“A economia capitalista está em crise e as contradições tendem a se
aguçar”
Na visão do
professor Armando Boito, o atual modelo
neodesenvolvimentista brasileiro colabora para tal acirramento
O professor da
Unicamp Armando Boito acredita que o neoliberalismo representa, em
todo o mundo, uma ofensiva da burguesia contra os trabalhadores.
Segundo ele, para nós da América Latina, representa uma ofensiva das
economias imperialistas contra as economias dependentes
latino-americanas.
Em entrevista
exclusiva ao Brasil de Fato, Boito afirma que o modelo de
desenvolvimento brasileiro é neodesenvolvimentista, que é, segundo
ele, o programa de uma frente política integrada por classes e frações
de classe muito heterogêneas. Para o professor, essa é a frente que
sustentou os governos Lula da Silva e que, agora, sustenta o governo
Dilma.
“As organizações
revolucionárias devem participar criticamente dessa frente porque o
seu programa atende apenas de modo marginal e muito restrito os
interesses das classes populares”, defende. Boito afirma também que o
movimento popular deva levantar a bandeira da independência nacional.
Além disso, deve pressionar o governo brasileiro para que ele se
coloque contra as sucessivas intervenções militares dos EUA e da OTAN
nos países da África e da Ásia.
Brasil de Fato –
Como você avalia o atual modelo de desenvolvimento brasileiro?
Armando Boito –
Eu
penso que o modelo capitalista vigente no Brasil ainda é o modelo
neoliberal, embora esse modelo tenha passado por um período de
reforma. Essa reforma aparece na política econômica
neodesenvolvimentista e nas políticas sociais da década de 2000.
Explico. O neoliberalismo representa, em todo o mundo, uma ofensiva da
burguesia contra os trabalhadores e, para nós da América Latina,
representa, ademais, uma ofensiva das economias imperialistas contra
as economias dependentes latino-americanas. Essa dupla ofensiva
traduziu-se, como sabemos, em aumento do desemprego, no corte de
direitos trabalhistas e sociais, na reconcentração da renda, nas
privatizações, na hipertrofia da acumulação financeira, na abertura
comercial e na desindustrialização forçada de países da América
Latina. Pois bem, embora os governos Lula e, na sua sequência, o
governo Dilma não tenham revertido essa dupla ofensiva e tampouco
suprimido os seus principais resultados, esses governos moderaram os
efeitos negativos do modelo capitalista neoliberal no que respeita às
condições de vida da população trabalhadora e no que concerne à
proteção do capitalismo brasileiro. A economia voltou a crescer, o
emprego e o salário cresceram, o programa de privatização foi contido
e, como podemos ver no presente momento, o governo Dilma se esforça
por proteger a indústria interna da concorrência dos importados
barateados pelo câmbio alto.
Embora o
capitalismo neoliberal não tenha sido substituído por um modelo novo,
voltado para as necessidades mais sentidas das massas trabalhadoras,
podemos observar um contraste entre, de um lado, a situação brasileira
e também de vários países latino-americano, e, de outro lado, a
situação dos principais países da Europa. Enquanto assistimos a uma
nova e forte ofensiva burguesa neoliberal na Inglaterra, na França, na
Itália, em Portugal e em outros países europeus com seus governos
majoritariamente neoliberais ortodoxos, na América Latina, onde
prosperaram os governos de centro-esquerda e de esquerda, o que vemos
são tentativas de moderar o capitalismo neoliberal (Brasil e
Argentina) ou mesmo de substituir esse modelo (Bolívia, Venezuela).
São respostas diferentes para a crise iniciada em 2008.
Como é que você
caracteriza o neodesenvolvimentismo dos governos Lula e Dilma?
O
neodesenvolvimentismo retoma a velha aspiração desenvolvimentista, mas
o faz em condições históricas novas e com ambição menor. O
neodesenvolvimentismo é o desenvolvimentismo possível dentro do modelo
capitalista neoliberal. Vou destacar cinco diferenças importantes que
o distinguem do desenvolvimentismo do período 1930-1980 e que o
distinguem, especialmente, da fase em que o velho desenvolvimentismo
esteve unido ao populismo entre 1930 e 1964.
