“A causa fundamental da crise financeira é a lógica do próprio
capitalismo”
Para o professor François Houtart*, somos confrontados com uma lógica
que corre ao longo da história econômica do século passado
A crise que
vivemos é mais profunda e bastante diferente da que conhecemos nos
anos 1929 e 1930, afirma o professor François Houtart. Segundo
ele, sua dimensão evidentemente está vinculada ao fenômeno da
globalização. Porém, ressalta que a atual crise não é nova. Não é
a primeira crise do sistema financeiro e muitos dizem que não será
a última. Houtart acredita que o mais importante, e isso é
diferente dos anos 1929 e 1930, é essa combinação com vários tipos
de crises. E afirma: a causa fundamental da crise financeira é a
lógica do próprio capitalismo. “A crise financeira é devida à
lógica do capital, que tenta buscar mais lucros para acumular
capital, que é, dentro dessa teoria, o motor da economia”.
Em entrevista
ao Brasil de Fato, Houtart fala também sobre as várias facetas
desta crise, inclusive a crise alimentar, a qual, segundo ele, faz
parte da mesma lógica. “A combinação da crise econômica com a
alimentar é algo novo. Porém, são vinculadas”.
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O sociólogo belga François Houtart
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Foto Roosewelt Pinheiro/ABr |
Brasil de Fato
– O mundo vive hoje uma crise mundial, que tem afetado principalmente
os Estados Unidos e a Europa. Como o senhor avalia esse cenário?
François Houtart
– Eu penso que, primeiro, se trata de uma crise do sistema econômico
capitalista, que é muito similar à crise dos anos de 1929-1930 e
também a muitas outras crises cíclicas do sistema capitalista onde há
subprodução, subconsumo e eventualmente crises financeiras.
A crise que
vivemos hoje me parece mais profunda e bastante diferente da que
conhecemos nos anos 1929 e 1930, porque, primeiro, sua dimensão
evidentemente está vinculada ao fenômeno da globalização. Isso
significa que hoje há um efeito muito mais global do que nos anos de
1929-1930 e que evidentemente afeta o conjunto da economia. Já está
afetando os países emergentes e de uma maneira ou outra afetará outros
países do mundo. Porém, o mais importante, e isso é diferente dos anos
1929 e 1930, é essa combinação com vários tipos de crises. Por
exemplo, a crise alimentar, que foi conjuntural nos anos 2008-2009 e
que correspondeu à crise do capital financeiro. Porque o capital
financeiro tem buscado novos lugares de especulação e o lugar foi a
alimentação, com conseqüências terríveis. E a crise alimentar é também
estrutural e não somente conjuntural, porque precisamente afeta toda a
maneira de fazer a agricultura. E a introdução cada vez mais forte do
capital dentro da agricultura, com a concentração de terras, gera uma
contrarreforma agrária mundial e o desenvolvimento de monocultivos,
com todas as consequências ecológicas de destruição de ambiente e
também de destruição humana; por exemplo, a exclusão dos camponeses de
suas terras.
A combinação da
crise econômica com a alimentar é algo novo. Porém, são vinculadas. Na
verdade, a crise financeira é devida à lógica do capital, que tenta
buscar mais lucros para acumular capital, que é, dentro dessa teoria,
o motor da economia. Se o capital financeiro é mais proveitoso do que
o produtivo, ele faz a lei da economia mundial como é hoje. Assim,
essa é evidentemente a lógica do capitalismo que provoca a crise
financeira, que tem efeitos econômicos, porque tem efeitos sobre
emprego, crédito e toda a economia. Porém, é essa mesma lógica que
está provocando a crise alimentar, porque, por uma parte, há uma
especulação – o preço do trigo, por exemplo, tem dobrado 100% em um
ano, menos de um ano, por razões puramente especulativas.
E quais são as
conseqüências sociais dessa crise?
Na verdade, as
consequências sociais da crise financeira são sentidas além das
fronteiras da sua própria origem e afetam os fundamentos da economia.
Desemprego, custo de vida crescente, a exclusão dos mais pobres, a
vulnerabilidade das classes médias, expandindo a lista de vítimas no
mundo. Não é apenas um acidente no percurso, ou apenas de abusos
cometidos por alguns atores econômicos que precisam ser punidos. Somos
confrontados com uma lógica que corre ao longo da história econômica
do século passado. O desenrolar dos acontecimentos sempre responde à
pressão das taxas de lucro. A crise que vivemos hoje não é nova. Não é
a primeira crise do sistema financeiro e muitos dizem que não será a
última.
