Edward Palmer Thompson: uma vida extra-muros
Edward Palmer
Thompson (1924-1993) parece que veio ao mundo para ser dissidente. Já
no final da vida, em uma entrevista, diz à repórter que gostava de uma
polêmica
Por Marcos Alvito
Edward Palmer
Thompson (1924-1993) parece que veio ao mundo para ser dissidente. Já
no final da vida, em uma entrevista, diz à repórter que gostava de uma
polêmica. Depois refaz a afirmação: "eu gostava, não gosto mais". Por
fim, já rindo, tem que admitir: "na verdade, continuo gostando". Com o
perdão da expressão, era uma espécie de Che Guevara intelectual.
Nasceu em Oxford
mas formou-se em Cambridge. Seus pais eram missionários metodistas e
aos dezoito anos ele já era filiado ao Partido Comunista da
Grã-Bretanha. Ao ingressar na Universidade de Cambridge participa com
destaque do movimento estudantil. Interrompe os estudos para pilotar
tanques e lutar na Itália e na África durante a II Guerra Mundial.
Seguia o exemplo do irmão mais velho, Frank, que acabou morrendo na
Bulgária, para onde tinha ido como voluntário lutar contra o fascimo.
Seu pai, embora religioso, era um escritor engajado na luta contra o
imperialismo britânico na Índia. Na verdade era um espírito livre
capaz de criticar tanto aos ingleses quanto aos indianos, sem falar da
própria religião, que em uma carta chegou a chamar de "a maior peste
do mundo" (1). Surpreendente para um pastor...
Thompson admite
ter herdado esta postura inconformista do seu ambiente familiar:
"Cresci com a
convicção de que todos os governos são espúrios e imperialistas, e
acreditando que a postura de um indivíduo deva ser sempre hostil ao
governo" (2)
Assim que termina
a guerra alista-se como voluntário (junto com muitos outros jovens
ingleses) para participar da construção da "Ferrovia da Juventude" na
Iugoslávia. Foi ali que conheceu sua futura mulher, a também
historiadora Dorothy Thompson, em uma atmosfera de trabalho pesado
(usavam instrumentos rudimentares), congraçamento e muita crença na
possibilidade de mudar o mundo.
Após retornar,
vai trabalhar no Departamento de Cursos "extra-muros" da Universidade
de Leeds, no norte da Inglaterra, uma região de forte tradição
operária. É interessante analisarmos o nome do departamento:
"extra-muros". Sem dúvida deriva da Idade Média, onde as universidades
eram enclaves protegidos. Mas transmite muito bem a ideia ainda
dominante de uma academia fechada em si mesma, avessa ao "mundo lá
fora". Por exemplo, à época a Universidade de Warwick havia feito um
convênio com uma associação educacional operária. Sendo assim, os
alunos de Thompson no curso noturno eram gente do povo, donas de casa,
funcionários, sindicalistas, professores de segundo grau e sobretudo
trabalhadores. Nem todos os professores estavam de acordo com esta
política de abertura dos portões da academia. Conta-se que numa das
primeiras reuniões de departamento frequentada por Thompson ele
respondeu ao ser perguntado pelos seus propósitos: "formar
revolucionários". Ganhou dois aliados e a desconfiança do restante do
departamento, inclusive do diretor, que não via com bons olhos o
convênio com a Associação Educacional dos Trabalhadores.
O interessante é
que Thompson dava aula de Literatura e História. Seu primeiro livro,
na verdade, é uma análise do escritor, artista e socialista utópico do
século XIX, William Morris. Este amor à literatura era algo comum
entre os historiadores marxistas britânicos: além de Thompson,
Hobsbawm, Christopher Hill e Raymond Williams entre outros
compartilhavam esta paixão. Na verdade, Thompson deu enorme valor às
fontes literárias no seu trabalho, como lembra Christopher Hill (3)
"Como Karl Marx,
Thompson caminhou na contracorrente ao usar a literatura como fonte
para a história social e econômica (...) Quem - senão Thompson -
citaria Chaucer, Tristam Shandy, Wordsworth, Dickens e os poetas do
século XVIII Stephen Duck e Mary Collier em uma artigo sobre 'Tempo,
disciplina de trabalho e capitalismo industrial'?"
