Eduardo Galeano lança novo livro na forma de um calendário
A cada dia, nasce
uma história em “Os filhos dos dias”; trata-se de 366 textos que,
segundo Galeano, são histórias de invisíveis que merecem ser contadas
Por que este
título: Os filhos dos dias?
Segundo os maias,
nós somos filhos dos dias, ou seja, o tempo é que estabelece o espaço.
O tempo é nosso pai e nossa mãe e, como somos filhos dos dias, o mais
natural é que a cada dia nasça uma história. Somos feitos de átomos,
mas também de histórias.
Dentro dessas
histórias há muitas vinculadas à nossa vida cotidiana. Você assinala:
“vivemos em um mundo inseguro”. A particularidade é que projeta que
existem diferentes concepções sobre a insegurança. A que se refere?
Muitos políticos
no mundo inteiro, não é algo que passa somente em nosso país, exploram
um tipo de histeria coletiva a respeito do tema da insegurança. Te
ensinam a ver ao próximo como uma ameaça e te proíbem vê-lo como uma
promessa, ou seja, o próximo, esse senhor, essa senhora que anda por
aí, pode roubar-te, sequestrar-te, enganar-te, mentir para você,
raramente oferecer-te algo que valha a pena receber. Creio que essa
forma parte de uma ditadura universal do medo. Fomos treinados para
ter medo de tudo e de todos e este é o álibi que necessita a estrutura
militar do mundo. Este é um mundo que destina metade de seus recursos
à arte de matar o próximo. Os gastos militares, que são o nome
artístico dos gastos criminais, necessitam de um álibi. As armas
necessitam da guerra, como os abrigos necessitam do inverno.
Quando fala dos
medos, você joga com essa palavra para assim mencionar os meios e tem
uma história que é “os meios de comunicação”. A que lugar você atribui
aos meios em nossos medos?
Às vezes, os
meios atuam como medos de comunicação, então, se convertem em medos de
incomunicação. Isto não é verdade para todos, mas sim para alguns
meios que no mundo inteiro exploram esse tipo de histeria coletiva
desatada com o tema da insegurança. Mentem, porque a insegurança não
se reduz à insegurança que se pode sofrer nas ruas. Inseguro é este
mundo e a primeira é a insegurança no trabalho, que é a mais grave de
todas e da qual nunca falam os políticos que exploram o tema da
insegurança. Não há nada mais inseguro que o trabalho. Todos nos
perguntamos: e amanhã, haverá quem me contrate? Voltarei ao lugar de
trabalho onde estive hoje? Terá alguém ocupado meu lugar?
Esse medo real de
perder o trabalho ou de não encontrá-lo é a fonte de insegurança mais
importante. Tão inseguro é o mundo, a quantidade de pessoas que matam
os carros nisso que chamamos acidentes de trânsito, na realidade são
atos criminosos por conta dos condutores que tendo permissão de
dirigir, tem permissão para matar, ou a insegurança da maioria das
crianças que nascem no mundo condenados a morrer muito cedo de fome ou
de enfermidade incurável.
Aparecem as
histórias dos desaparecidos, mas lhe menciono uma em particular,
chamada Plano Condor, onde a história que se conta pertence a Macarena
Gelma. Como foi para você conhecer Macarena Gelman?
Comecei
conhecendo ao pai de Macarena (Marcelo) e ao avô Juan (Gelman) com
quem trabalhei junto na revista Crisis em Buenos Aires e que é meu
amigo de toda a vida. São muitos anos de amizade, ou melhor, de
irmandade. Juan (Gelman) teve que sair da Argentina para continuar
vivo, naqueles dias que se viviam em Buenos Aires, onde tinha que ir
ou esconder-se. Então, eu recebia com muita frequência a seu filho
Marcelo e me fiz de pai por algum tempo, depois o mataram, e a outra
história é bastante conhecida.