O
neodesenvolvimentismo, quando comparado ao desenvolvimentismo do
século passado,
a) apresenta
taxas de crescimento econômico bem mais modestas; b) confere
importância menor ao mercado interno, isto é, ao consumo das massas
trabalhadoras do país; c) dispõe de menor capacidade de distribuir
renda; d) aceita a antiga divisão internacional do trabalho,
promovendo uma reativação, em condições históricas novas, da função
primário-exportadora do capitalismo brasileiro; e) é dirigido
politicamente por uma fração burguesa, a qual nós denominamos
burguesia interna, que perdeu toda veleidade de agir como força
antiimperialista. Todas essas cinco características, que se vinculam
umas às outras, fazem do neodesenvolvimentismo um programa muito menos
ambicioso que o seu predecessor e tais características advêm do fato
de o neodesenvolvimentismo ser a política de desenvolvimento possível
dentro dos limites dados pelo modelo capitalista neoliberal. As taxas
menores de crescimento do PIB são as taxas possíveis para um Estado
que, para poder rolar a dívida pública, aceita abrir mão do
investimento; o papel de menor importância conferido ao mercado
interno é decorrente do compromisso político em manter a abertura
comercial; a reativação da função primário-exportadora é a opção de
crescimento possível para uma política econômica que não pretende
retomar as posições que o capital imperialista obteve no mercado
nacional; todas as características anteriores desestimulam ou impedem
uma política mais forte de distribuição de rendas.
Do ponto de vista
político, quais sãs as forças que sustentam esse modelo de
desenvolvimento?
O
neodesenvolvimentismo é o programa de uma frente política integrada
por classes e frações de classe muito heterogêneas, frente essa que
sustentou os governos Lula da Silva e que, agora, sustenta o governo
Dilma. Essa frente representa prioritariamente os interesses de um
setor importante da burguesia brasileira que é a grande burguesia
interna.
A burguesia não é
uma classe homogênea, ela encontra-se dividida em frações cujos
interesses de curto prazo diferem entre si em decorrência das
situações distintas vividas pelas empresas no processo de acumulação
capitalista (banco, indústria e comércio; grande capital, médio
capital; exportação, importação etc.) e em decorrência do perfil da
política econômica do Estado. A fração que denominamos grande
burguesia interna brasileira é integrada por grandes empresas de
variados setores da economia. O que unifica essas empresas é a
reivindicação, motivada pela política econômica de abertura comercial
e de desnacionalização da década de 1990, de proteção do Estado na
concorrência que elas empreendem com o capital estrangeiro. Essa
fração burguesa quer o investimento estrangeiro no país, mas pretende,
ao mesmo tempo, preservar e ampliar as suas posições no capitalismo
brasileiro – é por isso que a denominamos burguesia interna e não
burguesia nacional que pode, essa última, assumir posições
antiimperialistas. Vê-se que, ao contrário de uma ideia bastante
corrente, a chamada “globalização” não fundiu a burguesia dos
diferentes países numa suposta burguesia mundial.
Mas essa grande
burguesia interna ganhou com o neoliberalismo. É ela a força dirigente
da frente política neodesenvolvimentista?
A grande
burguesia interna brasileira também ganhou com o neoliberalismo
ortodoxo da década de 1990. Teve ganhos com redução dos direitos
trabalhistas e sociais, com o desemprego que dobrou o sindicalismo e,
ponto importante, aumentou o seu patrimônio com a compra, a preço vil,
de grandes empresas estatais. Porém, essa fração burguesa acumulou,
nesse mesmo período, contradições com aspectos específicos do modelo
capitalista neoliberal e passou a reivindicar proteção do Estado para
não ser engolida pelo grande capital financeiro internacional – ou
seja, passou a reivindicar justamente aquilo que a burguesia condena,
em teoria, no seu discurso ideológico. A ascensão de Lula representou,
acima de tudo, a ascensão dessa fração da burguesia em disputa com o
grande capital financeiro internacional. A priorização dos interesses
dessa fração do grande capital pelo Estado brasileiro aparece em
inúmeros aspectos da política econômica dos governos Lula e Dilma.
