Morre Miguel Portas, líder da esquerda em Portugal
Morte do deputado ocorreu nesta terça-feira (24), um dia antes do
aniversário da Revolução dos Cravos
Nasceu em maio e
morreu em abril. No mês dos trabalhadores e no da “Revolução dos
Cravos”. Para trás, ficaram 53 anos de vida, a maioria dedicados à
transformação do mundo, à luta por um mundo melhor. Miguel Sacadura
Cabral Portas, mais conhecido na esquerda portuguesa por “Miguel”
faleceu nesta terça-feira, na véspera do 25 abril, a data da derrubada
do fascismo em Portugal, em 1974.
Uma luta para a
qual o Miguel contribuiu muito. Desde jovem, foi um rebelde, tanto era
assim que um dia se chateou com a mãe quando esta não lhe deixou ir à
missa - ele que na adolescência namorou com a fé católica - e o fechou
à chave num quarto. “Fiz aquilo que aprendi nos filmes, passei uma
folha de papel debaixo da porta, empurrei a chave e fui para missa”,
recordou há anos numa entrevista ao semanário Expresso. E em cima da
mesa deixou um recado escrito: “Entre Deus e a mãe, prefiro Deus”. Ela
não gostou e quando Miguel voltou da Igreja foi viver com o pai.
Miguel tinha tudo
para ser de esquerda, inclusive nasceu no dia Primeiro de Maio. Um dia
numa manifestação lhe disse: “Já reparou que no dia do teu aniversário
há milhões de pessoas no mundo que saem à rua para protestar?”. Ele
ria, com esse sorriso que mexia com toda a cara, abria umas arrugas na
bochecha e quase fechava os olhos.
Nasceu numa
família de estirpe e abastada. O tio avô foi o almirante Artur
Sacadura Cabral, que protagonizou em 1922, com Gago Coutinho, o
primeiro voo entre a Europa e o Atlântico Sul, de Lisboa ao Rio de
Janeiro, a bordo do hidroavião “Lusitânia”.
Sua mãe é a
escritora e jornalista Helena Sacadura Cabral, uma das mulheres mais
lúcidas do mundo intelectual português. O pai, foi um conhecido
ativista católico durante a ditadura e hoje é um dos arquitetos
portugueses mais importantes. O atual ministro nos negócios
estrangeiros de Portugal, Paulo Portas, é o seu irmão mais novo. Todos
eles conservadores.
Definitivamente,
Miguel não saiu aos seus e costumava dizer que foi por culpa da mãe.
Não só por não o deixar ir à missa naquele dia, mas pela estrita
educação que lhe impôs quando os pais se divorciaram e ele ficou a
viver com ela. Até o dia em que quis ir à missa.
“Eu sou de
esquerda porque a minha mãe me proibia de deixar comida no prato,
porque tinha de dar aos pobres o melhor presente que recebia no Natal.
Fui habituado à renúncia. E também sou de esquerda porque sempre fui
um filho difícil, habituado a dizer não. O meu processo de afirmação
foi o contra”, definiu-se na referida entrevista.\
Militância
Aos 15 anos foi
preso por participar, em nome da Associação de Estudantes do
Secundário, da maior assembleia universitária realizada em 1973 na
Faculdade de Medicina de Lisboa. A policia política invadiu o local e
prendeu todos. Ficou uma semana na cadeia e saiu de lá com a cabeça
rapada, era uma humilhação que a ditadura impunha aos estudantes.
Modesto, nunca gostou muito de falar no assunto. Nas poucas vezes que
se referiu a ele, dizia que não foi uma “prisão” mas sim “uma
detenção”.
Nessa altura já
era um membro clandestino da União de Estudantes Comunistas. A
“Revolução dos Cravos” o apanha no Liceu Pedro Nunes, de onde quase
foi expulso por organizar uma greve de silêncio contra dois
professores. Durante uma semana conseguiu que nenhum estudante falasse
com eles. Motivo: eles tinham censurado um artigo seu no jornal
estudantil sobre o significado do Primeiro de Maio.
Depois da
revolução, Miguel teve uma carreira meteórica dentro da União dos
Estudantes Comunistas. Legalizado o Partido Comunista Português, o
jovem dirigente estudantil foi logo nomeado membro do Comitê Central
do partido. Nunca foi um militante condescendente. “Era muito
disciplinado, isso sim. Mas também tinha as minhas coisas”, recordou
ao Expresso.
Foram “essas
coisas” que o levaram depois da queda do Muro de Berlim a começar a
contestar a inflexibilidade ideológica do partido, no momento em que a
esquerda era abalada em suas convicções. “Vou parar no partido em um
trajeto que muita gente fez: do catolicismo ao cristianismo e daí ao
comunismo. Fiz uma adesão ao partido pelo lado intelectual. A maioria
das pessoas o fez por causa das condições de vida, do ambiente
familiar”, afirmou.
Mas a ruptura
veio em 1991 com a tentativa de golpe de estado na ex-União Soviética.
O Partido Comunista Português apoiou os golpistas. Miguel não gostou e
foi embora.
A partir daí
fundou varias organizações de esquerda, foi jornalista, dirigiu dois
jornais, uma revista, escreveu três livros e fez dois documentários. E
acabou por formar o Bloco de Esquerda, um partido composto por
dissidentes do Partido Comunista, unidos a antigos militantes maoístas
e trotskistas. Não só foi fundador do Bloco, como seu principal
inspirador. Foi eleito duas vezes deputado do Parlamento Europeu e
distinguiu-se por ser profundamente europeísta, ao contrário da
opinião do irmão Paulo, líder dos democrata-cristãos portugueses e
descrente de unidade europeia.
Hoje, a esquerda
portuguesa está de luto. Seus adversários o elogiam, até aqueles que
pensam que o “conquistaram para a direita” o celebram. Mas ele, Miguel
Portas, nunca mudou.
Quando há quatro
anos a revista Visão lhe perguntou se, apesar de tudo, continuava a
ser comunista, a resposta foi clara: “Sou comunista no sentido de que
continuo a pensar que é possível ao homem construir uma sociedade de
abundância em que o Estado seja dispensável e em que a sociedade seja
capaz de se organizar e de se autoadministrar, distribuindo essa
abundância de forma igualitária para que cada um possa seguir os seus
caminhos ao longo da vida sem atropelar o próximo”.
Miguel sempre
disse que não sabia o que deixaria aos seus filhos. Hoje já se sabe.
Miguel Portas provou no Parlamento Europeu que sendo de esquerda
também é possível acreditar numa Europa federada. Foi, até ao fim, um
herege das utopias.
(Miguel Portas
nasceu no dia 1 de maio de 1958 em Lisboa. Morreu vitima de câncer em
24 de abril em Antuérpia, Bélgica. Deixou dois filhos).
Fonte: Brasil de
Fato, Rui Ferreira, 25/4/12.