GREVE NAS FEDERAIS
O jornalismo cego às armadilhas do discurso oficial
Por Sylvia Debossan Moretzsohn*
O que dizer de um noticiário que dá de manchete exatamente o contrário
da informação correta?
Foi o que ocorreu na cobertura da coletiva convocada pelo governo, no
fim da tarde de 13 de julho, para anunciar a proposta com a qual
pretende pôr fim à greve nas universidades e institutos federais de
ensino, que já dura quase dois meses. O noticiário revelou mais uma
vez a submissão dos jornalistas às fontes oficiais e a absoluta
ausência de apuração própria resultou em matérias que induzem a erro e
anunciam o oposto do que a proposta significa. Pois, em vez do
alardeado reajuste, os professores terão perda salarial, como se verá.
E não apenas isso: o plano de carreira embute armadilhas que, se
confirmadas, significarão um retrocesso aos tempos da ditadura.
Comecemos, porém, pelos aspectos mais evidentes da cobertura.
Uma primeira comparação entre as capas de dois dos principais jornais
do país já levaria a algum arquear de sobrancelhas: enquanto O Globo
alardeia em manchete “Governo cede e aumenta professores em até 48%”,
a Folha de S.Paulo dá chamada de capa com um índice menor: “Governo
propõe reajuste de até 40% a docentes das federais”. A discrepância se
deve a opções diferentes entre os jornais – o maior índice se refere a
professores de institutos federais, e não de universidades – e ao
cuidado do jornal paulista em abater, do índice anunciado, o reajuste
de 4% já pago aos docentes de universidades no contracheque de maio,
retroativo a março, conforme acordo estabelecido no ano anterior.
Ainda assim, ambos os jornais associam os números exuberantes aos
cargos de “maior titulação”, sem explicar que esse reajuste máximo
atinge apenas o restrito grupo de professores titulares. Entre
doutores com regime de dedicação exclusiva, tanto adjuntos quanto
associados (e essa diferença é relevante, porque os associados ganham
substancialmente mais), o índice fica na faixa dos 30%.
Fazendo contas
Os jornais informam corretamente que os reajustes serão concedidos
parcialmente, ao longo dos próximos três anos. Porém, não alertam para
o essencial: que se trata de um percentual bruto, do qual,
obrigatoriamente, deveria ser descontada a previsão de inflação para o
período. E é aí que fica clara a primeira armadilha da proposta: não
se trata de oferta de reajuste, mas da imposição de uma redução
salarial, na maioria dos casos.
Há muitos anos, um renomado colunista de economia, convidado a dar uma
palestra para estudantes de jornalismo, surpreendeu – e provavelmente
decepcionou – a plateia ao responder à pergunta inevitável sobre a
preparação dos jovens para a profissão: não repetiu a ladainha de
sempre sobre a necessidade de leitura dos clássicos; disse que um bom
jornalista precisa saber fazer contas.
Essa tarefa, infelizmente, continua restrita aos especialistas, como o
professor Wagner Ferreira Santos, do Departamento de Matemática da
Universidade Federal de Sergipe. Ele fez essas contas e disponibilizou
o resultado num artigoem que demonstra o engodo de se comparar valores
em períodos distintos sem considerar o índice de inflação
correspondente, normalmente calculado pelo IGP-M. Com base nesse
índice, ele projeta uma inflação de 20% até 2015, de modo que, assim
(re)ajustada, a remuneração da grande maioria dos professores (mestres
e doutores com dedicação exclusiva, que compõem a esmagadora maioria
nas universidades públicas) sofreria, de fato, perda de 0,4% a 11,9%,
conforme a titulação e o nível de carreira. Reajuste, a rigor, só para
o professor titular (5,9%, nesse percentual corrigido) e para o doutor
adjunto nível 4 (1%), como se pode conferir nas tabelas publicadas em
seu artigo.
Para esclarecer, o professor argumenta, como se passasse uma tarefa a
seus alunos: “Como exercício de fixação, façamos cálculos análogos com
o salário mínimo, que é referência para a maioria da população
brasileira. Primeiro, mostre que os atuais R$ 622 são realmente
maiores que os R$ 510 de julho de 2010. Agora, a pergunta capciosa: se
o governo anunciasse hoje que o salário mínimo sofreria aumentos
consecutivos em três parcelas, chegando a R$ 700 em julho de 2015,
você aceitaria?”.
Papagaios das fontes
Os jornalistas presentes à coletiva não apenas não fizeram essas
contas como nem sequer indagaram por que a proposta anunciava
percentuais brutos e ignorava a inflação projetada para o período.
Seria o comportamento elementar de qualquer repórter minimamente
qualificado e interessado em trabalhar com dados corretos para
divulgar informações confiáveis. Ainda que se considere que o governo,
espertamente, venha convocando suas coletivas mais problemáticas para
o fim da tarde, quando já não sobra muito tempo para que os
jornalistas analisem adequadamente os dados que precisam divulgar “em
tempo real”, nos sites e no noticiário radiofônico e televisivo. Mesmo
que não obtivessem a informação precisa, os repórteres poderiam
relativizar o que receberam, e não agir como porta-vozes oficiosos.
