“A Justiça trabalhou como Justiça de classe”, afirma deputado
Para Ivan
Valente, a Justiça agiu a favor da especulação imobiliária em
detrimento dos direitos das famílias
A violenta ação
da Polícia Militar e da Guarda Civil de São José dos Campos (SP)
contra os moradores da ocupação Pinheirinho na reintegração de posse
realizada neste domingo (22), na avaliação do deputado federal Ivan
Valente (Psol-SP), foi absolutamente ilegítima.
Em entrevista ao
Brasil de Fato, Valente, que participou do processo de negociação para
permanência das famílias na área, afirma que, com a efetivação da
reintegração de posse, os governos estadual e municipal e a Justiça
estadual, além de descumprirem acordos para uma solução pacífica ao
conflito, desacataram a Justiça federal, que havia determinado a
suspensão da reintegração de posse por 15 dias. “Fomos surpreendidos
no domingo de manhã com essa ação policial atropelando a decisão
federal”, explica.
Na opinião do
deputado, a expulsão das 1,6 mil famílias que ocupavam o terreno da
massa falida da empresa Selecta, pertencente ao grupo Naji Nahas,
atendeu aos interesses da especulação imobiliária que exerce forte
pressão na região. “O PSDB, tanto na prefeitura de São José dos Campos
como no governo estadual, com uma área de 1 milhão e duzentos mil
metros quadrados com forte pressão do setor empresarial e imobiliário,
certamente deixou predominar o poder econômico”, defende.
O senhor
participou das negociações para permanência dos moradores. Poderia
falar um pouco sobre o processo?
Desde o começo da
semana, nós tentamos suspender a reintegração de posse do Pinheirinho
que havia sido autorizada pela juíza na segunda-feira passada (dia
09). Conseguimos uma liminar federal que, teoricamente, cassou a
decisão [de reintegração de posse], mas isso foi resolvido na
madrugada de segunda (16) para terça-feira (17), quando a tropa de
choque já estava lá [no Pinheirinho]. Falamos com o desembargador
presidente do TJ (Tribunal de Justiça de São Paulo), Ivan Sartori, que
aquela era uma questão social e não policial, que deveria ter uma
solução política e social. Na quarta-feira (18) o senador [Eduardo]
Suplicy , dois deputados estaduais e eu conseguimos uma audiência com
o presidente do Tribunal e pedimos que, de alguma forma, ele fizesse a
juíza suspender, mesmo que momentaneamente, a reintegração de posse.
Ele nos indicou o juiz titular de falências, Luiz Bethoven [Giffoni
Ferreira]. Nós tivemos uma reunião longa com ele junto com o sindico
da massa falida da Selecta, Jorge Uwada, e o advogado da empresa,
Waldir Helu. O juiz Bethoven, a nosso pedido - eu pedi 60 dias, o
Suplicy falou 30 - acabou dando 15 dias de suspensão da reintegração
para que as negociações avançassem, ou seja, surgissem propostas
concretas dos governos federal, municipal e estadual. Nós conseguimos
um despacho do juiz que, no mesmo momento, conversou com a juíza
Márcia Loureiro. Ela certamente não gostou da decisão do juiz, mas se
propôs a pensar. Enquanto isso, os advogados do movimento também
entraram com uma nova ação na Justiça Federal, que novamente suspendeu
a reintegração. Isso foi o que aconteceu até sexta-feira (20). A
partir daí houve muita movimentação junto ao governo federal, em
Brasília, com propostas de utilização de recursos do plano
habitacional para o Pinheirinho. O prefeito de São José dos Campos,
Eduardo Cury (PSDB), fez uma reunião com o senador Suplicy se propondo
a ter algum grau de negociação. O governo estadual tinha se
comprometido a encontrar uma solução política com o governo federal,
também através do senador Suplicy, para dar infraestrutura para a área
do Pinheirinho. Ou seja, haviam negociações em marcha.
Mas, então, fomos
surpreendidos no domingo de manhã com essa ação policial, atropelando
a decisão federal, e também com a juíza não acatando o próprio acordo
que, de alguma forma, havia sido proposto pelo juiz da massa falida.
Quando chegamos na ocupação, com a polícia já intervindo, descobrimos
que esse juiz, o Luiz Bethoven, a partir da convocação do Ministério
Público, tinha revogado a sua própria decisão [de suspender a
reintegração de posse por 15 dias] e que havia prevalecido a decisão
da juíza Márcia Loureiro, com o aval do Tribunal de Justiça de São
Paulo. Eu quero denunciar que a presidência do Tribunal de Justiça
avalizou a desocupação. Nós entendemos que a Justiça trabalhou como
Justiça de classe, ou seja, com o direito à propriedade acima do
direito à vida. E, nesse sentido, atropelou todo um processo de
negociações. Mais do que isso, [a ação] foi feita em um domingo para
pegar o movimento desprevenido e o judiciário federal praticamente
fechado.
Durante a
desocupação tentamos cassar a liminar de reintegração via o STJ
(Superior Tribunal de Justiça), mas, ao final do dia, o presidente do
Tribunal, ministro Ari Pargendler, também deu razão à Justiça
estadual. Ou seja, os órgãos principais da Justiça acabaram
trabalhando, na minha opinião, não a favor de uma solução pacífica e
política, mas a favor de uma solução truculenta, sem saída para os
moradores e a favor daqueles que especulam imobiliariamente o local, o
grupo Naji Nahas.