A seu ver, qual é
a principal causa dessa crise mundial?
A causa
fundamental da crise financeira é a lógica do próprio capitalismo, que
torna o capital motor da economia. E seu desenvolvimento –
essencialmente, a acumulação – leva à maximização do lucro. Se a
financeirização da economia favorece a taxa de lucro e se a
especulação acelerou o fenômeno, a organização da economia como um
todo continua dessa forma. Mas um mercado não regulamentado
capitalista conduz inevitavelmente à crise. E, como indicado no
relatório da Comissão das Nações Unidas, é uma crise macroeconômica.
Um dos graves
problemas da humanidade hoje é a fome. Como fica essa questão frente a
esse cenário de crise?
A crise alimentar
tem dois aspectos, um cíclico e um estrutural. O primeiro
manifestou-se com o aumento dos preços dos alimentos em 2007 e 2008.
Sim, para explicar o fenômeno, houve alguma base eficiente, como
alguma diminuição fraca em reservas de alimentos, mas a principal
razão foi de natureza especulativa, em que a produção de
agrocombustíveis não ficou imune (etanol de milho nos Estados Unidos).
Assim, o preço do trigo na Chicago Board (Bolsa de Chicago) aumentou
para 100%, do milho 98% e do etanol, 80%. Durante esses anos, uma
parte do capital especulativo passou de outros setores para investir
na produção de alimentos, na busca por lucros rápidos e
significativos. Consequentemente, segundo o diretor da FAO, em geral,
a cada ano, em 2008 e 2009, mais de 50 milhões de pessoas ficaram
abaixo da linha da pobreza e o total de pessoas que viviam nessa
situação em 2008 atingiu um valor nunca antes conhecido – de mais de
um bilhão de pessoas. Essa situação foi claramente o resultado da
lógica do lucro, a lei capitalista do valor.
O segundo aspecto
é estrutural. É a expansão durante os últimos anos da monocultura,
resultando na concentração da terra, ou seja, uma verdadeira
contrarreforma. A agricultura familiar foi destruída em todo o mundo
sob o pretexto de sua baixa produtividade. Na verdade, as monoculturas
têm uma produção que às vezes pode ir até 500% ou mais de 1000%. No
entanto, dois fatores devem ser levados em conta. A primeira é a
destruição ecológica dessa forma de produzir. Florestas são removidas,
solo e água contaminados pelo uso maciço de produtos químicos.
Agricultores são forçados a deixar suas terras e há milhões que têm de
migrar para as favelas das cidades, aumentando a crise urbana, e
aumentando a pressão da migração interna, como no Brasil, ou externa,
como em muitos outros países.
Então a fome no
mundo não tem nada a ver com a produção de alimentos, com a capacidade
de produzir?
Não. Não tem nada
a ver com a produção. A questão é somente especulativa. É a Bolsa de
Chicago que fixa os preços internacionais dos grãos.
E como o senhor
vê as afirmações de alguns estudiosos de que o planeta, com uma
população na casa dos 7 bilhões de pessoas, se torna incapaz de
produzir alimentos para nutrir tanta gente?
Isso é totalmente
falso. Segundo a FAO, teoricamente a Terra pode facilmente nutrir 10
ou 12 bilhões de habitantes.
E a questão
energética, também faz parte desse cenário de crise?
A crise de
energia vai além da explosão conjuntural dos preços do petróleo e faz
parte do esgotamento dos recursos naturais explorados pelo modelo de
desenvolvimento capitalista. Uma coisa é clara: a humanidade vai ter
que mudar a fonte de sua energia nos próximos 50 anos. Os picos de
petróleo, urânio e gás podem ser discutidos em termos de anos
precisos, mas ainda assim sabemos que esses recursos não são
inesgotáveis e que as datas não estão longe. Com o esgotamento,
inevitavelmente vem o aumento dos preços das commodities, com todas as
consequências sociais e políticas. Além disso, o controle
internacional de fontes de energia fósseis e outros materiais
estratégicos é cada vez mais importante para as potências industriais,
que não hesitam em usar a força militar para se apropriar deles. É no
contexto de escassez de energia no futuro que se insere parte do
problema dos agrocombustíveis. Diante da expansão da demanda e da
redução esperada em recursos energéticos fósseis, há uma certa
urgência de se encontrar soluções. Como novas fontes de energia exigem
o desenvolvimento de tecnologias ainda não muito avançadas (como a
solar ou à base de hidrogênio) e outras soluções são interessantes,
mas economicamente marginais ou não rentáveis (mais uma vez, a solar e
a eólica), a dos agrocombustíveis pareceu interessante.