A mulher de
Marcelo (María Claudia) foi sequestrada na Argentina. Eram acusados do
crime de protestar, delitos de dignidade que tem a ver com o direito
estudantil ao protesto. Esses eram os crimes dos meninos, como eles
foram assassinados muito cedo. A María Claudia assassinaram no
Uruguai, onde já funcionava o mercado comum da morte, que foi o melhor
em funcionamento, porque o Mercosul ainda tinha dificuldades graves. O
mercado da morte funcionou muito bem naquelas horas do terror onde as
ditaduras trocavam favores. Mandaram María Claudia grávida para o
Uruguai e aqui os militares uruguaios se encarregaram do trabalho.
Esperaram ela dar à luz, ela passou seus últimos dias, ou talvez seus
últimos meses, na sede do Bulevar Artigas e Palmar (SID) onde
descobriu-se a placa em memória de María Claudia e todos os que
estiveram ali.
Me impressionou o
contraste pela beleza exterior do palácio e os horrores que escondia.
Depois de dar à luz, a mataram e entregaram seu filho(a) a um
policial, troca de favores. A partir de uma busca complicada de Juan
(Gelman) e seus amigos, conseguiu encontrá-la e agora chama-se
Macarena Gelman. Nós tornamos muito amigos e uma vez jantando em casa,
me contou essa história que é parte das histórias de “Os filhos dos
dias” (livro). É uma história muito íntima, muito particular e lhe
pedi autorização para publicá-la. É uma história rara, mas reveladora.
Conta que quando ainda não sabia quem era e vivia em outra casa, com
outro nome, nesse período sofria de insônia contínua, que não a
deixavam dormir a noite porque a perseguia sempre o mesmo pesadelo.
Via uns senhores desconhecidos muito armados que a buscavam no
dormitório onde estava dormindo, debaixo da cama, no guarda-roupa e em
todas as partes e ela acordava gritando e angustiadíssima.
Durante
muitíssimo tempo, toda sua infância teve esse pesadelo que a perseguia
e ela não sabia o por quê, de onde vinha. Até que conheceu sua
verdadeira história e soube que estava sonhando os pesadelos que sua
mãe havia vivido enquanto a formava no ventre. A mãe, uma estudante de
apenas 19 anos, era perseguida de verdade por outros senhores armados
até os dentes que a encontraram e a mandaram para morrer no Uruguai.
Macarena estava no ventre dessa mulher acoada e perseguida. Desde o
ventre padecia a perseguição que sua mãe sofria e depois a sonhou e se
converteu em seus próprios pesadelos. Ela sonhou o que sua mãe havia
vivido. É uma história que parece uma metáfora da transmissão, das
penas, dos horrores, e também de outras continuidades que não são
todas horríveis.
É um livro que
contém muitas histórias de mulheres. Por que?
Também há muitas
histórias de mulheres em meus livros anteriores, como “Espelhos e
Bocas do Tempo”. Há muitas histórias dos invisíveis, e as mulheres
ainda são bastante invisíveis. Há histórias de negros, de índios, das
culturas ignoradas, das pessoas ignoradas e que merecem ser
redescobertas porque têm algo para dizer e vale a pena escutar.
Neste último
livro (Os filhos dos dias) há uma história que me impressionou muito,
e que não havia escrito até agora, a de Juana Azurduy. Juana foi uma
heroína das guerras de independência. Encabeçou a tomada do Cerro de
Potosí que estava nas mãos dos espanhóis. Ela era a chefe de um grupo
guerrilheiro que recuperou Potosí das mãos espanholas. Depois seguiu
guerreando pela independência, perdeu seus 7 filhos e seu marido nessa
guerra. Finalmente, foi enterrada em uma fossa comum e morreu na
pobreza mais pobre que se possa imaginar. Antes havia recebido um
título militar, foram as forças independentistas as que lhe deram um
título que dizia em mérito: “a sua viril coragem”. Precisou-se de
muito tempo para que uma presidenta argentina (Cristina Fernández) a
outorgasse o título de General por sua feminina valentia.
Um integrante da
Real Academia Espanhola assinalou como um erro utilizar expressões que
carreguem a linguagem. Era uma crítica à feminização como, por
exemplo, quando se utiliza todos e todas. O que você pensa a respeito?