Entretanto, o máximo que fizeram foi ouvir “o outro lado”, o dos
dirigentes sindicais, e publicar breves declarações contrárias à
proposta, mas tampouco esclarecedoras.
À parte a questão do reajuste, que inevitavelmente ganharia destaque
no noticiário, há pelo menos outras duas armadilhas embutidas na
proposta do governo para o plano de carreira nas universidades
federais, como se pode constatar aqui, e que sequer foram consideradas
nas reportagens, como observou o professor Kleber Mendonça, chefe do
Departamento de Estudos de Mídia da UFF. Uma delas, que já preocupava
as entidades sindicais, é a de que todos os novos professores,
independentemente de sua titulação, ingressarão no nível mais baixo da
carreira, como auxiliares, e não poderão mudar de classe enquanto
estiverem em estágio probatório (o período de três anos ao final do
qual o profissional é confirmado ou desligado do cargo). Na prática,
isso significa que aquele que já poderia estar recebendo como doutor
ficará com remuneração inferior durante esses três anos. Note-se que
os concursos, há muitos anos, vêm sendo abertos apenas para doutores,
e só excepcionalmente para mestres. Ou seja, exige-se a titulação, mas
a remuneração correspondente pode esperar.
É possível perder essa oportunidade tão clara de ironizar o discurso
oficial de “valorização da carreira”?
Ironias da história
Além disso, a planilhacomparativa divulgada pelo governo mostra apenas
os salários atuais (antes e depois do reajuste de 4% já concedido no
mês passado, e retroativo a março) e os salários de 2015. O hiato de
três anos até lá é apagado, mais ou menos como em certos anúncios
imobiliários em que algumas ruas são suprimidas do mapa para dar a
impressão de que o belo imóvel fica a poucas quadras da praia ou de um
maravilhoso bosque. Quem olha as planilhas fica com a sensação de que
os professores que recebem hoje, digamos, R$ 7.600 (adjunto 1, doutor
com dedicação exclusiva), passarão logo a ganhar R$ 10 mil, quando
esta é a remuneração para daqui a três anos.
A outra armadilha é que o governo propõe uma mudança no sistema de
promoção “nos termos das normas regulamentares a serem expedidas pelo
Ministério da Educação”. Portanto, propõe que os professores aceitem
normas que desconhecem.
É de fazer inveja a Maquiavel.
Mas essa armadilha representa algo ainda mais grave, como lembrou o
jornalista João Batista de Abreu, professor no Departamento de
Comunicação da UFF: significa um retorno aos tempos da ditadura
militar, quando não havia concursos públicos e a cada renovação de
contrato os professores tinham que apresentar o famigerado atestado
ideológico, emitido pelo DOPS. Quem estava respondendo a processo
político não conseguia o documento. Depois da Lei da Anistia, em 1979,
essa exigência caiu, mas um chefe de Departamento que não gostasse de
determinado professor poderia simplesmente não renovar seu contrato.
João Batista, na época em início de sua carreira docente, recorda da
greve iniciada em fins de 1980, que resultou na conquista desse
aspecto fundamental da autonomia universitária que é a definição do
sistema de ascensão funcional, através da constituição de comissões de
progressão docentes, responsáveis também pela regulamentação das
atividades do professor na instituição. “Se os critérios de progressão
passarem a ser definidos pelo MEC”, diz João Batista, “voltaremos 30
anos no tempo”.
Seria uma dessas ironias da história se isso acontecesse, tendo em
vista o passado dos atuais governantes. Mas a tentação autoritária é
um fantasma sempre à espreita.
“Proposta definitiva”
Apesar de todas essas considerações, houve quem, embora com vasta
experiência profissional – como a colunista de política da Folha
Eliane Cantanhêde –, optasse por simplesmente reverberar as
informações oficiais, afirmando tratar-se de uma “proposta
definitiva”, esse absurdo lógico que ignora que uma proposta, por
definição, é passível de negociação. Do contrário, trata-se de
decisão, deliberação, imposição ou qualquer outro substantivo que
expresse uma resolução unilateral de quem tem, ou pensa que tem, poder
para agir dessa forma.
Para concluir, as reportagens não deixaram de notar o “impacto” de R$
3,9 bilhões que essa “proposta definitiva” causará aos cofres
públicos, ignorando oportunamente o teor da Medida Provisória 559, já
aprovada pelo Congresso e dependendo apenas da sanção presidencial,
segundo a qual o governo concede às instituições particulares de
ensino R$ 15 bilhões sob a forma de renúncia fiscal.
Assim se faz o jornalismo de hoje, esse jornalismo que certa vez
chamei “de mãos limpas”, porque se contenta em ouvir um lado, ouvir
outro e lavar as mãos, deixando supostamente a conclusão para o
público. Não é difícil imaginar a que tipo de conclusão esse público
poderá chegar, privado que está das informações elementares a partir
das quais poderia elaborar algum raciocínio minimamente fundamentado.
Não por acaso tantos colegas professores receberam congratulações de
parentes e amigos diante da expectativa do magnífico reajuste.
Precisaram pacientemente desfazer o equívoco, para espanto de quem
acreditou nos jornais.
* Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade
Federal Fluminense.
Fonte: Observatório da Imprensa, 17/7/12, ed. 703.