Mas a produção
dos agrocombustíveis traz também graves consequências.
A produção de
agrocombustível é feita na forma de monocultura. Em muitos casos, isso
envolve a remoção de grandes florestas. Na Malásia e na Indonésia, em
menos de 20 anos 80% da floresta original foi destruída pelas
plantações da palma e eucalipto. A biodiversidade é removida, com
todas as consequências sobre a reprodução da vida. Para produzir é
usado não só muita água, mas um monte de produtos químicos, como
fertilizantes ou pesticidas. O resultado é uma poluição intensiva de
água subterrânea, dos rios que desembocam no mar, e um perigo real de
falta de água potável para as populações. Além disso, os pequenos
agricultores são expulsos e muitas comunidades indígenas perdem suas
terras ancestrais, causando uma série de conflitos sociais, até mesmo
violentos. O desenvolvimento de agrocombustíveis corresponde à
negligência das externalidades ambientais e sociais, típicas da lógica
do capitalismo.
E como o senhor
vê a questão climática nesse cenário atual?
A crise climática
é bem conhecida e as informações estão se tornando mais precisas,
graças a várias conferências da ONU sobre clima, biodiversidade,
geleiras etc. Enquanto o atual modelo de desenvolvimento continuar
emitindo gases de efeito-estufa (especialmente CO2), destruindo os
sumidouros de carbono, ou seja, sítios naturais de absorção desses
gases, especialmente florestas e os oceanos, a crise continuará. A
pegada ecológica é de tal ordem que, de acordo com estimativas, em
2010, em meados de agosto, o planeta tinha esgotado a sua reprodução
natural. Além disso, de acordo com o relatório do Dr. Nicholas Stern
para o governo britânico, em 2006, se as tendências atuais continuarem
na metade do século existirão entre 150 e 200 milhões de migrantes
climáticos, e os mais recentes números são ainda mais elevados.
E como o senhor
avalia as medidas adotadas pelas elites e governos para tentar superar
essas crises? E quais são as soluções?
A primeira
solução é a do sistema. Alguns, principalmente preocupados com a crise
financeira, propuseram mudar e punir os responsáveis. Essa é a teoria
do capitalismo (teoria neoclássica em economia), que vê elementos
positivos na crise, porque eles permitem a liberação de elementos
fracos ou corruptos para retomar o processo de acumulação em bases
saudáveis. Atores são alterados, e não se muda o sistema.
Evidentemente não é solução. A segunda visão é propor regulamentos. É
reconhecido que o mercado regula a si mesmo e que os organismos
nacionais e internacionais têm necessidade de executar essa tarefa. Os
Estados e organizações internacionais devem ser envolvidos. O G8, por
exemplo, propôs certos regulamentos do sistema econômico global, mas
ligeiros e temporários. Em vez disso, a ONU apresentou uma série de
regulamentações muito mais avançadas. Propôs a criação de um Conselho
de Coordenação Econômica Global, em pé de igualdade com o Conselho de
Segurança, e também um painel internacional de especialistas para
acompanhar permanentemente a situação econômica global. Outras
recomendações tratadas foram a abolição dos paraísos fiscais e do
sigilo bancário e, também, maiores requisitos de reservas bancárias e
um controle mais rígido das agências de notação de crédito. A profunda
reforma das instituições de Bretton Woods foi incluída, bem como a
possibilidade de se criar moedas regionais em vez de ter como
referência única o dólar. Os regulamentos propostos pela Comissão
Stiglitz para reconstruir o sistema financeiro e monetário, apesar de
algumas referências a outros aspectos da crise, tais como clima,
energia, alimentos – e apesar do uso da palavra sustentável para
qualificar o crescimento – não têm a profundidade suficiente para
fazer a pergunta: para que reparar o sistema econômico? Para
desenvolver, como antes, um modelo que destrói a natureza e é
socialmente desequilibrado? É provável que as propostas para reformar
o sistema monetário e financeiro serão eficazes para superar a crise
financeira, e muito mais do que o que foi feito até agora, mas é
suficiente para responder a desafios globais contemporâneos? A solução
é dentro do capitalismo, um sistema historicamente esgotado, mesmo que
tenha ainda muitos meios de adaptação. A gravidade da crise é tal que
devemos pensar em alternativas, não somente em regulações.