Aparece no abandono a frio da proposta da ALCA, na nova política de
créditos do BNDES que visa à formação dos chamados “campeões
nacionais” para diferentes setores da economia, na inversão da
política de comércio exterior da era FHC, visando obter saldos
crescentes na balança comercial, na legislação que prioriza as
empresas instaladas no país para as compras do Estado e das empresas
estatais, na nova política externa que visa fortalecer as relações
Sul-Sul e, como estamos vendo neste momento, nas iniciativas do
governo Dilma, visando proteger a indústria interna. Pois bem, a
grande burguesia interna é a força dirigente da frente política
neodesenvolvimentista, ou seja, é essa fração de classe que define os
objetivos prioritários e os métodos de intervenção política da frente.
O seu objetivo é o crescimento econômico com maior participação das
empresas predominantemente nacionais e das empresas estrangeiras aqui
radicadas, uma maior proteção do mercado interno e o apoio do Estado
para a conquista de mercados externos para a exportação de mercadorias
e serviços e também para a expansão dos investimentos das empresas
brasileiras no exterior – construção civil, exploração mineral,
siderurgia, bioenergia etc.
E você entende
que há uma aliança dessa burguesia com as classes populares?
Não exatamente.
Como já indiquei, é verdade que o programa neodesenvolvimentista
contempla também, ainda que de maneira periférica ou pontual, alguns
interesses das classes populares – operariado urbano, baixa classe
média, campesinato e a massa empobrecida pelo desemprego e pelo
subemprego. Porém, nós estamos utilizando a expressão frente política,
e não aliança de classes, para caracterizar as relações que se
estabelecem entre as diferentes classes e frações de classe que
compõem as bases sociais do programa neodesenvolvimentista porque a
unidade entre essas forças é um tanto frouxa e não se baseia em um
programa político claro, que tivesse sido assumido, conscientemente,
pelas organizações das diferentes classes e frações de classe que
integram o campo neodesenvolvimentista. Às vezes e para alguns setores
da frente desenvolvimentista as relações se aproximam daquilo que
poderíamos denominar uma aliança de classes. Estamos vendo isso agora
na ação conjunta das centrais sindicais e do grande empresariado
industrial para pressionar o governo Dilma para que tome medidas de
proteção à indústria instalada no país. Porém, no plano político e em
geral não é assim que se dão as relações entre as forças que compõem o
campo neodesenvolvimentista. É por isso que prefiro falar em frente e
não em aliança de classes. Mas, tanto na frente quanto na aliança a
base é algum tipo de convergência de interesses.
Como é que os
interesses populares são contemplados pelo neodesenvolvimentismo?
Entre as classes
populares, o crescimento econômico também é bem-vindo. Depois da
“década perdida” do reinado tucano, o crescimento é o elemento que une
essa frente. Porém, os trabalhadores querem crescimento com emprego de
qualidade, com melhoria salarial, com distribuição de terra, enfim,
querem que o crescimento favoreça as grandes massas. É nesse ponto que
se instaura o conflito entre a força dirigente e as forças
subordinadas dessa frente política.
Esse conflito,
convém destacar, tem se mantido, contudo, no terreno da luta
econômica. No terreno político, quando o neodesenvolvimentismo é
ameaçado, as classes e frações de classe que compõem a frente, agem de
maneira unitária – aconteceu isso na chamada “crise do mensalão” em
2005 e nas eleições presidenciais de 2006 e de 2010. Em todas essas
conjunturas, a grande burguesia interna, por intermédio de suas
principais associações, e as classes populares, por intermédio de
partidos, movimentos e sindicatos, apoiaram Lula e Dilma contra a
oposição dirigida pelo PSDB.