Thompson leciona
durante dezenove anos no curso noturno para trabalhadores em Leeds,
dos 22 aos 41 anos. Alto, esguio, bonito e cheio de energia, é
lembrado por carinho por seus alunos, que elogiavam sua capacidade de
fazê-los sentir que os assuntos dos quais ele tratava tinham relação
com a vida desses alunos. Thompson, por sua vez, aprendia muito com os
alunos, com a experiência concreta da classe operária, algo que seria
muito importante para a elaboração da sua obra-prima The making of the
English Working Class. Nas palavras do próprio em um relatório acerca
das atividades escolares de 1948-9:
“De modo geral, o
tutor acredita ter aprendido mais o que ele transmitiu … e apesar de
alguns erros iniciais, a classe aprendeu a trabalhar no espírito
desejado na WEA [Worker's Educational Association - Associação
Educacional dos Trabalhadores] – não como o tutor e a audiência
passiva, mas como um grupo combinando diversos talentos e fundindo
diferentes conhecimentos e experiências para um fim comum." (4)
Um dos seus
alunos na década de 50, Peter Thorton, explica como eram as aulas:
“As aulas de
Edward Thompson … tinham esse efeito de fazer com que você percebesse
que a história não era algo separado e a parte; ela era uma progressão
da qual você era parte. Eu sempre sentia isso. E quando ele tratava de
coisas como os tecelões manuais de Yorkshire, os ludistas, o
desenvolvimento social da revolução industrial nesta parte do mundo,
você muito rapidamente percebia o quanto você e a sua gente eram parte
daquilo.” (5)
Além de professor
dedicado, ao mesmo tempo rigoroso e gentil, Thompson continua no
Partido Comunista da Grã-Bretanha, inclusive tendo um posto na direção
da sua região. Em 1956, todavia, ele acabará se desligando do partido.
Quando os crimes de Stalin são denunciados por Nikita Kruschev,
Thompson e seu amigo John Saville editam um jornal mimeografado
criticando a postura do partido. São convidados a sair. Ele tinha 42
anos. A partir daí forma juntamente com companheiros a New Left ou
Nova Esquerda Britânica, origem da revista New Left Review. Marxista
convicto, Thompson definia-se como um "socialista humanista". Sair do
partido não significava abrir mão do sonho e da luta pela
transformação social, muito pelo contrário.
Mas o fato que
irá mudar definitivamente a vida de Edward Palmer Thompson será a
publicação, em 1963, de The making of the English Working Class,
qualificado por Hobsbawm como um vulcão histórico em erupção de 848
páginas. Até a publicação deste livro, Thompson só era conhecido nos
restritos círculos da esquerda britânica. O historiador Sergio Silva
nos dá uma ideia da importância e do impacto polêmico de The Making
(6):
"[Thompson]
escreve um livro para desmentir nada mais, nada menos que uma das
teses mais importantes e conhecidas de O capital. Para Thompson, o
proletariado não seria um resultado da industrialização"
O problema é que
Marx não chegou a concluir O Capital. Ficou faltando, exatamente, um
prometido volume sobre as classes sociais. De qualquer forma, para
Sergio Silva, em O Capital Marx deriva a existência da classe operária
da lógica de funcionamento do capital, ou seja, do modo-de-produção
capitalista e do próprio nascimento da burguesia. Para Thompson, ainda
segundo Sergio Silva (7):
"a lógica do
capital (mesmo entendido como relação social) não pode explicar o
processo histórico real. Isso não significa, de maneira alguma, que,
para ele, o processo histórico não tenha uma lógica. Muito pelo
contrário, ele entende justamente que somente a lógica do processo
pode explicar o desenvolvimento do capitalismo, o movimento do
capital, a relação capitalista de produção".
De forma bem
simples, podemos dizer que a classe operária de Thompson não deriva
mecanicamente de um modo-de-produção abstrato e sim de um processo
concreto, histórico, em que ela se constitui na luta de classes. A sua
constituição, o seu fazer-se a si própria, não pode ser explicado
somente pelo econômico, mas tem que levar em consideração as
tradições, valores, costumes. Não há mais fronteira entre infra e
super-estrutura, não há determinação nem em primeira nem em última
instância. Thompson liberta o marxismo da prisão do economicismo.