E, quais seriam,
por exemplo, essas outras alternativas?
Questionar o
próprio modelo de desenvolvimento. A multiplicidade de crises que
foram exacerbadas nos últimos tempos é resultado da lógica de mesmo
fundo: uma concepção de desenvolvimento que ignora as “externalidades”
(danos naturais e sociais); a ideia de um planeta inesgotável; o foco
no valor de troca em detrimento do valor de uso; e a identificação da
economia com a taxa de acumulação de lucro e do capital que cria,
consequentemente, enormes desigualdades econômicas e sociais. Esse
modelo resultou em um crescimento espetacular da riqueza global, mas
seu papel histórico se perdeu, devido à sua natureza destrutiva e da
desigualdade social que resultou. A racionalidade econômica do
capitalismo, escreve Wim Dierckxsens, não apenas tende a negar a vida
da maioria da população mundial como também destrói a vida natural.
Temos que
discutir alternativas ao modelo econômico capitalista prevalecente
hoje e os meios para rever o próprio paradigma (orientação básica) da
vida coletiva da humanidade sobre o planeta, conforme definido pela
lógica do capitalismo, que hoje é global. A vida coletiva é composta
por quatro elementos que chamamos de base, porque as exigências são
parte da vida de toda sociedade, desde as mais antigas até as mais
contemporâneas: a relação com a natureza; a produção da base material
da vida física, cultural e espiritual; a organização social e política
coletiva; e a leitura do real e autoenvolvimento dos atores na sua
construção da cultura. Ou seja, cada sociedade tem essa tarefa para
realizar.
Mas as
alternativas necessariamente passam pelo envolvimento do conjunto da
sociedade organizada, dos movimentos sociais.
Exatamente. As
alternativas são tão importantes que não vão chegar por si só. É
somente pela pressão dos movimentos sociais, movimentos políticos
também, que podemos esperar chegar a redefinir os objetivos
fundamentais da presença humana no planeta e o desenvolvimento humano
no planeta. E isso significa transformar a relação com a natureza.
Passar da exploração ao respeito. Significa outra definição da
economia. Não somente produzir um valor agregado senão produzir as
bases da vida. Da vida física, cultural, espiritual de todos os seres
humanos no planeta. Isso é a economia. Porém, isso não corresponde à
definição do capitalismo. Também é preciso generalizar a democracia a
todas as instituições, não somente políticas e econômicas mas também
na relações humanas, relações entre homens e mulheres etc. É
necessário também não identificar desenvolvimento com civilização
ocidental e dar a possibilidade a todas as culturas, religiões,
filosofias de participar dessa construção. Isso é o que chamo de
construir o bem comum da humanidade, que é a vida; assegurar a vida, a
vida do planeta e a vida da humanidade. Isso é um projeto alternativo,
que pode parecer utópico. Porém não é utópico porque existem milhares
de organizações e movimentos sociais que já trabalham para transformar
esses aspectos da vida comum da humanidade, para melhorar a relação
com a natureza, para ter outro tipo de economia, para ter uma
participação, uma democracia que seja participativa e para renovar a
cultura. Existem muitas iniciativas. Isso posso chamar de construção
do socialismo. Porque socialismo não é uma palavra. É um conteúdo. E
eu penso que devemos redefinir o conteúdo do socialismo.
Como o senhor
analisa a América Latina neste contexto da crise e qual é o papel dos
movimentos sociais?
É muito
interessante porque a América Latina é o único continente do mundo
onde temos tido alguns avanços. Não ainda na opção de novo paradigma,
nova orientação fundamental, porém, pelo menos avanços, que não
existem em outros continentes até agora. Mas não é algo generalizado
na América Latina. Há alguns países que só reproduzem o sistema, com
sua dependência ao capital internacional, particularmente do norte do
continente americano. São países como México, Colômbia, Chile, Panamá,
Costa Rica, Honduras etc. São países onde a burguesia local está
totalmente vinculada com o sistema internacional e, nesse sentido, não
tem outro projeto senão um projeto muito repressivo contra as
populações.