Você entende que
as direções dessas organizações populares teriam sido cooptadas pelo
governo, como sugerem alguns observadores?
Não, eu não
aceito essa análise. Os trabalhadores tendem a apoiar a frente
neodesenvolvimentista devido a melhorias reais que obtiveram no
emprego, no salário, na política de assistência social (bolsa família,
auxílio de prestação continuada) e, no caso dos pequenos proprietários
rurais, no crédito agrícola. Tivemos uma recuperação do salário
mínimo, embora esse ainda permaneça num patamar baixo quando comparado
até com o dos principais países da América Latina. Tivemos, também,
uma grande melhoria nas convenções e acordos coletivos de trabalho: ao
contrário do que ocorria no início da década de 2000, quando cerca de
80% das negociações salariais resultavam em reajustes inferiores à
inflação, nos últimos anos a situação se inverteu – mais de 80% das
convenções e acordos estabelecem reajustes acima da taxa de inflação.
As condições para a organização e para a luta sindical melhoraram
muito. Temos tido aumento real de salários. Os governos Lula e Dilma
promoveram também uma política de integração racial, favorecendo a
população negra que é uma parte muito importante das classes
trabalhadoras. Parte da classe média foi contemplada com a reabertura
dos concursos públicos, com a expansão das universidades federais e
com as bolsas e financiamentos para o ensino superior. É verdade,
contudo, que há setores populares que não ganharam quase nada. Talvez
o mais marginalizado pela política neodesenvolvimentista seja o
campesinato sem-terra, pois os governos Lula e Dilma reduziram muito o
ritmo das desapropriações. Porém, o apoio das direções de organizações
populares, das centrais sindicais e de partidos de esquerda aos
governos da frente neodesenvolvimentista não é, de maneira nenhuma, um
apoio desprovido de base real, ao contrário do que sugere a noção de
cooptação, e tampouco tal apoio contraria a aspiração da maior parte
das bases sociais dessas organizações.
Da maneira como
você expôs, pode parecer que todas as classes sociais participam da
frente política neodesenvolvimentista, que ela não teria inimigos na
sociedade brasileira.
Não é o que
penso. A frente neodesenvolvimentista se bate contra o campo político
neoliberal ortodoxo. Esse campo é formado pelo capital financeiro
internacional, pela fração da burguesia brasileira perfeitamente
integrada aos interesses desse capital e pela alta classe média, cujo
padrão de vida se assemelha ao das camadas abastadas dos países
centrais. A classe média é muito heterogênea e, como ocorre com a
burguesia, também está dividida. A baixa classe média é, em grande
parte, base eleitoral do PT, mas a votação dos candidatos do PSDB nos
bairros de alta classe média indica claramente que essa última está
com os tucanos. Pois bem, a força dirigente desse campo político
neoliberal ortodoxo é o capital financeiro internacional e seu aliado
interno, a fração burguesa a ele integrada. É o conflito entre a
grande burguesia interna e essa burguesia integrada ao capital
financeiro internacional, que são as forças dirigentes,
respectivamente, do campo neodesenvolvimentista e do campo neoliberal
ortodoxo, é esse conflito que se encontra na base da disputa
partidária entre o PT e o PSDB.
No que consiste,
fundamentalmente, o programa do campo neoliberal ortodoxo?
O programa do
campo neoliberal ortodoxo é, fundamentalmente, composto pelo tripé: a)
desregulamentação do mercado de trabalho, b) privatização e c)
abertura comercial e financeira. Na década de 1990, o campo político
neoliberal ortodoxo sustentou os governos Collor, Itamar e FHC e
logrou atrair parte do movimento operário e da massa empobrecida.
Basta lembrarmos, para o caso do movimento operário, o apoio da Força
Sindical a Collor e a FHC e, no que concerne à massa empobrecida, o
apelo de Fernando Collor, apelo que se revelou eficiente
eleitoralmente, aos “descamisados”, convocando-os para uma luta contra
os “marajás”. Na década de 2000, contudo, esses setores das classes
populares foram ganhos pela frente neodesenvolvimentista,
enfraquecendo eleitoralmente o campo político neoliberal ortodoxo.