Do ponto de vista
político a tese de Thompson era pura dinamite. Tinha implicações
políticas profundas, pois a consciência de classe da classe operária
era construída pela mesma no decorrer das suas lutas, desautorizando
aqueles (sobretudo os intelectuais do partido) que se acreditavam em
condições de servir de farol a iluminar os caminhos dos trabalhadores.
Ao contrário
daqueles que buscam em Marx os elementos para contradizer o próprio
Marx, Thompson não teve medo de dizer que, em O Capital, Marx havia
caído na armadilha do economicismo, cuja origem (esta sim em última
instância), deriva da adesão à lógica do capital como a única
possível.
O livro é um
sucesso imediato, o que surpreende Thompson e Dorothy, acostumados a
uma vida pacata de professores de curso noturno: estudar, cuidar da
casa e dos filhos de dia e trabalhar à noite, além da militância, é
claro. Thompson o escrevera como o resultado de dez anos de
magistério, das conclusões e questões a que chegara trabalhando com
seus alunos. Ele escreve para eles e para os militantes, não pensa no
mundo acadêmico e a forma do livro, com seu texto irônico e
sarcástico, é bastante herética em relação à camisa-de-força dos
textos emanados das universidades.
Apesar disso ou
talvez exatamente por isso, Thompson irá alcançar renome mundial: na
década de 1980 chegou a ser o historiador britânico mais citado e um
dos cem autores mais citados no mundo em todo o século XX segundo o
Arts and Humanities Citations Index (1976-1983).
Em 1965, com 41
anos, recebe o seu primeiro convite para trabalhar "intramuros" na
Universidade de Warwick, dirigindo um centro de pesquisa voltado para
a História Social. Ali desenvolve pesquisas sobre a Inglaterra no
século XVIII e forma uma geração de historiadores como Peter Linebaugh
e Douglas Hay, com quem publica Albion's Fatal Tree: Crime and Society
in Eighteenth-Century England. A lua de mel com a academia,
entretanto, dura pouco. Em 1971 sai da universidade depois que um
grupo de alunos descobre que direção pretendia expulsar um aluno por
motivos políticos. Thompson pede demissão e sai atirando: publica
ainda naquele ano o livro Warwick University Limited, criticando a
comercialização da universidade. Nunca mais ele viria a ter um emprego
regular em qualquer universidade. Hobsbawm tem certeza de que isto foi
uma retaliação do establishment universitário à rebeldia de Thompson.
Eric Hobsbawm,
aliás, seu amigo e colega de longa data no grupo dos "historiadores"
Partido Comunista da Grã-Bretanha, o define assim apesar das
respeitosas polêmicas que travara com Thompson (9):
"As fadas que o
visitaram em seu berço (...) trouxeram-lhe muitos dons: um poderoso
intelecto aliado à intuição de poeta, eloquência, amabilidade, charme,
presença de espírito, uma voz maravilhosa, uma admirável expressão
dramática, que ficou grisalha e fendida com o passar do tempo, carisma
e celebridade em profusão."
Na década de 70,
Thompson trabalhou por breves períodos em universidades
norte-americanas e continuou sua atividade política, travando ferozes
debates no interior do Partido Trabalhista, no qual ingressara a
contragosto (por achar necessário à luta política naquele momento).