Subordinação
total.
Exatamente. Há
uma segunda realidade, que são os países que podemos chamar de
“adaptações ao sistema”. E aí existem dois tipos de países. Há os que
dizem: sim, o sistema necessita de mudanças fundamentais e devemos nos
adaptar à lógica do capitalismo. E para se ter mais justiça social e
repartir parte do lucro, como já dizia Marx, com o rápido avanço das
forças produtivas, temos um aumento dos lucros e da destruição da
natureza. Nesse tipo de desenvolvimento se inserem Brasil, Argentina,
Uruguai e Paraguai, que possuem programas sociais eficazes. Com
resultados indubitáveis porque milhões de pessoas saíram da pobreza, o
que não podemos desprezar, porém, esse modelo não transforma
profundamente a sociedade; isso representa apenas uma redistribuição
de parte do lucro. Não podemos dizer que é uma mudança de paradigma.
Entretanto, há países como Venezuela, Equador e a Bolívia, que têm
outro discurso, o do socialismo do século 21, que pelo menos faz uma
alusão a uma transformação fundamental. Pelo menos no Equador e na
Bolívia, entre o discurso e a prática eu vejo grande avanços, em que
as práticas dos governos seguem uma orientação das demandas sociais
apresentadas pelos movimentos sociais.
Então, neste
contexto de crise, os países que estão mais vulneráveis sofrem mais as
consequências?
Não estou seguro.
Teoricamente pode-se dizer que sim, esses países serão mais afetados
em médio prazo. Porém, no momento é igual em todas as partes. Mas,
evidentemente, os países mais vinculados ao sistema serão mais
afetados em médio prazo. Entretanto, desgraçadamente, países como
Venezuela e Bolívia também são indiretamente dependentes do sistema
global e sofrerão as consequências. O que eu acho que é cedo demais
pra se dizer, com diz Samir Amin, que eles conseguiram fazer uma
desconexão. Não, não conseguiram. Mas é óbvio que as economias mais
vinculadas à economia do Norte sofrerão as consequências a curto
prazo.
No caso da
América Latina, uma maior integração dos países seria uma alternativa
frente a esse cenário mundial? O papel do Estado é fundamental neste
contexto?
Absolutamente.
Mas, para encerrar a tipologia, eu penso que a Venezuela é um país que
avança para um novo modelo, onde as mudanças são mais aprofundadas. O
papel do Estado não pode ser concebido sem levar em conta a situação
dos grupos mais marginalizados socialmente, os sem-terra, as castas
mais baixas ignoradas por milênios, os povos indígenas da América e os
excluídos de ascendência africana; e, nesses grupos, as mulheres são
muitas vezes duplamente marginalizadas. A expansão da democracia
também se aplica para o diálogo entre os movimentos políticos e
sociais. A organização de instâncias de consulta e diálogo pertence ao
mesmo conceito, respeitando a autonomia mútua. O projeto de um
conselho de movimentos sociais na arquitetura geral da Alba é uma
tentativa original nessa direção. O conceito de sociedade civil muitas
vezes utilizados para esse fim ainda é ambíguo, porque ela é também o
lugar da luta de classes: há realmente uma sociedade civil de baixo e
de cima e o uso do termo de forma não qualificada permite muitas vezes
a criação de uma confusão e a apresentação de soluções que ignoram as
diferenças sociais. Por outro lado, as formas de democracia
participativa, como os encontrados em vários países latino-americanos,
também entram na mesma lógica da democracia em geral. Todas as novas
instituições regionais latino-americanas, como o Banco do Sul, a moeda
regional (o sucre) e a Alba, serão objeto de atenção especial na
direção de propagação da democracia. E o mesmo vale para os outros
continentes.
* François
Houtart é sociólogo e professor da Universidade Católica de Louvain
(Bélgica). É diretor do Centro Tricontinental, entidade que desenvolve
trabalho na Ásia, África e América Latina.
Fonte: Brasil de
Fato, Nilton Viana, 20/1/12.