anos no Chile e
produziu na Zona Sul do Chile um imenso território que hoje é uma
fonte de problemas sociais e urbanísticos, e acho que é isso que vai
acontecer. Eu tenho mais medo disso do que da bolha, das famílias
ficarem endividadas, tenho mais medo do produto cidade que vai ser
isso, um produto desqualificado com efeitos muito ruins sobre a vida
das famílias, um monte de depósito de gente, e não produção de
cidades, acho que isso é mais preocupante do que o perigo da
bolha.
O caso do
Tatuquara é sintomático da política de Curitiba em relação ao
urbanismo?
Infelizmente,
neste caso isso não é um modelo de Curitiba, é um modelo do Brasil. Em
toda a grande cidade há um ou dois ‘Tatuquaras’, esse é um modelo
predominante. Curitiba não muda nada e não inova nada em relação a
este modelo. Na minha opinião, Curitiba tem uma capacidade local de
planejamento e gestão superior a das outras cidades brasileiras, mas,
assim como elas, não rompeu com um modelo de exclusão territorial. E
essa é uma questão política e não técnica. E há cidades que não têm
nenhum mapa cartográfico, quer dizer, o problema é de natureza
política. E outra: acho que tem uma questão local, mas eu acho que há
uma federativa que não está resolvida – o que temos na área de
desenvolvimento urbano? Um banco que financia casa e projetos de
transporte e de saneamento. A política urbana é muito mais que isso, o
banco devia ser um dos instrumentos de uma política e não “a”
política, financiamento tem que ser instrumento da política e não “a”
política, isso também é uma financeirização da produção das cidades e
que não é exclusiva do Brasil.
Em relação ao
PAC, quais são os impactos do programa nas populações?
Eu posso falar um
pouco do PAC urbano, PAC das mobilidades e favelas. É interessante
haver recurso para fazer urbanização integral de favela e para
projetos de mobilidade. Mas, posto isso, de novo o nosso drama é a
relação desse projeto e o planejamento geral da cidade. O que é um
pouco triste é ver que o PAC, assim como ‘Minha Casa Minha Vida’ veio
depois do ciclo de elaboração dos planos diretores participativos das
cidades, e no entanto, não tem nenhum tipo de diálogo com ele. E a
gente vê muita coisa, o PAC da Copa no Rio de Janeiro é uma abertura
de uma frente de expansão imobiliária, na Zona Sul, concentrando
valores onde já têm, então é questionável e poderia servir para
implementar projetos mais debatidos e pactuados de cidade.
Fonte: Brasil de Fato, Pedro Carrano e Thiago Hoshino, 22/10/12.