Faz críticas sobretudo ao desrespeito às liberdades civis. Mas também
participa das polêmicas no seio do marxismo: em 1978 escreve A miséria
da teoria - ou um planetário de erros, uma crítica contundente ao
marxismo estruturalista de Althusser então na moda. De Althusser e
seus seguidores diz o seguinte "... todos eles são
Geschichtenscheissenschlopff, merda a-histórica". É neste contexto de
disputa teórica que deve ser inserido o texto "Folclore, Antropologia
e História Social", originário de uma palestra ministrada por Thompson
na Índia em 1977 e que será objeto de uma postagem. Neste mesmo ano,
Thompson toma parte em um seminário onde expõe suas diferenças em
relação à posição estruturalista, para nossa alegria devidamente
filmado e hoje disponível no Youtube (parte 1 de 3): <http://www.youtube.com/watch?v=i3Rk-h9Ugd4&feature=player_embedded#t=0s>
Na década de 1980
ele participa e logo torna-se o maior líder do movimento pacifista e
anti-nuclear na Europa. Fazia comícios inflamados nos parques de
Londres, atraindo multidões. Ao fim da década de 80 volta a lecionar
em universidades, novamente nos Estados-Unidos mas também na
Inglaterra (Manchester). Nos últimos anos de vida, já doente, dedica o
pouco tempo que lhe restava a preparar publicações de textos escritos
há muito tempo, o que redunda na publicação do importantíssimo
Costumes em comum, entre outros livros. Além de livros de História,
ele escreveu livros de caráter político e militante (Writing by
Candlelight p.ex.), um livro de poemas e até mesmo um livro de ficção
científica: The Sykaos Papers
Como diz
Hobsbawm, Thompson morre aos 69 anos cuidando do seu jardim em
Worcestershire. Dois anos antes ele consegue terminar a preparação de
Costumes em comum, adiada em duas décadas por conta das lutas
políticas em que se engajou. Na introdução, escrita por um Thompson já
debilitado pela doença, a força das suas ideias e do sonho com um
outro mundo, todavia, continuam intactos:
"Como o
capitalismo (ou seja, 'o mercado') recriou a natureza humana e as
necessidades humanas, a economia política e seu antagonista
revolucionário passaram a supor que esse homem econômico fosse eterno.
Vivemos o fim de um século em que essa idéia precisa ser posta em
dúvida. Nunca retornaremos à natureza humana pré-capitalista; mas
lembrar como eram seus códigos, expectativas e necessidades
alternativas pode renovar nossa percepção da gama de possibilidades
implícita no ser humano. Isso não poderia até nos preparar para uma
época em que se dissolvessem as necessidades e expectativas do
capitalismo e do comunismo estatal, permitindo que a natureza humana
fosse reconstruída sob uma nova forma? É possível que eu esteja
querendo demais."
O mais bonito
nesta passagem, a meu ver, é o uso particular que ele faz da expressão
"natureza humana". É claro que Thompson não acredita numa natureza
humana fixa, eterna, imutável. O que ele está apontando de forma
sutilmente irônica é que a lógica do mercado se enraíza tão
profundamente na experiência e na visão de mundo das pessoas que
torna-se natural. Estudar outras épocas, outros homens, outras
experiências, significa relativizar a lógica sob a qual vivemos, por
perceber que existe uma "gama de possibilidades implícita no ser
humano". Para Thompson nós poderíamos nos reconstruir, ou melhor, nós
podemos ainda nos reconstruir "sob uma nova forma".
Um pensamento
assim, ao mesmo tempo rigoroso e poético, utópico e combativo,
generoso e polêmico, não cabe dentro de muros.
Notas:
(1) PALMER,Bryan
D. Edward Palmer Thompson: posições e oposições. São Paulo: Paz e
Terra, 1996. p.35
(2) Idem, ibidem,
p.25
(3)
HILL,Christopher. In: THOMPSON,E.P. As peculiaridades dos ingleses e
outros artigos.
Campinas,Editora da Unicamp. p.5.
(4)
Peter Searby & John Rule and Robert Malcolmson, “Edward Thompson as a
teacher: Yorkshire and Warwick”, in J. Rule & R. Malcolmson (eds.),
Protest and survival. Essays for E. P. Thompson, London, The Merlin
Press, 1993. p.14.
Apud BADARÓ,
Marcelo, E. P. THOMPSON e a tradição de crítica ativa do materialismo
histórico. Mimeo. p.24. (no prelo)
(5) Idem, ibidem,
p.17 apud BADARÓ, opus cit. p.24.
(6) SILVA,Sergio
"Thompson, Marx, os marxistas e os outros" In: THOMPSON,E.P. (2001) As
peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas,Editora da
Unicamp,2001.pp.60-61.
(7) Idem, ibidem,
p.63
(8) Idem, ibidem,
p.68
(9) HOBSBAWM,E.
"E.P.Thompson" In: THOMPSON,E.P. (2001) As peculiaridades dos ingleses
e outros artigos. Campinas,Editora da Unicamp,2001.p.16
(10)
THOMPSON,Edward P. Costumes em comum. São Paulo, Companhia das Letras,
1988. pp. 23-24.
Fonte: Brasil de
Fato, 2/4/12.