O transcendente é
o que está por trás, mas às vezes os conteúdos são refletidos nas
palavras que expressam. Me parece ridículo quando uma mulher se
apresenta e me diz sou médico, será médica, eu contesto.
Há muitas
histórias dos povos originários, da luta pelos recursos naturais, e o
rol das multinacionais. Em particular, uma história dedicada à selva
amazônica.
Essa história
sobre a Amazônia recorda que a Texaco, empresa petroleira que derramou
veneno durante muitos anos, arruinou boa parte da solva equatoriana.
Foi a juízo, mas perdeu. As vítimas desse atentado à natureza e às
pessoas desse lugar não tinham meios econômicos, enquanto a Texaco
contava com centenas de advogados. Ao cabo de anos, contudo, o pleito
foi ganho, mas ainda não se colocou em prática, porque há muitas
maneiras de se apelar, e de tirar a bola para fora e para isso não
faltam doutores.
No livro tem um
olhar crítico sobre os governos progressistas que ainda não
descriminalizaram o aborto.
O livro toca
todos os temas sempre a partir de histórias concretas. Não é um livro
teórico.
As 366 histórias
não são somente latino-americanas, você percorre o mundo.
Há muitas
histórias que merecem ser recuperadas. Luana, por exemplo, foi a
primeira mulher que firmou seus escritos nas tábuas de barro. Ocorreu
há quatro mil anos e dizia que escrever era uma festa. Essa mulher é
desconhecida. E vale a pena contar que essa história existiu.
A respeito da
crise internacional , você resgata o que ocorreu na Islândia e o
movimento dos indignados na Espanha.
Esta crise provém
de um círculo muito pequeno de banqueiros onipotentes. Me ocorreu para
esta história um título sinistro que foi “adote um banqueiro”. Os
responsáveis da crise são os que mais tem se queixado e os que mais
dinheiro tem recebido. Eles têm sido recompensados por fundir o
planeta. Todo esse dinheiro que destinou aos que causaram o pior
desastre na história da humanidade seria suficiente para dar comida
aos famintos do mundo com sobra, inclusive.
Você acha uma
contradição a existência do movimento dos indignados e que, ao mesmo
tempo, tenha ganhado o Partido Popular na Espanha?
A aparição dos
indignados é o que de mais lindo ocorreu no mundo nos últimos tempos.
Creio que o melhor da vida é sua capacidade de surpresa. O melhor dos
meus dias é o que ainda não vivi. Cada vez que uma cigana me cerca
para ler a minha mão a peço por favor que a pague mais que não leia.
Não quero que me digam o que vai me ocorrer, o melhor que a vida tem é
a curiosidade e a curiosidade nasce da ignorância do destino. A
explosão dos indignados começou na Espanha, e depois se estendeu em
outras partes. É uma boa notícia a capacidade de indignação. Bem dizia
meu mestre brasileiro Darcy Ribeiro (intelectual brasileiro já
falecido) que o mundo se divide entre os indignos e os indignados e
que tem-se que tomar partido, há que se eleger.
Pensei muito nele
quando surgiu este movimento. Jovens que perderam seus empregos e suas
casas por responsabilidade desses malabarismos financeiros que
acabaram despojando os inocentes de seus bens. Eles não foram os que
pegaram empréstimos impossíveis, não foram eles os culpados da bolha
financeira e deste disparate que aconteceu na Espanha de construir e
construir e agora está cheia de moradias desabitadas e gente sem casa.
O PP ganhou a
eleição, é verdade. A direita ganhou as eleições, e terá que lutar
para que isso mude. Isto que aconteceu na Espanha também fala do
desprestígio de forças de esquerda que entram na vida política
prometendo mudanças radicais, e depois terminam repetindo a história,
ao invés de mudá-la. Muitas pessoas, sobretudo os jovens, se sentem
desapontadas e abandonam a política.
Fonte: Brasil de
Fato, Ana María Mizrah
"LA REPÚBLICA", de Montevidéu (Uruguai), 28/3/12.