A intervenção
policial tem essa característica de ser uma atividade exemplar para
exatamente não haver novos assentamentos. A repressão aos moradores
ocorreu à nossa vista e tentamos evitar ao máximo, mas é difícil,
porque debaixo de uma ordem judicial com cobertura, inclusive, do
Tribunal de Justiça e do governador [Geraldo] Alckmin (PSDB), os
policiais estavam muito a vontade para operar. [Uma ação] lamentável
sob todos os aspectos e, mais do que isso, uma atitude extremamente
reprovável, porque as famílias agora não têm para onde ir, não há um
plano habitacional para acolhê-las em outro local. Quer dizer, esse é
o Brasil real, desigual.
Como havia um
processo de negociação em curso, pode se dizer que a reintegração de
posse levada a cabo pela PM foi ilegal?
Não dá para dizer
que foi ilegal, eu diria que foi absolutamente ilegítima. Ilegal não,
porque o próprio STJ acabou avalizando. O problema é que o julgamento
da Justiça é feito a partir do direito de propriedade, com a injustiça
social e uma justiça de classe. Certamente, do ponto de vista dos
direitos humanos, dos direitos civis, da dignidade e do direito à
habitação, essa [ação da PM] é moralmente condenável. A Justiça
poderia ter agido sabiamente para uma solução política e social que,
inclusive, estava em marcha.
No domingo, um
juiz do Tribunal Regional Federal (TRF) chegou a determinar a
suspensão da retirada das famílias, mas a ordem não foi acatada. A
polícia federal poderia ter agido para manter a decisão da justiça
federal?
Essa é mais uma
questão polêmica, mas eu acho que sim. Na verdade, a Justiça Federal
deu três liminares cassando a reintegração de posse. Uma delas foi no
próprio dia às 10h30 da manhã, sem que a polícia tivesse completado a
sua ação. [A reintegração] podia ter sido suspensa. Então, eu acho
que a Justiça Federal, obviamente, podia ter requisitado uma ação
federal, ou pela polícia federal ou talvez pela força nacional. Ela
podia ter feito algo para tentar cumprir a sua decisão. Acho que é
plausível que ela fizesse isso, mas não fez. A Justiça estadual operou
desrespeitando a decisão federal. Havia um conflito de competências,
mas isso acabou sendo dirimido no STJ, infelizmente, através do
presidente, e a favor do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Na sua avaliação,
o que tem levado os governos municipal e estadual e a justiça estadual
a contrariarem a decisão do governo federal em manter os moradores na
área?
Primeiro eu quero
fazer um registro: eu acho que o governo federal demorou demais para
agir. Ele foi inerte, poderia ter operado mais rapidamente através de
seu plano habitacional e etc.. A segunda coisa é que para o PSDB,
tanto na prefeitura de São José dos Campos como no governo estadual,
com uma área de 1 milhão e duzentos mil metros quadrados com forte
pressão do setor empresarial e imobiliário, certamente deixou
predominar o poder econômico. Ao invés de terem uma visão para o
social e atenderem os seus cidadãos, a prefeitura de São José dos
Campos e o governo estadual optaram pela lógica de expulsar as
famílias desvalidas de lá sem ter um plano de acolhimento.
Os moradores
ocupam a área há oito anos. Por que agora essa decisão de retirá-los?
Essa ocupação tem
oito anos e se consolidou bastante. Há muitas casas de alvenaria e
houve vários avanços em termos urbanísticos no local. Mas não é a
primeira vez que se tenta tirar os moradores de lá. Várias liminares
foram suspensas nesse período de lutas. Eu acho que tanto o governo
municipal quanto o estadual e a Justiça quiseram fazer do Pinheirinho
um local exemplar para evitar novas ocupações. Inclusive com a ação
policial absolutamente desmedida: 2 mil policiais militares com
aparato bélico para enfrentar uma maioria de mulheres e crianças e
idosos que ali moravam, e trabalhadores e trabalhadoras.
O que será feito
a partir de agora para garantir a permanência das famílias na área?
Eu acho que não
vai ser simples a permanência deles na área. O governo municipal e o
estadual realmente não tem um plano habitacional. Eu espero que as
pressões e denúncias e todo esse choque que gerou esse tipo de
desocupação gere nos governos federal, estadual e municipal uma
solução de moradia para essas milhares de pessoas que têm direito à
habitação. Mas é difícil acreditar que os gestores da massa falida,
depois da desocupação feita à força pela PM, tenham interesse em
negociar preços mais baixos para o terreno com os governos. Essa área
deve ser muito cobiçada pelo setor imobiliário, a especulação
imobiliária deve ser muito forte. Então, dificilmente a própria área
do Pinheirinho servirá de terreno às pessoas que já estavam lá, mas
não vamos descartar essa hipótese, vamos esperar.
Então, o que pode
acontecer é que as famílias sejam realocadas em outra área?
Ou fiquem nas
ruas. Os governos são cruéis. Eles não têm plano habitacional para os
excluídos, para os pobres. Então, nós esperamos que a partir da
repercussão do fato e da pressão organizada do movimento se dê uma
solução de moradia digna para eles.
Fonte: Brasil de
Fato, Michelle Amaral, 23/1/12.