Esse campo, embora domine a grande imprensa e os meios de comunicação
de massa, está eleitoralmente enfraquecido. Hoje, escondem o seu
verdadeiro programa e agitam apenas a bandeira “anti-corrupção”. Não
ousam mais, ao contrário do que fizeram na década de 1990, expor seus
verdadeiros objetivos. Mas, ao que José Serra, Geraldo Alckimin e
Aécio Neves realmente aspiram é implantar, no Brasil, uma nova onda de
reformas neoliberais, à moda do que estamos vendo na Europa. Basta ver
o que dizem os intelectuais e políticos tucanos para o seu próprio
público. Nos fóruns e meios de comunicação mais restritos, eles pregam
a retomada da reforma trabalhista, da reforma previdenciária e
criticam a aproximação do Brasil com os governos de esquerda e de
centro-esquerda da América Latina. Nos Estados em que são governo,
como em São Paulo, deixam entrever, também, que pretendem recrudescer
a repressão contra o movimento popular – a desocupação do bairro do
Pinheirinhos em São José dos Campos mostrou isso. O grande capital
financeiro e a fração “cosmopolita” da burguesia brasileira querem
recuperar o terreno perdido no Estado brasileiro e a alta classe média
tucana quer que as massas populares retornem “ao seu lugar”.
Como você analisa
as forças progressistas, de esquerda no atual cenário de
desenvolvimento?
A política
brasileira contemporânea ainda está dividida entre, de um lado, as
forças que defendem o modelo capitalista neoliberal na sua versão
ortodoxa e propõem uma nova onda de reformas neoliberais e, de outro
lado, as forças que apoiam a versão reformada desse mesmo modelo,
versão essa criada pelo neodesenvolvimentismo dos governos Lula e
Dilma. As classes populares, embora frustradas em muitas de suas
reivindicações básicas, ainda dão apoio, sobretudo eleitoral, aos
governos neodesenvolvimentistas. Os trabalhadores, com razão, veem
nesses governos ganhos econômicos e políticos, sobretudo quando
comparados aos governos do PSDB.
Eu já tive uma
avaliação diferente dessa questão, mas, hoje, entendo que as
organizações revolucionárias e populares devem participar da frente
neodesenvolvimentista, embora devam fazê-lo criticamente. Devem
participar porque tentar, no presente momento, implementar um programa
independente, popular ou socialista, só pode levar ao isolamento
político. A experiência da década de 2000 mostrou que em todos os
terrenos – eleitoral, sindical ou da luta popular – as forças que
tentaram esse caminho se isolaram ou, pior ainda, acabaram se
aproximando, apesar de suas intenções, de forças conservadoras. Alguns
descobriram, para a própria surpresa, que estavam recebendo apoios e
aliados muito incômodos.
Mas essas
organizações poderiam alegar que quem integra a frente
neodesenvolvimentista está aliado permanentemente a forças
conservadoras.
Se alegassem
isso, estariam dizendo apenas parte da verdade. No Brasil, dentre os
grandes partidos, há apenas dois que me parecem orgânicos: o PT e o
PSDB. Representam interesses definidos e têm uma linha de atuação
coerente. Porém, o pluripartidarismo brasileiro criou espaço para
partidos que possuem, principalmente, uma função, digamos assim,
governativa, e não uma função representativa. O maior deles é o PMDB.
Esse partido apoia, dentro de certos limites, o governo do momento e o
faz em troca de vantagens para seus políticos profissionais. Os
limites são os seguintes: o PMDB não apoiaria um governo popular ou
socialista e tampouco, pelo menos nas condições atuais, um governo
fascista. Mas, no interior desse amplo espectro, eles podem apoiar
qualquer governo. A sua base eleitoral está adaptada a esse
governismo. Ela tem uma posição de centro, que aspira a governos
estáveis, e que pode aceitar mudanças pontuais desde que ocorram sem
abalar as instituições do regime político vigente. Pois bem, isso
significa que o PMDB desempenha, hoje, uma função política distinta
daquela que ele desempenhou quando ofereceu o seu apoio aos governos
neoliberais ortodoxos. E o papel político é mais importante que o
partido ou as pessoas. Ademais, na forma como eu vejo a participação
na frente, participação que deve ser crítica, as forças populares e
socialistas não estão desobrigadas de fazer a crítica a forças
conservadoras que ocupam cargos no governo. As recentes substituições
nos ministérios do governo Dilma mostram que a esquerda poderia ousar
muito mais nessa matéria.
Você ia,
justamente, definir o que você entende por essa participação crítica.
É isso. As
organizações revolucionárias devem participar criticamente dessa
frente, porque o seu programa atende apenas de modo marginal e muito
restrito os interesses das classes populares.
Participar
criticamente significa, em primeiro lugar, não abrir mão das bandeiras
populares, mesmo que isso crie conflitos no interior da frente. Eu me
refiro, é claro, à luta por melhoria salarial e por melhores condições
de trabalho, isto é, para que os frutos do crescimento econômico sejam
repartidos. Mas, não se trata apenas dessa luta. Dou alguns exemplos
referentes a lutas que estão na ordem-do-dia. Independentemente da
posição do governo, não podemos abrir mão da bandeira histórica da
reforma agrária e da ocupação de terra. Na questão democrática, a luta
pela punição dos torturadores do período da ditadura militar está
novamente colocada, sejam quais forem a composição e as intenções da
Comissão da Verdade. As manifestações recentes defronte as residências
e empresas de conhecidos torturadores – os chamados escrachos – são
muito importantes nesse sentido. O movimento popular deve, também,
levantar a bandeira da independência nacional. Deve pressionar o
governo brasileiro para que ele se coloque contra as sucessivas
intervenções militares dos EUA e da OTAN nos países da África e da
Ásia.
Em segundo lugar,
a participação crítica na frente neodesenvolvimentista significa que é
preciso fazer a crítica dos aspectos regressivos dessa política de
desenvolvimento. A reprimarização da economia brasileira, a
esterilização de um terço do orçamento da União para a rolagem da
dívida pública, os prejuízos ambientais e muitos outros aspectos
antinacionais e antipopulares do atual modelo devem ser criticados
pelos setores populares que participam criticamente da frente. É
preciso ter claro o seguinte. A grande burguesia interna depende do
voto dos trabalhadores para manter os governos neodesenvolvimentistas
e nem por isso essa burguesia abriu mão de lutar por seus interesses
mesmo quando isso fere os interesses dos trabalhadores. As associações
empresariais estão pressionando o governo para que esse reduza os
gastos públicos – os gastos com os trabalhadores, mas não com a
rolagem da dívida pública ou com os empréstimos subsidiados do BNDES,
poderiam acrescentar – e para que efetue reformas que reduzam o custo
do trabalho. Não serão, então, as organizações dos trabalhadores que
irão abrir mão de seus objetivos específicos para ganharem nota de bom
comportamento no interior desse “frentão”.
Eu penso – e esse
não é um mero chavão – que as contradições tendem a se aguçar. A
economia capitalista neoliberal está em crise na Europa. As forças
populares não podem arriar suas bandeiras nem abrir mão da crítica,
porque, caso contrário, poderão ser surpreendidas por uma eventual
implosão da frente neodesenvolvimentista e se verem sem proposta
própria para seguir em frente.
Armando Boito Jr.
é professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp e Editor da
revista Crítica Marxista. É autor dos livros Política neoliberal e
sindicalismo no Brasil (São Paulo, Editora Xamã, 2002) e Estado,
política e classes sociais (São Paulo, Editora Unesp, 2007).
Fonte: Brasil de
Fato, Nilton Viana, 9/4/12.